É de conhecimento de todos que o tráfico fora uma empresa que comercializava seres humanos. Estima-se que, enquanto vingou o sistema escravista no novo mundo, foram sequestrados de suas terras cerca 12 milhões de africanos para a América. Destes, 40%, ou seja, quase a metade, foi trazida para o Brasil. Os primeiros povos africanos a serem traficados para a colônia de Portugal nas Américas foram os do grupo étnico-linguístico “banto.”
Quem são esses bantos?
Desenho de Johann Moritz Rugendas
Originários do noroeste do continente africano, onde atualmente estão localizados os países da Nigéria, Mali, Mauritânia e Camarões, os povos bantos eram agricultores, conheciam a metalúrgica e viviam em aldeias comandadas por um chefe, o Manicongo. Eles possuem diferentes idiomas (embora todos sejam derivados de uma mesma língua original) e têm diferentes tradições culturais.
O nome (“bantu” ou “banto”, não se refere a uma unidade racial). A sua formação e migração originou uma enorme variedade de cruzamentos. Existem aproximadamente 500 povos bantos. Assim, não podemos falar de uma “raça” banto, mas sim de Povo Banto. Isso significa uma comunidade cultural com uma civilização comum e linguagens similares. O radical ntu, comum para a maioria das línguas Bantu, significa homem/ser humano e ba é o plural. Portanto, “bantu” significa: homens/seres humanos.
Alguns países que atualmente falam a língua banto: Camarões, Gabão, Congo, República Democrática do Congo, Uganda, Quênia, Tanzânia, Moçambique, Malauí, Zâmbia, Angola, Namíbia, Botsuana, Zimbábue, Suazilândia, Lesoto e África do Sul. E encontraremos também influência do banto em toda a América, já que muitos desses povos africanos foram trazidos para cá como escravizados e ajudaram a construir as línguas americanas.
O tempo da travessia.
Segundo a historiadora Erica Turci, as embarcações geralmente transportavam entre 400 e 500 escravos, todos confinados num porão. Os negreiros (comerciantes de escravos) compravam escravos a mais do que sua embarcação comportava, pois sabiam que perderiam muitas das suas “mercadorias” durante a viagem, e assim superlotavam as embarcações. Uma viagem entre Angola e Brasil durava 35 dias. E entre Moçambique e Brasil demorava em torno de três meses. Os alimentos e a água potável transportada por esses navios eram insuficientes até mesmo para a tripulação (trabalhadores do navio), pois não existia nenhuma forma de refrigeração. 1
Bantos no Ceará
Para desenvolver minha dissertação, tive que realizar uma pesquisar no Arquivo Público do Estado do Ceará, na Biblioteca Pública Menezes Pimentel e no Instituto Histórico do Ceará para construir as histórias e vivências dos escravizados e africanos no Ceará do século XIX. Nessas instituições, tive acesso a fontes que me possibilitaram retirar do silêncio propositalmente imposto (por uma historiografia liberal-positivista) várias vivências, formas culturais e de resistências dos escravizados africanos e de seus descendentes. Entretanto, uma das questões importantes que essas fontes me revelaram (confirmando afirmações de alguns pesquisadores, a exemplo de Geraldo Nobre e Oswaldo Ridel) foi a presença predominante de um determinado grupo étnico-linguístico africano: os Bantos, na Província do Ceará.
As leituras dessas fontes apontaram, no que diz respeito à identidade do escravizado, liberto e livre, presente no Ceará do século XIX que, em sua maioria, esse grupo social era formado de crioulos, mestiços (leia-se cabra, pardo, mulato e cafuzo) e em menor número africanos. Quanto a esses, divididos em diferentes nações e etnias, eram identificados como de nação Angola e Congo, predominante, e de forma diminuta – Mina e Fula.2
Num passado não muito distante, era comum as produções historiográficas que tratavam do Brasil Colônia e do Brasil Império apresentarem os africanos divididos em dois grupos, dos quais são originários os diferentes grupos étnicos, que foram traficados para cá na condição social de escravos, a saber: bantos e sudaneses.
Nessas produções, os bantos são geralmente apresentados como fetichistas, brutos, submissos, feios e menos cultos. Já sudaneses eram vistos como o oposto, talvez por estarem mais próximos de civilizados, conceito construído pela cultura branco-ocidental, já que a esses era atribuído o rótulo de letrados e cultos.
Nei Lopes, pesquisador que há um bom tempo vem estudando a cultura Banto, questiona esses equívocos preconceituosos e estreitos:
Enredados, então, num juízo apriorístico, esses estudos sobre o negro brasileiro só viram as aparências: não souberam definir com clareza os conceitos de Banto e Sudanês; não mostraram os diversos contextos históricos em que esses Bantos vieram para o Brasil; não falaram das grandes civilizações florescidas nas partes meridional, central e oriental da África antes da chegada dos portugueses; não mencionaram a formidável obra de pilhagem e destruição que esses portugueses levaram a efeito em território africano; não escreveram sobre a heróica resistência dos africanos à escravização e ao domínio colonial; não viram a República Livre de Palmares como um Estado criado e dirigido por Bantos; confundiram etnias com portos de embarque; não estudaram os Bantos enfim.3
Portanto, é um grande equívoco e preconceito continuar reproduzindo essa visão distorcida desse grupo étnico-linguístico.
Dos grupos étnico-linguísticos que fazem parte dos bantos, os que se destacaram no Ceará foram os congo-angolanos. Tive acesso a vários e diferentes documentos e fontes nos quais esses aparecem. Sem falar na presença da cultura e do vocabulário aqui presente.
Reminiscências africanas no Ceará (língua Quimbundo e Quicongo).
Cotidianamente, falamos uma quantidade significativa de palavras de ordem banto no geral e especificamente de origem do Quimbundo e Quicongo, incorporadas ao nosso linguajar, que retirei do dicionário Banto no Brasil de Nei Lopes.4
Apenas a título ilustrativo, destaco algumas: arenga, babá, babaca, bagunça, balela, banda, banzo, barafunda, batuque, bingo, boboca, bomba, bunda, caboclo, caçamba, caçula, cafuné, calombo, camburão, candango, canga, caolho, capanga, capenga, cazuza, choro, cochilar, cuíca, dendê, engambelar, farofa, fofoca, fubá, fuzarca, ginga, gangorra, iaiá, jiló, lero-lero, macumba, maluco, mambembe, mamona, mandinga, manjericão, marimbondo, matutar, matuto, miçanga, milonga, moleque, puta, quilombo, ranzinza, samba, senzala, tamanco, tanga, tango, xepa, xingar, zabumba, zangar, zanzar, zombar, zonzo, zumbir, zunzum.
Entretanto, uma palavra muito conhecida do cearense, que poucos sabiam que era africana, possivelmente do Quicongo, que encontrei no dicionário de Lopes: Caponga (para quem não conhece o Ceará, esse é o nome de uma praia localizada na cidade de Cascavel).
Segundo Nei Lopes, Caponga significaria “linha sem anzol e com uma bola com a qual o pescador atrai o peixe para pescá-lo com a mão” ou “pequeno lago de água doce formado em areais litorâneos.” Provavelmente do quicongo, (lingua vili) Ponga: laço, armadilha, tendo a primeira acepção derivado da segunda, talvez por ser esse tipo de pesca em geral praticado em pequenos lagos /// BATER CAPONGA: pescar à mão.5
Outra presença dessa cultura congo-angolana no Ceará, dentre várias (Festa do Congo, capoeira, Maracatus e a dança do cacete) é o samba.
O conhecido samba nasceu do semba, angolano. O semba é dançado como se fosse um sapateado em ritmo mais acelerado. “A matriz do samba é angolana. O toque do samba, a percussão, a rítmica, isso é bantu. Todas as formas musicais reconhecidas como afro-brasileiras são bantu”, explicou Luena, citando o samba, o maracatu, o jongo e o batuque. 6
O samba por aqui, ao que parece, era atividade de lazer mais difundida e popular entre os cativos, libertos e livres, tendo como frequentadores os africanos. Era uma atividade lúdica, popular, de lazer, mas também espaço de conflitos. Documentos e jornais estavam repletos de anúncios de escravizados que se evadiam, identificados como sambistas e desordeiros versados na arte do samba.
ATTENÇÃO
Fugiram no dia 23 do corrente da serra do Pereiro do sitio Penedo do baixo assignado, os seus dois escravos André, cabra preto, altura regular, pés grandes, vista ligeira, uma pequena cicatriz no rosto do lado esquerdo,joga cacête, é cantador e gosta de samba e de beber, tem 25 annos de idade, pouco mais ou menos; Luiz mulato, baixo e grosso, rosto limpo, cabello crespo ao longe, boa presença e moderado, pés grandes, e gosta de aguardente, com 23 annos de idade mais ou menos. Há presentimento que fossem assentar praça, para o que se previne as autoridades, assim como se roga a qualquer pessoa do povo que os pegar e os entregar ao abaixo assignado no dito logar acima, ou no Ceará ao Sr. Cypriano Moura e Silva, no Aracaty ao Sr. Bonifácio Pereira da Costa Queiroz, em Pernambuco ao Sr. Antonio Alberto de Souza Aguiar, será generosamente recompensado.
Penedo, 23 de janeiro de 1868
Manoel Rofimo Moura Barbosa 7 (Grifos meus)
A conquista dos espaços da festa, do batuque e do samba não representava apenas uma atitude transgressora da ordem estabelecida. Esses espaços frequentados por aqueles vistos como alvo dos traficantes – escravizados, libertos e livres – tornavam-se lugares de sociabilidade e autonomia, onde se estabelecia o contato tão negado e proibido pelos códigos de postura que continham artigos que instituíam o controle e a disciplina dos negros, em especial dos cativos, impedindo-os de se organizarem em grupos, a exemplo do “artigo 21” do “Código de Postura de Sobral de 1867”, que diz: “Ficam prohibidos os batuques ou sambas dentro da cidade e povoações de seu município. O dono da casa em que elles tiverem lugar será multado em quatro mil réis ou quatro dias de prisão; ficando porém relevado de multa aquelle que apresentar licença de polícia”8 .
Estes espaços eram lugares de sociabilidade e de memória. A preservação da cultura africana era uma fonte de fortalecimento da identidade étnica, seja iorubá ou congo-angolana, como é nosso caso. Portanto, em muitos dos casos, reprimir, controlar e limitar esses espaços de conquistas dos negros fazia parte de uma das lógicas do escravismo para evitar que o escravizado reconstruísse e preservasse sua identidade. Afinal, afirma Cortês, o mais difícil para o branco não era fazer do africano um escravo e sim impedi-lo de continuar sendo africano9.
Obs: Continuaremos essa temática na próxima coluna, em 16/11.
1 Disponível em: https://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/bantos-quatrocentos-grupos-etnicos-falam-linguas-bantas-atualmente.htm.
2 NOBRE, Geraldo. Ceará em preto e branco – 1988 – Ano do Centenário da Abolição da Escravatura. Fortaleza; RIEDEL, Oswaldo de Oliveira. Perspectiva antropológica do escravo no Ceará. Fortaleza, UFC, 1988.
3 LOPES, Nei. Banto, Malês e Identidade Negra. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1988. Págs. 3 e 4.
4 Lopes, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil.Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
5 Idem. Pág.75.
6 Disponível em:https://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2014-12/influencia-de-angola-e-vista-em-varios-tracos-culturais-do-brasileiro#: ~:text=A%20influ%C3%AAncia%20africana%20no%20Brasil,mais%20contribu%C3%ADram%20para%20essas%20influ%C3%AAncias.
7 Jornal do Ceará – Anno, nº 41 – Quinta feira 20 de fevereiro de 1868. Biblioteca Pública do Ceará – Jornais Microfilmados. Pág. 4
8 SOUSA. Raimundo Nonato de. Rosário dos Pretos: Irmandade e Festa, 1854-1884. Rio de Janeiro: UFRJ. Dissertação de Mestrado, 2000. Pag. 49.
9 OLIVEIRA, Maria Inês Cortês de. O Liberto; o seu mundo e os outros. Universidade Federal da Bahia, 1979.[Tese de Mestrado]. Pg. 53
Graduado em Ciências Sociais e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É pesquisador da Cultura e História do Negro no Ceará.