Numa entrevista para a jornalista Marília Gabriela anos atrás na TV Mulher sobre racismo, a também jornalista Glória Maria disse: “pra eu estar bem vestida, eu tenho que estar um milhão de vezes mais bem vestida [do que uma mulher branca]. Eu não posso cometer nenhum deslize. Eu não posso falhar”. Vou facilitar o entendimento de quem precisa que desenhe: não basta a negra usar um vestido igual ao de uma mulher branca. Ou a negra tem o vestido assinado pela mais cara das grifes ou os olhares vão somente para o vestido da branca, seja ele de uma loja de departamentos ou de uma feira de rua.
Também não basta o modelo do vestido da mulher negra ser nacional. Precisa ter vindo de fora do país. Do contrário, ela vai ser só mais uma negra no evento, enquanto a mulher branca atrai todos os flashes e entrevistas. Se é assim no meio artístico, amigo, imagine na vida de nós, meros mortais.
Senão, vejamos.
Quantas vezes você se viu trocando roupa atrás de roupa para ir muito bem apresentado a uma entrevista de emprego e, no fim das contas, o escolhido foi justamente o candidato branco, de roupa desleixada e currículo com bem menos experiência do que o seu?
E quantas vezes você precisou comprar roupa nova para a festa de casamento de amigos por achar que os convidados, quase todos brancos e vários também seus companheiros de quinta série, estariam de pano passado?
E quantas vezes saiu pra comprar pão com a roupa do corpo, aquela que você fica largado em casa, e notou a mulher da frente apressando o passo ou a que vinha na direção oposta mudando de calçada?
E quantas vezes foi à farmácia de camisa regata, calção folgado e Havaiana tão velha quanto você, e tal hora o segurança da loja começou a te rondar ou a vendedora passou a perguntar incessantemente se “precisa de ajuda, senhor”?
Cada uma dessas e milhares de outras situações aconteceram comigo, são rotineiras na vida dos negros brasileiros e a gente insiste em não dar a devida importância. Sim, elas são de um racismo descarado e que nasce primeiro a partir de como nós nos apresentamos socialmente.
A coisa anda tão louca ultimamente que não basta mais a gente ter a ficha corrida limpa. É preciso usar roupa cara, estar de pano passado e se banhar de perfume de marca pra convencer a sociedade branca – em especial o aparelho estatal de segurança – de que eu, negro, não ofereço perigo ao mundo.
E, ainda assim, corre-se o risco de apanhar como eu já apanhei da Polícia década e meia atrás ao ser confundido com o chefe do tráfico de um morro de Fortaleza. Eu, 17 anos, estudante universitário, voltando pra casa com outros cinco amigos maiores de idade depois de um show da Ivete Sangalo no aterro da Praia de Iracema.
Surra muita de cassetete nos couros do nêgo, que andava sem camisa no meio da rua e por isso, tão somente por isso, foi chamado de vagabundo e tudo o mais que não presta. Uma semana com marca de agressão nas costas. Mal podia pingar água e a dor era de fazer chorar. Carne viva.
Tudo isso é pra dizer que a gente, negro, é, na verdade, camaleão. Todo dia é preciso a gente acordar e se fantasiar de uma cor de roupa diferente que não agrida os olhos de quem deveria nos respeitar, lutar por nós e nos proteger.
E não falo só das obrigações do Estado! Tudo isso não é dever só da Polícia. Respeitar, lutar e proteger deveriam ser três verbos mais conjugados por todos nós. Em prol de todos nós. Mas a gente prefere achar que um negro mal vestido não tem valor. E que um bem vestido ainda assim pode ser de alta periculosidade, mesmo que tenha apenas um currículo debaixo do braço e um coração cheio de esperança.
A neguinha da saia curta pode ser tão boa administradora quanto a branquinha do paletó. O neguinho com roupa de malandro pode ser tão bom advogado quanto o branquinho engravatado. A neguinha de trança, tatuagem e macacão pode ser tão boa jornalista quanto a branquinha de cabelo alisado e calça justa. O neguinho com jeito de viado da favela e calçando sandália de couro pode ser tão bom médico quanto o branquinho heteronormativo de sapato social que mora no prédio onde um apartamento toma um andar inteiro.
Na verdade, todos nós podemos ser é mais do que esses outros que insistem em puxar a gente pra baixo. Bem mais. A gente só precisa 1) primeiro se dar conta do nosso valor e 2) não baixar a cabeça por nada nesse mundo. A gente é o que é e tem que se orgulhar disso.
E desistir sabe quando?
Nunca.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.