
No dia 25 de março de 1884, a província do Ceará libertou seus escravos e se tornou a Terra da Luz. Isso, quatro anos antes da Princesa Isabel assinar a Lei Áurea, em 1888. Louvamos a coragem do Dragão do Mar e dos abolicionistas, mas como realmente chegamos à abolição? Quem mais esteve a frente dos movimentos que culminaram na vitória dos abolicionistas?
Para entender melhor essa história, conversamos com o professor Hilário Ferreira, mestre em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor da Faculdade Ateneu, Hilário conta na entrevista o contexto anterior à abolição, fala de alguns personagens e sobre o legado desse fato histórico.
Ceará Criolo: Qual o contexto do Ceará pré-abolição?
Hilário Ferreira: Pra gente conversar um pouco sobre a abolição, a gente precisaria identificar um movimento que ocorreu desde 1850, contextualizado. É o tráfico interprovincial, a transferência de cativos de uma região não produtiva para uma região produtiva. Na verdade, esse tráfico sempre existiu, a questão aqui é que a partir de 1850 tem o marco do fim do tráfico atlântico. Durante esse período nós temos a Região Sudeste com o desenvolvimento do café, precisando de mão de obra. Então, as outras províncias passam a enviar cativos para compor a mão de obra escrava na Região Sudeste.
Nós estamos falando de uma conjuntura que é movida por esse tráfico interno, que dá uma sobrevida ao sistema escravista por mais 38 anos. Temos aí o tráfico interno. Temos também, a partir de 1860, o processo de modernização nas principais cidades, no caso aqui é Fortaleza. Você tem o processo da iluminação, surgimento da classe média, teatros, clubes literários. Do ponto de vista cultural, a presença da cultura, vamos dizer, no Ceará especificamente, você vai ter uma presença quase marcadamente africana.
Eu falei africana, mas é importante a gente especificar, uma cultura Congo-Angolana. A maioria de negros na condição de escravos que vieram são dessa região. Você vai ter samba de umbigada, muito presente na Avenida Imperador, no bairro Damas, em vários lugares e em várias vilas da província do Ceará. Você vai ter a Festa do Congo, as irmandades, principalmente a Irmandade do Rosário dos Pretos, ali na Igreja do Rosário. Você vai ter o boi, a burrinha… Então, essas manifestações culturais vão estar muito presentes aqui. Esse é basicamente o quadro que se revela antes da abolição.
Porém, convém enfatizar alguns elementos que marcam algumas mudanças nesse quadro, que são as secas. A pior delas é de 1877 a 1879. Então, essas secas e a presença de cativos na cidade, o que ela provoca na população, de certa forma faz alterar o modo de pensar da população em Fortaleza, uma certa mudança em relação aos cativos. Aí você tem uma busca da classe média de romper com esse modo de pensar ainda colonial e lutar para a implantação de uma sociedade onde o trabalho não seja mais escravo, mas assalariado. Esse é, basicamente, o aspecto conjuntural.
CC: Dentro desse contexto, nós tivemos a formação das sociedades libertárias. Temos também a influência externa da Inglaterra…
HF: Eles tentaram, mas quem detinha o poder político era uma oligarquia, os donos de escravos. Essa pressão inglesa vem desde o reconhecimento da independência. Nós sabemos que isso foi uma troca. Porém, nós estamos falando aqui de uma força política que eram os senhores de escravos, nem o próprio imperador impediu isso. Haviam propostas de tentar impedir isso. Acho que em 1850, o Pedro Pereira, apresenta um projeto que é o mesmo projeto que futuramente vai ser apresentado, o Ventre Livre. Esse projeto nem é discutido. O próprio Dom Pedro II, sofrendo pressão da Inglaterra, começa a pensar numa forma de agradar gregos e troianos, uma abolição gradual. Primeiro, depois de uma conversa longa, vem 1871, Ventre Livre, posteriormente vem o Sexagenário. Se deixassem ao prazer dessas oligarquias, talvez a abolição acontecesse, talvez, lá pra 1930, 1950, ao prazer deles. Daí é importante trazer para o centro das discussões, como sujeitos históricos, os escravizados. É tanto que quando houve a questão do treze de maio, um ano depois o império cai e vem a República.
CC: No Ceará, é sempre lembrado o episódio dos jangadeiros se recusando a levar os escravos até os navios. Como chegamos a esse episódio?
HF: Trabalhei no mestrado o tráfico interno, a transferência de um cativo para outro, seja através da compra, da troca, da venda. Quando localizo os cativos, um deles, que é interessante, é um escravo chamado Antônio Napoleão. Ele compra sua alforria, uma coisa comum na época. Essa questão da compra da alforria, ela vem de um dispositivo da lei de 1871, todo mundo fala muito da Lei do Ventre Livre, mas esquece dos outros dispositivos. Os donos de escravos colocaram estrategicamente esses dispositivos para fazerem os escravos trabalhar mais, ser motivados a trabalhar. Então, o cativo que pudesse juntar um valor do que foi pago por ele, ele comprava a alforria.
Precisamos um dia aprofundar e levantar histórias do Antônio Napoleão. Ele consegue comprar sua alforria, depois ele compra a alforria da esposa, dos filhos e dos amigos. Levanto uma tese de que essas pessoas que ele libertou, conhecendo a conjuntura do tráfico interno, elas acabam vivendo juntos na praia. Como eram ex-escravos e faziam esse trabalho, eles compreendiam que não tinham uma força política e o momento adequado para fazer isso.
Esse momento adequado e essa eficácia acaba acontecendo quando alguns jovens, que são ex-comerciantes, alguns deles comerciantes de escravos, fundam a Sociedade Libertadora, que tem João Cordeiro, Isaac do Amaral, e outro. Então, naquele momento, esses jangadeiro, que eu defendo que todos eram negros, percebem que aquele momento era o de lutar contra a escravidão. Na verdade, contra o embarque de cativos, porque embarcar os cativos era quebrar os laços afetivos. Aí nós temos uma resistência mais contra o tráfico, de ser separado dos seus, que vai gerar uma diversidade de focos de resistência.
Eu analiso esse momento porque algumas pessoas dizem que foi o movimento abolicionista, no Teatro José de Alencar, no Teatro São José, propõe o movimento de não mais embarcar. Penso eu que havia uma troca de informações entre eles, pois quando há o movimento de jangadeiros em janeiro, posteriormente pela eficácia do movimento, colocando esses cativos, esses escravizados e os negros como sujeitos do processo histórico, é com os jangadeiros que o movimento abolicionista se torna eficaz. Até aí, o que o movimento abolicionista estava fazendo? Eles estavam libertando mulheres, mas não estão libertando os homens, porque os homens são as peças principais dos tráfico interno, são embarcados para o Sudeste.
O movimento dos jangadeiros tem à frente o Antônio Napoleão. Nesse primeiro momento o Chico da Matilde não aparece. Ele é prático-mor, não é jangadeiro. Quem é jangadeiro é o Antônio Napoleão. O Chico da Matilde aparece no segundo momento, em agosto, nesse momento o movimento se radicalizou mesmo. Aí, dessa forma que se dá todo esse processo.
CC: É comum associar o 25 de março ao Dragão do Mar. Por que sempre falamos nele e os outros são deixados de lado?
HF: Porque o próprio Antônio Napoleão se deixou de lado. Essa história é contada pelo Issac de Amaral e outro cearense que escreve tendo como fonte o diário de Chico da Matilde. Quando há o movimento e a eficácia dele em janeiro, os abolicionista procuram Antônio Napoleão. Eu levanto a seguinte questão: Antônio Napoleão era um cara vivido, ex-escravo, ladino, no sentido de esperto, desconfiado. Deve ter acompanhado os abolicionistas durante a vida. Alguns deles eram ex-comerciantes de escravos e hoje queriam abolir a escravidão. Ele é indagado pra ser um representante dos abolicionistas na praia. “Não, eu sou muito velho. Vou indicar o Chico da Matilde, ele é uma liderança igual a mim. Eu tô muito velho pra isso. Nesse momento ele sai da história e entra o Chico da Matilde. Que faz um bom trabalho. Ele faz um trabalho tão bom que vira o Dragão do Mar.
Aí é interessante as identidades forjadas. Ele nasce Francisco José do Nascimento. Por causa da mãe, negra, guerreira, em Aracati, ele vira Chico da Matilde. Na sua luta na praia, sendo representante indicado pelo Antônio Napoleão, ele vira o Dragão do Mar. Porém, dentro do processo, no final ele volta a ser Chico da Matilde.
CC: Outro personagem que conhecemos recentemente foi a Preta Simoa. Quem é ela na história e por que sabemos tão pouco sobre ela?
HF: A Preta Simoa é simplesmente a mulher do Antônio Napoleão. Os dois são duas figuras que é necessário ser resgatada a memória. Estive pra uma defesa de uma monografia que discutia justamente o papel da Preta Simoa. Trata sobre o papel da mulher e da Preta Simoa no processo da abolição. No movimento de agosto, ela, juntamente com Antônio Napoleão, Chico da Matilde, eles estão arrancando os calçamento para as carruagens não saírem. O cearense mal sabe sobre a história do Ceará e quiçá sobre a história dos negros no Ceará. Nós temos figuras importantes. Procuro muitas vezes discutir que o 30 de agosto, que foi o momento desse movimento mais forte, poderia se tornar o dia estadual da consciência negra no Ceará. pelo momento da resistência dessa mulher, do marido dela e de outros negros que merecem ser resgatados do silêncio intencional que foi construído como história oficial.
CC: O que significa o 25 de março e qual o legado dessa abolição no Ceará?
HF: Nós não podemos negar o 25 de março, também não podemos festejar. Ele tem que ser discutido. Se você nega, apaga da história toda uma luta que existiu contra o tráfico que favoreceu o próprio fechamento dos portos, que foi por causa disso que vai ocorrer mais na frente “a abolição da escravatura”. se você comemora, acaba fortalecendo o processo de invisibilidade e o protagonismo desses negros. Se você discute, abre as várias possibilidades.
Tive acesso a um documento de dois meses depois da abolição, de maio de 1884. Esse documento nada mais é do que o relatório do chefe de polícia para o ministro da justiça à época. Nesse documento é interessante que ele está falando que depois da abolição no Ceará os negros não querem mais trabalhar. Isso abre o precedente pra romper aquela ideia de que o trabalho na época era brando e não tinha muito escravo. Ou seja, se as pessoas estão reclamando, é porque todo o trabalho estavam na mão dos negros.
A outra questão que se coloca é que dentro do imaginário dos negros, não só da província do Ceará, mas também das províncias vizinhas, veem o Ceará como a Terra da Luz. Muitos cativos passam a fugir do Piauí, do Maranhão, para entrar no Ceará. Porém, lá no documento o chefe da polícia diz que eles recebem cartas dos antigos senhores das províncias vizinhas, eles vão caçar, pegam os escravos e mandam de volta. E o que impressiona é que, por exemplo, em janeiro de 1881, no movimento dos jangadeiros, os abolicionistas invadem os navios, retiram uma família que tá lá dentro, que seria vendida. O tráfico era uma empresa, eles vinham os litorais pegando os cativos, enchendo os navios até chegar ao Rio de Janeiro. Então, tem uma família lá que era do Maranhão. Em 1884, esse chefe de polícia pega essa família e devolve para o antigo senhor, que já era deputado no Rio de Janeiro. Então, a gente abre aí o precedente para reflexão: que abolição foi essa?
Outra questão que se coloca, não mais nesse documento. No parecer de um deputado aqui da província do Ceará, ele questiona quantos cativos ainda existem na região de Milagres, uma vila no Cariri. Milagres teve cativos até 1886, um total de 700 cativos. Outra coisa interessante nessas contradições. Escrevi um livro didático sobre a história de Redenção. Eu tenho acesso a uma documentação de que, como Redenção, antigo Acarape, virou o lugar que libertou os cativos, nesse documento há uma reclamação de que pessoas estão chegando em Redenção com seus escravos. Porém, se pagassem a multa, continuariam com seus escravos.
Então, essas questões que levanto, abrem precedente pro que falei inicialmente, é o momento de se discutir, não de se festejar e negar, mas refletir sobre esse evento que houve aqui. Porém, do ponto de vista do imaginário, esse evento traz muitas benefícios para o estado e para os brancos, menos para os negros. Você tem nome de rua, nome de pousada, uma universidade federal internacional que foi criada, onde os africanos e os negros sofrem racismo em Redenção. Há uma apropriação desse evento que só os brancos lucram, os negros não.

Jornalista. Alma de cronista, coração de poeta. Tem experiência em Assessoria de Comunicação. Apaixonado por futebol, boas histórias e fim de tarde.