A famigerada frase “Tem Casa Grande que vale a pena”, postada nessa sexta-feira (16/10) por Fernando Haddad (PT), mostra uma faceta cruel da nossa política: o quanto parte da esquerda tem certeza de ser proprietária dos negros e dos movimentos negros brasileiros. E mais: constata a urgência dessas figuras e partidos praticarem a autocrítica.
Não pegou a visão? Vamos lá. A expressão “Casa Grande” não é apenas o sobrenome de um comentarista famoso da Globo que essa semana criticou o bolsonarismo, a censura do atual governo sobre atletas e a contratação de um estuprador por um dos maiores clubes de futebol do país. Ela remete às teorias do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre sobre a formação do povo brasileiro. Está, inclusive, no título da sua principal obra (“Casa Grande & Senzala”), na qual nega a existência do racismo no Brasil e defende a tese de existir por aqui uma democracia racial. Ou seja: todos nós temos as mesmas oportunidades e direitos.
É por isso que o trocadilho de Haddad é racista e infeliz: racismo existe e não há democracia racial alguma no Brasil, como constatamos todos os dias. E a demora do petista para admitir o erro é sintomática. A princípio, na verdade, diante da repercussão extremamente negativa da postagem, Fernando disse ter feito uma ironia. Não foi. Ele praticou o que chamamos de racismo recreativo, quando comentários racistas são feitos camuflados de humor. Humor questionável sempre, portanto.
Não assumir prontamente a responsabilidade e demorar horas para se desculpar pela prática racista, fazendo isso só no dia seguinte, após receber uma enxurrada de críticas da opinião pública, prova apenas o quanto falta de autocrítica a ele e a segmentos políticos que historicamente caminharam ao lado dos movimentos negros e, por isso, arvoram-se do poder de falar o que bem entendem. Mas vale frisar: partido político nenhum é proprietário de negros e dos movimentos negros brasileiros. Nenhum.
Muito embora sim, devemos admitir, foi a esquerda a vertente política que mais defendeu e defende pautas dos movimentos negros, esses movimentos negros são independentes. Podem até ter identificações com sigla X ou Y, mas não pertencem a ninguém. E não pertencem a ninguém pelo fato de estarem aqui muito antes de todos os partidos sequer existirem. Não nos coloquem amarras! Não novamente.
Aqui sequer havia direita ou esquerda, institucionalizadas ou não, quando negros escravizados e arrancados da África iniciaram resistência à exploração, abandono e morte do nosso povo. Isso já era movimento negro. São, portanto, séculos de articulação política entre nós. Sim, arregimentar iguais para uma luta comum é fazer política. Na verdade, isso é que é fazer política de verdade, e não essa que está aí, das cédulas de 200 reais escondidas na cueca do vice-líder de um governo direitista.
Passado nenhum de defesa dos direitos de minorias, quaisquer sejam elas, credencia quem quer que seja a agora ter fala preconceituosa e justificá-la como sendo uma ironia ou uma brincadeira. Racismo não é ironia. Racismo não é brincadeira. Racismo é crime. E deve ser tratado como tal, cometa o crime quem cometer.
Já passou da hora de determinados segmentos políticos perceberem o quanto estão equivocados em sentirem-se detentores de representatividades exclusivas. Haddad, por exemplo, é um homem branco, professor universitário, esquerdista e cumpriu nas eleições de 2018 um papel importantíssimo para derrotar a loucura bolsonarista. Não conseguiu, infelizmente. Mas isso – nem o fato de ser aliado de qualquer movimento negro – o dá procuração para falar em nome do povo negro, muito menos de tecer comparativos que nos exponham ao deboche.
Enquanto a esquerda não assumir para si mesma os equívocos que tem cometido nos últimos anos e, a partir deles, edificar-se para levantar a bandeira de um mundo diferente para ela e para todos nós, a gente vai continuar rodando em torno dessa empáfia que se “dá” o direito de fazer comentários como o de Haddad e permanecer no silêncio por horas. Ou para sempre, se a repercussão não for tão ruim quanto foi a de agora. O privilégio branco da presunção de ignorância, mesmo quando quem comete o deslize é alguém que se diz letrado racialmente.
Demorar-se no silêncio nada mais é do que uma forma de sentar sobre qualquer opinião contrária, mesmo que ela seja uníssona e venha de quem deveria ser lido como um aliado. Falta bom senso. Essa é a maior crise da esquerda brasileira. E apontar isso não significa esquecer posicionamentos públicos anteriores ou diminuir futuras falas progressistas. Pelo contrário. É uma tentativa de dizer que há erros, deve-se admiti-los interna e publicamente e reverter o discurso em prol da luta da inclusão social.
Por isso, em vez de atacar negros que estão revoltados com a fala racista de Haddad, cobre do possível novamente futuro candidato à Presidência, do partido dele e de todas as demais siglas que se sentem “donas” dos movimentos negros mais coerência, bom senso e humildade. Não somos nós, negros (ou não), os subordinados a eles. É justamente o contrário. Partidos são feitos de pessoas. Não o inverso.
Como uma vez disse a genial professora Sueli Carneiro: “entre direita e esquerda, eu continuo sendo preta.”
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.