A quase inexistência de negros no cenário político brasileiro não se resume aos governos. A falta de representatividade étnico-racial também é crítica nos parlamentos. No Ceará, o resultado das eleições deste ano mostra isso muito claramente.
Dos 46 deputados estaduais eleitos, apenas um é autodeclarado preto: Soldado Noélio (Pros). Entre os 22 deputados federais eleitos, também somente um, José Airton Cirilo (PT), se autodeclarou preto. Ou seja: 68 nomes escolhidos e só duas de todas essas cadeiras serão ocupadas por pessoas negras. Aqui e em Brasília.
A situação é grave, muito grave, em ambos os cenários.
Como um estado com quase nove milhões de habitantes, com 66% da população autodeclarada negra, com 85 quilombos reconhecidos por instituições renomadas e com uma liderança libertária como Dragão do Mar altamente conhecida elege apenas DOIS negros para cargos tão importantes?
A composição da Assembleia Legislativa é, ao meu ver, o caso mais delicado. Por três razões. Primeiro porque a quantidade de parlamentares é maior. Mais do que o dobro de deputados federais. Logo, o grupo de negros poderia/deveria também ser maior.
Segundo porque o único preto eleito deputado estadual teve a pior votação dentre todos. Menos de 25 mil votos. O equivalente a 0,54% do total de votos válidos. Algo irrisório diante dos 109 mil votos de André Fernandes, do PSL, o líder desta eleição.
E terceiro porque a Casa sequer dispõe de uma Comissão Técnica para discutir temáticas étnico-raciais ou de interesse da população negra. O colegiado que mais se aproxima é o de Direitos Humanos e Cidadania. Algo que contempla os pretos de forma muito transversal.
Se a representatividade feminina será pequena na próxima legislatura da Assembleia cearense, a de mulheres negras, então, sequer existirá. Nenhuma das cinco eleitas se autodeclara negra. Não há quem se diga nem parda. Todas são brancas.
Na Câmara Federal, o único eleito pelo Ceará que se autodeclara preto teve a quarta pior votação. O capital político do mais bem votado (Capitão Wagner (Pros), com 303 mil votos) daria para eleger outros três negros, se considerarmos apenas a votação de José Airton Cirilo (74 mil votos).
SENADO
No Senado, a situação também não é das melhores. Nenhum dos dois candidatos eleitos autodeclara-se negro. Um se diz branco e outro se diz pardo. Eles cumprirão mandato pelos próximos oito anos, quatro dos quais ao lado de um outro senador. Esse também branco. Ou seja: os pretos do Ceará também não têm representatividade numa das principais casas políticas do Brasil. Contam com uma voz na Assembleia, uma voz na Câmara Federal e nenhuma no Senado.
O que isso significa? Que agora, mais do que nunca, em especial com o perfil excludente, racista e segregador do próximo presidente da República, o movimento negro precisa se fortificar. Que o povo negro precisa se unir.
E que a gente tem que ser cada vez mais solidário com a causa do outro. O combate ao racismo não deve ser só bandeira da população preta. Assim como a igualdade étnico-racial também não. É pra ser defesa de qualquer um com o discernimento de que cor de pele, fenótipo e preconceito não deve/deveria ser a mão que pesa sobre o destino de ninguém.
Quando um presidente de extrema direita disser que o país não tem dívida histórica com os negros, nós não podemos calar. Quando alguém se erguer contra a política de cotas, nós não podemos calar. Quando qualquer um afirmar que lugar de preto é na África, nós não podemos calar. Quando ouvirmos que ser preto é ser inferior, nós não podemos calar.
Nós somos a base deste país. E como tal temos o dever de lutar por nossos direitos. Temos a moral de daqui pra frente elegermos mais negros. Precisamos, sim, fazer que nem o estado do Texas, nos Estados Unidos, onde todas as 19 mulheres negras que disputavam eleições venceram.
Só tendo gente nossa nos parlamentos, nos palácios, nos tribunais, nas presidências e em tantos espaços de poder que existirem, só assim, e não de outra forma, nos reconheceremos como um povo capaz de mudar o curso de uma história escrita para nós (e não por nós) fadada a dois caminhos: a cadeia ou o cemitério.
Eu, negro, não aceito esses dois fins para meu povo.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.