Lucas desistir do BBB após a violência psicológica de toda ordem que sofreu de outros participantes desde o começo do programa é, sim, grave. Porque evidencia uma dinâmica opressora que precisa ser questionada e criticada por nós, público, para em edições futuras não acontecer de forma tão permissiva como agora, com o aval silente da produção do programa. É um problema nosso, não da Globo.
Porém, para além do reality, convido você a pensar o seguinte: lá dentro, Lucas desistiu da luta pelo sonho de ganhar o prêmio, virar milionário e, enfim, comprar uma casa para a mãe. Mas e aqui fora, na vida real? Muitos jovens como ele desistem não só de sonhos. Desistem da vida. São submetidos às mesmas agressões verbais às quais ele foi e cometem suicídio, um assunto tabu nas pautas familiares e ainda mais dentro das empresas de comunicação e entretenimento.
Não digo com isso que a dor do Lucas é desimportante. Ela precisa ser considerada. Ele deve ser acolhido, acompanhado, aconselhado, medicado (se necessário for)… E espero mais: que tudo isso paute a urgência de tirarmos a saúde mental do campo do estigma. Na atual conjuntura de mundo, não dá mais pra gente tratar terapia (para citar só um exemplo de abordagem no trato do sofrimento psicológico) como “coisa de doido”. Por um simples motivo: cuidar da saúde mental não é coisa de doido. Se cuidamos do corpo, temos que cuidar da cabeça também.
Mas muitos jovens negros e pobres, como Lucas, não têm a oportunidade de cuidar do emocional. Mal têm como cuidar do corpo. Os sentimentos, as emoções, o choro, tudo isso é negligenciado. Porque todos temos que ser machos. E macho não chora. Macho é macho. Viril. Másculo. Destemido. Quase assentimental.
É aí onde mora o problema. As violências sofridas vão acumulando, esse jovem negro não pede ajuda por medo de ser tachado de doido (ou a rede pública de atendimento psicossocial não funcionar ou sequer existe na comunidade dele), ele continua somatizando tudo…até que explode. Deixa a vida, um mundo de possibilidades. E, definitivamente, não precisa ser assim.
Muito embora tenhamos que respeitar o direito à individualidade de cada pessoa de tirar a própria vida, mas algo para isso não acontecer deve, pelo menos, ser ofertado a quem pensa agir assim. Suicídio é questão de saúde pública. Como o Ceará Criolo já discutiu no especial Vidas Negras Importam, esse assunto está longe de ser fraqueza espiritual, frescura, tentativa de chamar atenção ou qualquer coisa que o valha. Sofrimento psicológico é uma condição que precisa de acompanhamento especializado. Não de julgamentos ou dedos em riste diante do rosto de quem sente essa dor. Isso só aumenta as chances de uma atitude extrema ser tomada.
Ainda bem que, ao sair do programa, Lucas terá uma rede de apoio importante aqui fora. Não só da família, mas de fãs que conquistou com o jeito moleque e a humildade de admitir que, como qualquer ser humano, também erra e pode melhorar. Pai e mãe já abraçaram a sexualidade dele. Amigos estão se mobilizando em campanhas para arrecadar dinheiro e fazê-lo voar ainda mais. Porém, nem todo caso “termina” assim.
Todo dia, milhares de jovens negros, favelados ou não, são achincalhados, expulsos de casa e mortos por tornarem pública uma orientação sexual ou identidade de gênero diferente da socialmente aceita. Por não serem heterossexuais cisgêneros, ficam expostos a todo azar. Por serem negros, mais ainda. É um debate delicado, que precisa ser enfrentado com honestidade e franqueza.
Já vi isso acontecer inúmeras vezes. Amigos sem uma experiência inteira de suas sexualidades por medo de os pais os colocarem na rua, de nessa mesma rua serem agredidos, de perderem o emprego, de não terem o básico à sobrevivência, de morrerem. É uma pressão esmagadora. Sufocante. Tal qual foi para Lucas, que preferiu continuar sendo ele mesmo e desistir momentaneamente de um sonho a continuar vivendo esse sonho sob o preço de prejudicar ainda mais a própria saúde mental.
A saída dele do BBB foi um ato de coragem e respeito aos próprios limites. E está tudo bem. Todos podemos descansar. É direito de qualquer um parar a caminhada para continuar amanhã, daqui um mês, ano que vem ou nunca mais. Isso só não precisa acontecer com a pessoa estando sozinha, deliberadamente isolada. Lucas não esteve. Não está. Os jovens negros Brasil afora que enfrentam violências parecidas também não devem estar.
Olhemos para eles. Para o lado, onde muitos deles estão e nós, propositadamente ou não, ignoramos ou tratamos esse sofrimento como desimportante. Repito: saúde mental não é coisa de doido. Doentes somos nós, enquanto sociedade, que insistimos em negligenciar um assunto tão caro a todos e que tem tomado tantas vidas todo dia, a todo momento.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.