Quando RuPaul Andre Charles começou a defender os direitos das populações negra e LGBT nos Estados Unidos, em 1985, eu sequer era nascido aqui no Brasil. Para ser franco, só ouvi falar nele quatro anos atrás. À época, acabara de me tornar assinante Netflix e um reality do catálogo me chamou a atenção. Assisti, devorei todas as temporadas em uma semana e agora descubro que RuPaul’s Drag Race alcança o impressionante marco de DEZ ANOS no ar.
Sim, tem DEZ ANOS que uma drag queen negra dos Estados Unidos é sucesso de audiência por revelar pro mundo outras drag queens maravilhosas. Uma década e 14 temporadas veiculadas, com a 15ª preste a estrear, em 22 de fevereiro, e, ao que tudo indica, com a participação de Pabllo Vittar e Britney Spears já no primeiro episódio.
Ator, cantor, compositor e modelo, RuPaul apresenta aos 58 anos um programa fundamental não só para a cena gay. O reality é um patrimônio humanitário. Porque vai muito, mas muito, além de homens que se vestem de mulheres. Isso, na verdade, é o que menos acontece nos episódios. Os participantes passam 80% do tempo fora das personagens. A montagem só acontece para o desafio principal. O que preenche o tempo são dramas pessoais, familiares, sociais, psicológicos, identitários e comerciais.
RuPaul completa dez anos no ar por mérito próprio. E merece todo o nosso louvor. Mas, como negro, me vejo na obrigação de levantar um porém. Sinto falta de mais drag queens negras. É bem verdade que as temporadas mais recentes foram as mais multiétnicas de todas. Essa lógica também vale para a season que está prestes a iniciar. Se compararmos, no entanto, a quantidade de negras vencedoras do programa com a de brancas que foram coroadas a diferença é desleal.
Das 14 temporadas veiculadas até agora, apenas em quatro participantes negras venceram: Bebe Zahara Benet (Season 1), Tyra Sanchez (Season 2), Raja (Season 3) e Bob The Drag Queen (Season 9). Nas quatro temporadas dedicadas às melhores das melhores (chamadas All Stars), por exemplo, nunca uma negra ganhou.
É claro que foi importante Bebe, uma negra marroquina, vinda de uma África historicamente massacrada, invisibilizada e estigmatizada, ter sido a campeã da temporada de estreia. E de Tyra e Raja manterem a coroa com o povo negro. Mas de outras 11 temporadas apenas em uma havia participante (Bob) com “carisma, uniqueness, nerve and talent”, o famoso quarteto de características que RuPaul tanto procura nas drags?
De forma alguma defendo que drags ganhem o programa unicamente por serem negras. Não é isso. Mas existe uma desproporção clara aí que precisa ser corrigida. São DEZ vencedoras BRANCAS contra somente QUATRO vencedoras NEGRAS. Afinal, o reality existe pela representatividade ou não?
Ah, Bruno, mas é um programa de drag queens e não de pessoas pretas. Bom, fica difícil desvincular a etnicidade quando o apresentador é negro e publicamente declarado como ativista da população negra.
Se não encontra candidatas negras à altura de ganhar a disputa, que o programa tenha provas (especialmente as de maior visibilidade) questões etnicorraciais. Em vários momentos, e momentos de temporadas distintas, o reality peca por não explorar melhor as competidoras negras e questões a elas relacionadas. Ou por, na contramão do que a comunidade negra precisa, colaborar com estigmatizações.
No Brasil, por exemplo, ser travesti é ter uma vida estigmatizada inclusive (e principalmente) na comunidade LGBT. Há um preconceito IMENSO! E muitas das drags que sofrem agressões nas ruas são negras. Negras como RuPaul, só que nascidas no país que mais mata LGBTs no mundo. Além de proteção do Estado e de políticas públicas de inclusão social, essas travestis precisam se ver na televisão. Precisam sentir que podem ser o que elas quiserem. Inclusive (e principalmente) travestis.
E isso não vai acontecer, convenhamos, com um programa de drag queens formado apenas por travestis brancas. Há temporadas do reality nas quais de 10, 12 participantes, somente UMA era negra. E, coincidência ou não, ela sequer chega à final. Quando uma drag negra e pobre brasileira vai se sentir representada assim?
Nunca.
As pretas de RuPaul precisam se multiplicar.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.