Forjada na universidade pública, Zelma Madeira ocupa o cargo mais expressivo de um negro dentro do Governo do Ceará. E, ao lidar diretamente com a política de cotas, encampa uma luta em prol da igualdade racial num estado que insiste em negar a existência de negros.
“A liberdade jamais é dada pelo opressor.
Ela tem que ser conquistada pelo oprimido.”
Martin Luther King, um dos mais importantes líderes
do movimento dos direitos civis dos negros dos Estados Unidos
Qualquer dúvida que você tenha sobre o papel decisivo da Universidade na vida de qualquer pessoa, em especial do jovem preto, vai embora se quem estiver do outro lado da mesa for Zelma Madeira. A “professora Zelma”, como quase todo mundo chama essa figura de pisada firme, rosto expressivo e voz preenchedora dos vazios, é uma entusiasta da causa acadêmica.
Virou quilombo pra muita gente depois de uma trajetória atravessada sem ter em quem se espelhar, sendo referência de si mesma e atendendo aos decretos de uma mãe que até hoje escreve apenas o próprio nome (mas é uma sábia costurada pela vida).
Zelma coordena as políticas públicas para promoção da igualdade racial no Ceará desde 2015. Está no Governo por julgar que cumpre uma função estratégica para a causa do povo preto. E foi nesse espaço de poder que ela recebeu o Ceará Criolo para uma conversa (franca e, em muitos momentos, dolorosa) sobre educação, luta e representatividade. No Ensino Superior e na vida.
Confira a entrevista do especial “Quilombo Acadêmico.”
CEARÁ CRILO: A gente precisa primeiro entender a trajetória acadêmica da senhora. Como se deu seu ingresso na universidade?
ZELMA MADEIRA: A minha entrada na universidade é muito marcada pelo interesse da minha mãe. Ela só é alfabetizada. Só sabe escrever o nome dela. Mas botou na cabeça que nós só iríamos mudar nossos destinos se fôssemos mediados pela educação. Só que ela não queria que fosse qualquer educação. Ela queria que a gente “fosse até o fim”. No dizer dela, esse “fim” era a universidade.
Minha mãe sempre foi ousada. Já que nós éramos pobres, ela costureira e meu pai pedreiro, eles botaram na cabeça que a saída pra gente era a educação. Porque essa tem sido a saída para nós, população negra, há muitos anos. Quando todos não podiam estudar, ali no pós-escravidão ou mesmo durante a escravidão, quando existia inclusive decreto proibindo a gente de se matricular, as famílias pegavam o filho mais velho e apostavam tudo o que tinham nele. A educação sempre foi algo fundante pra família negra. Então, meu pai, que tinha só o quarto ano, e minha mãe, uma costureira alfabetizada, disseram que todos nós, eu e meus dois irmãos, íamos fazer o Científico.
CEARÁ CRIOLO: Eles queriam que o fim de vocês fosse outro…
ZELMA: Queriam que nós tivéssemos uma profissão. Então, nós fomos criados botando na cabeça: “o seu destino é a universidade.”
Quando a gente está perto de ir pro funil que é o vestibular, a mamãe aposta que se nós ficássemos em escola pública não passaríamos. Porque não tínhamos elementos de disputa que os outros, de escola particular, tinham. Qual foi a estratégia dela? Ir atrás de bolsa com políticos e donos de escola.
Nós ficamos em escola pública até o Ginásio. Depois fomos pra escola particular. Mas não tinha alunos negros já nessa escola “boa”. E o vestibular tinha só 1.200 vagas no ano. Meu irmão passou em Filosofia, eu passei em Serviço Social e minha irmã passou em Enfermagem.
Quando eu chego na universidade, eu vislumbro um monte de coisa porque minha mãe dizia que lá era o lugar bom, era o lugar mágico, era o lugar que ia me formar. Ela valorizava demais a educação. A minha mãe sempre ensinou o lugar, o horário, o espaço, o valor para nossas vidas dos processos educacionais. E é isso o que vale: dar todas as condições para a criatura poder se fazer.
CEARÁ CRIOLO: E qual universidade a senhora encontrou? Era um espaço parecido com o da escola particular, no sentido de que não tinha negros?
ZELMA: Era como se a gente tivesse vivido um preâmbulo no Ensino Médio. Eu chego na universidade pública, numa Federal, e na minha turma, em 1986, só tinha eu de negra. Só eu! Na turma de 1985, nenhuma. E na turma de 1984, uma.
Eu chego na universidade e vou enfrentar barreiras. Tive, por exemplo, uma professora que chegou dizendo que Zumbi era um saqueador, um ladrão. E era justo a época em que eu estava lendo exatamente sobre isso e me descobrindo. Eu dizia que não, mostrava o livro. Ela, branca, se embananava, não respondia e a forma de me castigar era me passar com SF (Suficiente). Por mais que eu estudasse, eu não ia ser B (bom) nem O (ótimo).
Mas a universidade era um lugar também de vislumbrar possibilidades. Como? Sendo presidente do Centro Acadêmico, conversando, participando, ampliando os olhares… Eu encontrei ameaças, que são próprias dos processos capitalistas, e resistências. Mas existem pequenas aberturas. E é nessas aberturas que a gente consegue fazer algo. É o que a Angela Davis chama de “fagulhas criativas.”
Mas pra isso é necessário ter uma família que apoie. Porque eu, mesmo sendo filha de trabalhador, nunca precisei sair da faculdade pra trabalhar. Mesmo com toda a pobreza, meus pais me davam a passagem de ônibus. Era todo contado, o dinheiro. Mas era a possibilidade que eu tinha.
CEARÁ CRIOLO: Seus pais viram a senhora se formar?
ZELMA: Meu pai não está mais vivo. Mas minha mãe tem 83 anos e muito orgulho de que os três filhos são “dotô”. Ela diz: “meus filhos são “dotô”, mas é porque eles fizeram doutorado, viu?”. Ela sabe tudo da carreira acadêmica. Porque foi esse o sonho dela. E ela concretizou nos filhos o sonho dela.
Mas eu encontrei muita dificuldade na universidade. No meu curso, eu não tive uma disciplina que fosse sobre a questão racial. Às veeeezes, tinha uma professora muito boa que trazia Emília Viotti ou outro que trazia Marilena Chauí.
Eu entrei na universidade dois anos depois que terminou a Ditadura. Nós estávamos na efervescência do processo de abertura democrática. Nós, jovens, tínhamos esperança de que uma nova sociabilidade era possível de ser construída. E eu aprendi tudo isso na universidade. Mas nunca sobre a questão racial. E sofri com isso. Mas também fui feliz lá. Porque a revolução vem da juventude; vem da universidade. Por isso que é ela a primeira a ser atacada por fascistas e autoritários.
CEARÁ CRIOLO: A senhora teve professores negros?
ZELMA: Um, no Ensino Médio. E nenhum no resto da vida inteira.
CEARÁ CRIOLO: Então qual referência a senhora teve na vida pra se tornar professora?
ZELMA: Foi simplesmente pelo fato de a minha mãe dizer “você pode”. Eu não tinha referências. Eu tinha que ser eu a referência. Mas minha mãe sempre foi muito exigente. A criação dela foi e é pesada.
Ela dizia “vai”. Aí eu: “mamãe, mas lá não cabe”. “CABE”. “Mamãe, mas dói”. “AGUENTA”. Ela joga pesado demais! Você não pode ir lá e não trazer o que ela mandou tu buscar. Mãe, mulher negra, do sofrimento, de luta, ela sabe que não tem mole pra ela. As mães negras são duras.
Essa coisa de “ai, não aguento” não é nosso. Não é do negro. Do negro é a força. Porque senão nós não teríamos aguentado o processo de escravização. Eu tive que aguentar muita coisa. Tinha hora que eu caía, mas levantava. Levantava porque tinha que estar em pé.
Na minha universidade [Uece], eu vou até encontrar professores negros. Mas eles não vão querer pautar questões raciais. E eu sou obrigada a carregar essa luta, que é muito pesada. É dolorosa.
CEARÁ CRIOLO: Por que esses professores não pautam questões raciais?
ZELMA: Porque é mais fácil se adequar à regra do jogo. Se embranquecer. Eles pensam que vão sair ilesos. Mas não vão. Pensam que vão ter uma ascensão, que estão em outro viés, que vão ser reconhecidos e que vão ganhar bem. Não pautam e se embranquecem. Se enganam. Porque estar na universidade não é só entrar. É estar lá. É permanecer. E pra permanecer pautando esse debate você vai ter muita solidão.
Quem são meus interlocutores? Os alunos. Mas professor pra questionar um currículo branco, eurocentrado, que não discute sobre a gente, sobre a nossa história, sobre os nossos 400 anos de escravização, sobre a nossa resistência, que não conta os nossos movimentos sociais? Não tem.
Eu só vou dar voz a isso e ter autonomia pra dizer o que quero estudar no Doutorado. Aí eu já passei o primário, o ginásio, o Ensino Médio, já terminei uma Graduação, uma Especialização e um Mestrado pra começar a dialogar alguma coisa. A garotada de hoje tem muitas lutas pra travar, mas pode pautar a presença negra na universidade, por exemplo.
CEARÁ CRIOLO: Quando a senhora voltou pro ambiente acadêmico como professora, o que encontrou e como lidou com esse cenário de solidão?
ZELMA: Aí foi muito difícil. Aí foi muito ruim. Porque primeiro o negro quer um lugar no mercado de trabalho. E eu lutei pra ter esse lugar. Só depois que me estabeleço começo a olhar pro meu redor. E o meu redor não permite que eu cresça na questão racial. Era como se a toda hora o ambiente quisesse me puxar pra baixo.
Eu tava lá na Uece, mas as minhas questões não eram valorizadas. Não ecoavam positivamente no meu próprio departamento. Tudo foi com muita luta, com muito choro, com muita garra, com muito grito, com muita briga. Eu fui pra cima! Eu sempre apanhei, mas eu também bati muito.
CEARÁ CRIOLO: E as pessoas sempre têm a ideia de que o negro precisa ter uma postura passiva, agradecer por tudo…
ZELMA: É o que a gente chama de “complexo de tia Anastácia”, que é sempre aquela pessoa boa, que serve docinho, que tá sempre sorrindo, mas que não tem família, que você não sabe de onde veio nem pra onde vai, que tá ali só pra obedecer. Se você for assim, você fica nos cantos. Mas quando você chega numa universidade branca e quer pautar a questão racial, que como mulher negra quer um lugar de destaque, quer um laboratório, quer se sobressair, você vai ser puxado. Aí é onde você vai ver que tem o racismo. E que a discriminação troa. Porque ali você começa a ir pras relações de conflito.
Se você quiser saber a sua pertença racial, vá pra uma região de conflito. Por que a Polícia sabe bem direitinho quem é negro e quem é negra? Porque é conflito. Todas as vezes que as relações forem de conflito, que o grupo venha a temer que você pode tomar o lugar dele, vai ter a disputa. E eu fui pra disputa com as minhas amigas [na universidade] que queriam me negar uma sala pra fazer laboratório.
Agora, em 2018, a nossa categoria [assistente social] está pautando a questão racial como agenda política. E eu tô há quase 20 anos nisso. Aí uma amiga disse assim pra mim: “Zelma, você alguma vez se sentiu oprimida por nós?”. E eu disse que sim. Mas ela só se interessou por isso agora.
Sempre foi muito esforço pautar esse tema. É uma luta árdua. Esse lugar de estar à frente pra propor políticas como as cotas, por exemplo, é solitário. Porque nós estamos dialogando com uma universidade de pensamentos conservadores. Dói demais! É sofrido demais você falar para uma pessoa o que para você é óbvio. Pra você, aquilo está muito claro e pra outras pessoas é um absurdo. Isso cansa. É motivo pra desânimo.
Eu chorei quando tentava aprovar a política de cotas da Uece porque todos os discursos conservadores caíram sobre mim. Cheguei cansada e chorei. E um grande amigo me disse: “amiga, esse é o seu lugar. O que eu vou poder fazer é lhe ajudar em tudo. Mas é que eu não sei defender do jeito que você diz. Eu só sei lhe apoiar”. E eu pensava: “por que tem que ser tudo eu? Por que tem que ser eu pra tocar o sino e acompanhar a procissão?”.
Eu não queria estar só. Eu queria mais gente comigo. Da mesma forma foi a vinda aqui pra Coordenadoria. É sempre essa solidão. Dói demais. É muito cansativo. É muito duro a gente ter que sofrer tanto pra ter o óbvio. Tanta gente não faz esforço nenhum e tem tudo!
CEARÁ CRIOLO: A senhora disse que encontra nos alunos a figura de interlocutores. E a gente conseguiu pela primeira vez na história ter mais negros do que brancos em instituições federais. E muito disso a gente deve à política de cotas. A senhora acredita que o ambiente acadêmico estava preparado pra política de cotas e, consequentemente, receber essa avalanche de estudantes negros, muitos, inclusive, bem empoderados?
ZELMA: Estava não. Porque nós tivemos quase quatro séculos de escravidão. E a escravidão deixou herança e recriação. E as instituições brasileiras nunca foram democraticamente situadas.
Quando um negro ocupa a universidade, ele ocupa com uma visão de mundo. E essa minha visão de mundo foi considerada pela sociedade como perigosa. Como marginalia. Como criminalidade mestiça. Quando a gente chega pra tomar o espaço com as nossas cores, com as nossas identidades, com as nossas referências, com os nossos cabelos, com as nossas crenças, isso abala um país que lutou por um projeto de nação racista e antinegro.
A sociedade vai ser hierarquizada racialmente e silenciada. E você não deve dizer nada, já que a mestiçagem não foi criticada e se sobressaiu o mito da democracia racial! Então, todas essas questões vão ser sempre colocadas como de responsabilidade exclusiva nossa. Nós é que somos problemáticos. Nós é que somos complexados. As questões não vêm para ser discutidas no campo das relações sociais. Elas são jogadas pra debaixo do tapete. E do tapete individual de cada negro.
As instituições sociais estão forjadas por uma mentalidade racista. É por isso que eclode o conflito com os cotistas. E nós não estamos querendo dizer que não tenha conflito. Nós precisamos é ter estratégias e aceitar que precisamos criar e recriar as relações raciais no nosso país. De que forma vamos tratar. E aí, pra universidade, que é um universo de construção de conhecimento, isso é um perigo. Porque quem tem saber tem poder.
CEARÁ CRIOLO: Quando esses alunos entram no Ensino Superior, a senhora acredita que eles se enxergam no que é lecionado? As epistemologias estão adequadas? O currículo é coerente?
ZELMA: Nós temos um currículo coerente com o projeto de colonialidade: branco, elitista, racista e sexista. Os eixos raça, classe e gênero trazem todo o ranço do patriarcado e isso está posto nos processos pedagógicos.
Eu não posso dizer que toda a universidade está contaminada por um projeto eurocentrado. Não. Tá tudo junto e misturado. Principalmente com os avanços do final do século XX e começo do século XXI, com o movimento de reivindicação do direito à diferença, isso tem mexido muito. O que temos hoje? Temos projetos societários na disputa. E quem tiver mais força vai vencer.
CEARÁ CRIOLO: A senhora enxerga perigo de a política de cotas acabar?
ZELMA: Avisto isso a toda hora. É terrível. Porque toda a pauta dos direitos humanos está ameaçada. Nós vamos ter que criar estratégias. Porque quando estávamos no governo de esquerda, deitamos em berço esplêndido e não fizemos um trabalho miudinho, de base, que quando eu era estudante existia. Isso vai fazer com que a gente levante e tente fazer uma luta articulada. Não é só o chavão “ninguém solta a mão de ninguém”. É de verdade!
CEARÁ CRIOLO: A gente ainda demora muito pra ter uma representatividade negra maior na cúpula da universidade? Porque hoje quase todos os reitores do Brasil são brancos…
ZELMA: Acho. Nós ainda temos muita luta. Porque a nossa luta não é linear. A gente luta, luta, luta e, quando a gente pensa que já está lá, a gente volta. E volta não porque a gente queira. É porque estamos numa estrutura colonial. Num projeto racista e antinegro. As desigualdades e vulnerabilidades são tão ferozes que nos tiram as possibilidades até de organização.
Não é todo jovem negro que pode estar discutindo. A maioria tem que estar trabalhando. Ou tá preso. Tá morto. Nós somos ainda diminutos. A nossa luta tem que crescer. A gente tem que lutar e viver ao mesmo tempo. Não dá pra parar e fazer só a revolução. Porque a estrutura é muito pesada pra nós. A gente tem que se unir. O que a gente não pode é desistir. Temos que estar sempre nesse projeto dissidente. E quem nos ensinou isso foram os nossos ancestrais.
CEARÁ CRIOLO: Se fala muito das fraudes nas cotas. Como a senhora avalia a polêmica dos tribunais raciais?
ZELMA: Nós, equivocadamente, não estruturamos bem as políticas de igualdade racial e a dimensão da pertença racial. Veja que a pertença nossa é cor/raça. Pretos e pardos é que dá igual a negros. Essa classificação é antiga e incompleta. Ela data de 1872. Nós temos 100 anos que não discutimos com seriedade a questão racial no Brasil. Foi por isso que a gente pensou que só com a autoafirmação resolveria. Mas não resolveu. E não resolveu porque nós temos toda uma estrutura de supremacia de poder branco que não quer abrir mão dos lugares que eles consideram que é sempre deles.
Quando você tem um caso como o daquele cara do INSS que se pintou de preto é porque ele tem certeza da impunidade e de que aquele lugar é dele. Mas, pra atingir a igualdade racial, se não for pelas cotas, a gente vai inventar outra coisa. E isso a gente tem que deixar muito claro pra classe dominante. Eles têm que ter consciência de que nós não vamos desistir. Quando em 2022 acabarem as cotas das universidades e em 2024 acabarem as cotas do Governo Federal, nós vamos inventar outras ações afirmativas. Não existem só as cotas.
CEARÁ CRIOLO: Mas a senhora é contra as cotas?
ZELMA: Não. Eu sou crítica é ao método de autoclassificação. Porque ele não diz de todo. São muito velhas essas categorias. No Ceará, se você somar pretos e pardos, dá mais de 70%. Mas se você fizer uma peneira, nem todos os pardos vão estar do lado do negro. Muitos vão dizer que afirmaram ser pardos e não querem ser associados ao negro. A pardalização é um coringa. É o que não se define. Nós temos que ter mais estudo e mais categorias mais adequadas.
A coisa boa que apareceu pra indígena e negro é a cota. São as ações afirmativas. E nem essas eles podem ter porque a branquitude não permite. É por isso que precisamos das bancas de heteroidentificação formadas por pessoas que tenham conhecimento sobre a temática. Eu tenho trabalhado em muitas bancas e vejo como elas são importantes.
CEARÁ CRIOLO: Até porque essas bancas não se resumem aos avaliadores olharem apenas se a pele da pessoa é escura…
ZELMA: Não é isso, embora a banca, pelo racismo que impera na sociedade brasileira, que lhe discrimina quanto mais aspectos negroides você tiver, nós vamos fazer a aposta, neste momento, diante das fraudes, nos aspectos fenotípicos negroides.
CEARÁ CRIOLO: Em geral, na sua vida, a senhora é procurada para falar sobre o quê?
ZELMA: O povo pensa que eu sou o Google. Mas eu acho que eu tenho uma marca. Eu não sou muito reconhecida como gestora. Quando cheguei como gestora, já tinha meu nome feito na universidade. Foi lá que eu fui forjada. Pela resistência. Pela dissidência. Pelos alunos. Foram os alunos que me deram legitimidade. A minha legitimidade vem da aula. Eu me identifico dando aula. Eu estou no Governo, mas eu gosto é do debate, do diálogo, da interlocução.
CEARÁ CRIOLO: Professora, o atual Governo faz autocrítica em relação a questões étnico-raciais? Nós estamos falando de uma gestão que funciona num Palácio com nome de Abolição e nenhum negro está no alto escalão…
ZELMA: Mas aí é quando a gente tem que situar a máquina pública, que não é monolítica. Falar o que é um Governo e o que é o Estado. O que é essa máquina? Quem faz a máquina? E também: quem faz o Governo? Mas a forma como somos colocados dentro da estrutura do Governo mostra como esse projeto de colonialidade se faz presente. Nós estamos numa arena. Se você vem pra cá, saiba que você estará numa disputa. E nessa disputa nós não somos majoritários nem hegemônicos.
PERFIL.
MARIA ZELMA DE ARAÚJO MADEIRA.
É natural de Aroazes, no Piauí. Embora esteja coordenadora de politicas públicas para a promoção da igualdade racial do Ceará desde 2015, Zelma Madeira foi forjada no ambiente acadêmico. É graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), mestre em Sociologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Sociologia pela UFC. É professora efetiva da Universidade Estadual do Ceará (Uece), onde também coordena o Laboratório de Afro-brasilidade, Gênero e Família, o Nuafro.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.