“— É pena você ser preta.
Esquecendo-se êles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça êle já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta”.
Um amigo que lia Quarto de Despejo enviou esse trecho dizendo ter lembrado de mim. Fiquei extremamente honrada e emocionada. Eu já sabia da existência de Carolina de Jesus, mas bem pouco. Ainda hoje sei menos do que deveria.
Mineira, ela nasceu em Sacramento, em 1914. Passou por Franca, interior paulista, e depois mudou-se para a capital, São Paulo. Foi aluna do Colégio Allan Kardec entre 1923 e 1924. Moradora da favela do Canindé, passou fome, foi catadora de lixo, auxiliar de cozinha e empregada doméstica. E conseguiu, com apenas dois anos de estudo, reunir em casa mais de 20 cadernos com romances, contos e poesias retratando o cotidiano da comunidade.
O primeiro livro dela foi publicado em 1960. Quarto de Despejo fez um sucesso estrondoso. Teve três edições, 100 mil exemplares vendidos, foi traduzido para 14 idiomas e comercializado em mais de 40 países.
Além de chamar a atenção pelo relato fiel contando o dia a dia da favela, o best seller trouxe para o debate político e social o problema da moradia. Suas vendas ultrapassam 1 milhão de exemplares só no Brasil. Em Portugal, foi censurado pela ditadura de Salazar. Nos Estados Unidos, ganhou destaque na revista Times. Por aqui, virou peça de teatro e chegou a superar Gabriela, de Jorge Amado, e Furacão sobre Cuba, de Jean Paul Sartre, ficando em primeiro lugar na lista dos mais vendidos.
Foi consumida pela classe média como objeto de consumo e depois deixada de lado. “Uma negra, favelada, semi-analfabeta que muita gente achava que era impossível que alguém naquela condição escrevesse aquele livro”, comentou o jornalista Audálio Dantas, em entrevista a EBC.
As demais publicações não tiveram a mesma repercussão. Carolina Maria, como se apresentava às redações antes de o Quarto de Despejo, ainda escreveu Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome e Provérbios (1963). Diário de Bitita foi publicado no ano de sua morte, 1977. Suas obras póstumas são Um Brasil para Brasileiros (1982), Meu Estranho Diário (1996), Antologia Pessoal (1996), Onde Estás Felicidade (2014) e Meu sonho é escrever – contos inéditos e outros escritos (2018).
Sonhando em ser cantora e atriz, ainda lançou um disco em 1961 com mesmo título de sua primeira obra e 12 canções de composição própria.
Sua “mini biografia, um recorte de sua vida” – como chama a professora e pesquisadora, Sirlene Barbosa – acaba de ganhar o prêmio especial no festival que é um tipo de Cannes no mundo dos quadrinhos – o Festival de Quadrinhos de Angoulême.
“A história dela é muito triste, muito pesada, muito para baixo. Mas, ao mesmo tempo, ela tem muita força. Então, apesar de ter essa miséria, fome, a situação degradante que ela vivia, por outro lado ela tem muita força e persistência. E supera tudo. Mesmo diante daquelas dificuldades, ela consegue seguir em frente, levantar todos os dias e não desistir. Isso é o principal”, comenta João Pinheiro, ilustrador e roteirista do premiado livro Carolina.
Até os dias de hoje, tentam silenciar Carolina Maria sem lhe dar o espaço devido. Mas a “escritora favelada”, como era conhecida, teima em brilhar conquistando leitores e prêmios mundo afora.
Publicitária. Movida por decibéis, apegada ao escurinho do cinema e trilha o aprendizado de ser uma mulher preta. Trabalhou em agências de Fortaleza e Salvador ao longo de 10 anos. Hoje responde pela Mídia na Set Comunicação, house da Educadora 7 de Setembro.