O universo masculino nos diz desde cedo que vaidade é coisa de mulher. Estilo é coisa de mulher. Beleza é coisa de mulher. Por isso, uma vida inteira eu ouvi que cabelo é um componente importante para a identidade feminina. Mais ainda para a formação identitária da mulher negra, que por anos é induzida a alisar, cortar e pintar em tons e modelos geralmente opostos ao da sua beleza natural. E, ao descobrir o poder que o fio afro, o fio dela própria tem, desabrocha pra si e pro mundo.
Preciso dizer que comigo também foi assim. Encontrei no meu cabelo um ponto fundamental para me olhar no espelho e me reconhecer como um homem negro. Já disse em outras oportunidades o quanto me descobri tardiamente um indivíduo “de cor”. Aos 32, pra ser preciso. Mas este ano, sete meses atrás, ao colocar box braids, me olhei no espelho e disse pra mim mesmo: “é esse o Bruno que quero ser.”
Não fiz por modinha, influenciado por amigos, nada disso. Fiz por estar num momento de me permitir à minha negritude e querer ver como me sentiria usando cabelos grandes e trançados. Pois bem. Me senti uma divindade. Foi como me enxergar um Bruno mais forte, mais consciente de si mesmo, um Bruno capaz de fazer tudo. Foi me reconhecer.
Pus o cabelo para marcar um momento importante de minha vida. Meu nascimento nas letras. Meu surgimento como escritor. O lançamento do meu primeiro livro. Palavras dedicadas à minha mãe, uma sertaneja derramada pra dentro de si. Entrei no teatro, lotado de gentes queridas, testemunhas da literatura me parindo, como um rei. E não só por conta dos aplausos. Eu sentia meus cabelos tal qual uma coroa. Uma coroa daquelas bem lustrosas, brilhantes, cravejadas de pedras preciosas, sabe?
E permaneci assim no dia seguinte. E no seguinte. E no seguinte. Cada olhadela no espelho aumentava a certeza de ter ali, no topo da cabeça, um penteado de realeza. Uma urgência não de um futuro bom, um afrofuturo, mas de um presente nomeado por mim. Definido por mim.
Até que retirei as tranças e não vi mais o Bruno de sempre, completamente modificado depois de três meses com outro cabelo. Os cachos curtos me remetiam ao homem negro que precisou de 32 anos para se reconhecer como tal. Um completo ignorante sobre o que é ser alguém fora do padrão branco esperado por todo mundo.
Colocar novamente os braids mexeu com minha autoestima. Me sinto mais negro com eles. Mais bonito mesmo. Mais Bruno. Algo difícil de explicar pra quem não é negro ou não alcançou ainda a importância de ter uma identidade negra, própria e sólida.
Por óbvio que essa minha identidade não está completa. Vou construí-la no decorrer de minha vida. Porque todo dia um pedaço novo meu, do Bruno que se descobriu negro tardiamente, se revela. Só posso dizer que tem sido um processo bonito e doloroso.
Doloroso porque é inevitável perceber os olhares e ouvir perguntas impertinentes a respeito do porquê dos braids. É você entrar no supermercado e uma estranha se sentir no direito de perguntar: “você colocou ISSO pra ter mais ou menos trabalho?”. É estar no meio da rua e um rapaz, também estranho, perguntar “como faz pra lavar ISSO?”. É estar no shopping e a garota pegar numa trança enquanto diz “ah, é cabelo falso.”
Lidar com situações assim é mais um jeito de a negritude da gente ser colocada em questão. Ser questionada. Ser tratada como um acessório, quando na verdade é a espinha dorsal de uma das minhas identidades enquanto sujeito. Se meu cabelo interfere no modo como eu me percebo no mundo, por óbvio que ele é um marcador social decisivo para minha maneira de encarar a vida. Consequentemente, vai determinar relações sociais, trabalhistas, familiares, sexuais, gastronômicas… Toda a minha negritude é atravessada por essas questões, da mesma forma que elas são modificadas pela minha negritude.
Definitivo seria se todo negro tivesse a experiência de notar a própria beleza. De controlar a maneira como se relaciona com ela. Não tenho dúvidas de que a negritude teria estigmas muito menores. Ou teríamos mais indivíduos orgulhosos da própria etnia, em vez de ainda hoje termos irmãos com tanta dificuldade de assumirem a negritude que carregam dentro e fora de si.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.