Hoje maioria nas instituições federais de ensino superior do Brasil, os estudantes universitários negros são, um a um, resistência ao racismo. Rompem um silêncio histórico. Aquilombam-se e são quilombo. Reivindicam novos espaços. Novos poderes. Novas representações.
“Se a educação sozinha não transforma a sociedade,
sem ela tampouco a sociedade muda.”
Paulo Freire, patrono da Educação brasileira.
Na segunda nação mais negra do planeta, ter diploma de “dotô” foi coisa de branco – e filho de rico – durante muito tempo. Menos de duas décadas atrás, em 2000, pretos e pardos eram apenas 2% dos estudantes universitários brasileiros. A história caminhou pouco mais de meio milênio desde o início da colonização europeia e só agora o cenário começa a se inverter.
Foram necessárias revoluções, perseguições, mortes e inúmeros, incontáveis embates políticos para 131 anos após a abolição da escravatura o Ensino Superior do Brasil ter, pela primeira vez na história, um corpo discente majoritariamente negro. Eles juntam-se em 51%, conforme pesquisa por amostragem da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, a Andifes.
São alunos que por si representam quilombos afetivos e, quando juntos, formam um grande quilombo acadêmico. Uma frente de proporções continentais contra a discriminação étnico-racial e em prol da preservação de uma gente tão fundamental para a formação do povo brasileiro e ao mesmo tempo tão invisibilizada.
“A gente tem que estar mais não só na cadeira de aluno. Eu sinto muita falta de ter negros como professores, coordenadores e diretores. Vejo muitos em serviços gerais, como porteiros… Eu pretendo continuar no espaço acadêmico. Tenho produzido mais artigos e sonho em ser professor para colocar em pauta questões raciais. A galera está ligada na importância desse tipo de debate. Eu mesmo hoje em dia reparo na cor de todo mundo. E faço isso porque a universidade não está me preparando pro mercado; ela está me preparando pra vida. E pra vida a gente tem que ter uma visão diferente”, diz Lucas Mathaeus Diniz Magalhães.

Aos 28 anos, o jovem cursa Letras/Espanhol na Universidade Federal do Ceará (UFC). Se reconhece negro e está na segunda formação. A primeira foi na rede privada. Agora, pela primeira vez, vive a efervescência da universidade pública. Na UFC, o número de alunos autodeclarados pretos e pardos supera os 65% (também segundo pesquisa por amostragem da Andifes) dos quase 30 mil regularmente matriculados nas graduações.
O número é bem maior do que a média nacional (de 51%). Por isso, ao mesmo tempo em que olham pro futuro, reivindicando ainda mais ampliação de direitos e representatividade, jovens como Lucas são também retrato de resistência após um tempo recente, quando o direito à educação era negado ao povo preto inclusive com a chancela do Estado.
Educação essa que foi determinante para definir os rumos de Déllio Willians, de 28 anos. “O projeto da família era que assim que eu terminasse o segundo grau fosse trabalhar vendendo sapato, nessas lojinhas de Centro. Se eu não tivesse conseguido entrar na faculdade, provavelmente era o que eu estaria fazendo até hoje. Não diminuindo esse tipo de trabalho, mas eu não teria conquistado tantas coisas como conquistei. E também não seria tão consciente quanto sou hoje.”

Déllio está na segunda graduação. Concluiu Farmácia e hoje estuda Economia. Ingressou em ambos os cursos da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) pela política de cotas. O estado tem um dos maiores percentuais de negros do Brasil e forte traço de religiões de matriz africana.
“Na primeira graduação, a maioria das pessoas era branca e classe média. Minha sala agora tem bem mais negros. Mas as pessoas continuam no apartheid de sempre. E eu achava que no Ensino Superior as pessoas eram mais abertas. Hoje eu sei que isso se explica porque nós, negros, estamos ocupando espaços que elas não querem que frequentemos. Só que hoje eu tenho o empoderamento de tomar aquele lugar como meu de fato. Vou mesmo e exijo respeito.”
É nesta perspectiva que a geração de agora sente a necessidade – e o dever – de ocupar ainda mais espaços de poder. Inclusive – e principalmente – dentro da própria universidade. Até mesmo naquelas nascidas para a promoção da união dos povos, como é o caso da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, a Unilab.
Com sede em Redenção, município cearense que primeiro libertou os escravizados (em 1884, quatro anos antes, portanto, da Lei Áurea), a entidade é referência na pauta étnico-racial e tem turmas quase que totalmente compostas por negros. É lá onde Mike Andrey, de 21 anos, cursa o bacharelado interdisciplinar em Humanidades.

“Meu curso é dirigido por uma mulher negra. E eu vejo que o lugar que ela ocupa é de muita resistência, visto que em várias situações ela, por ser mulher preta, é tratada, inclusive por alunxs, com desrespeito e questionamentos sobre o cargo. Isso não aconteceria se fosse um homem branco o diretor. Precisa sim que pessoas negras ocupem mais espaços como esse de forma a subvertê-los, e não apenas assimilá-los, como acontece com muitxs. Porque hoje as pessoas pretas em espaços de poder quase sempre estão em posição inferior às brancas. Ou seja: nas tomadas de decisões, a estrutura sempre vai fazer com que os sujeitos privilegiados, os brancos, sejam escutados e tenham suas pautas acima das demais”, acredita Mike.
Doutora em Sociologia, Marcilene Garcia avalia no TVE Debate que o Ensino Superior brasileiro ganhou com a ampliação da presença do negro porque alunos pretos e pardos – em especial os cotistas – são os que em geral apresentam menores índices de abstenção e melhores notas. “A ausência de negros nos espaços, a subrepresentação, não pode, em hipótese alguma, ser vista como algo natural. O que incomoda é pensar que o filho da empregada preta está estudando com o filho do patrão branco. Isso mexe com a nossa história.”

Mexe com histórias coletivas e individuais. “Eu não consigo imaginar como seria a minha vida se eu não tivesse curso superior. Só posso pensar que teria sido muito complicada. Porque hoje em dia é quase que obrigatório ter um curso superior pra se colocar bem no mercado. Até os empregos que antes não tinham tanto requisito hoje exigem mais. E muitos jovens que não têm oportunidade vão trabalhar porque precisam e deixam o estudo de lado. Ou vão trabalhar pra pagar o estudo. Eu acho que estaria por esse caminho, porque acredito que a educação transforma a vida”, sintetiza o publicitário Renan Rodrigues, de 27 anos.
SAIBA MAIS
O Brasil só tem menos negros do que a Nigéria.
A Andifes (www.andifes.org.br) é a representante oficial das universidades federais na interlocução com o Governo Federal.
A primeira constituição brasileira é oficialmente denominada Constituição Política do Império do Brasil. Foi elaborada por um conselho, a pedido do imperador Dom Pedro I.
Estudos indicam que na África, em pleno regime apartheid, era mais fácil um negro ingressar na universidade do que no Brasil dos anos 2000, tamanha a desigualdade socioeducacional brasileira.
A pesquisa da Andifes ouviu 424.128 alunos em instituições de todo o Brasil e 5.652 alunos só na UFC.
DICIONÁFRICA
QUILOMBO
Palavra de origem na língua banto. Significa “povoação ou fortaleza”. No Brasil Colônia e no Brasil Império, era sinônimo de resistência e liberdade cultural, religiosa e do trabalho forçado para aqueles negros que conseguiam fugir dos senhores brancos.
FOTO EM DESTAQUE: Matheus Leite.
MODELOS: Herbert Gonçalves, Bárbara Inês, Marcos Araújo, Patrícia Souza e Daiana Damasceno.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.