Uma postagem no Twitter esse fim de semana me chamou a atenção. “Quero fazer mestrado. O que empata? Sensação de incapacidade de conseguir e minha origem social.”
Eu não conhecia o autor da mensagem, ainda não o conheço, é bem verdade, mas me vi naquelas duas linhas. E, de pronto, me transportei pra história da minha vida. Pras inúmeras vezes nas quais prometi a mim mesmo tentar mestrado e não o fiz. Me agarrei à síndrome do impostor e me sabotei.
Desde o fim da graduação em Jornalismo, em 2007.2, sempre disse aos amigos mais próximos do sonho de ser professor. Que, para isso, queria, antes, chegar ao doutorado. Por exigência das faculdades, óbvio, mas também pelo desejo de ganhar melhor – já que no mundo acadêmico quanto maior a titulação maior o salário – e ter uma vida financeira mais estável.
Mas entre 2007 e o começo efetivo do mestrado, o primeiro passo para o doutorado, correram 14 anos e três especializações em áreas completamente distintas. Quase uma década e meia de adiamentos, portanto. Tudo, hoje eu sei, tenho consciência (e raiva e vergonha), por causa da sensação de incapacidade de conseguir. Algo diretamente ligado à minha origem social. Os mesmos argumentos do rapaz do tuíte.
Sou negro. Mas me descobri como tal só aos 32. Até então, era moreno. Moreninho. Me chamavam assim e eu reproduzia. Já falei disso aqui no Ceará Criolo. Foram 32 anos rejeitando minha origem porque socialmente eu era mais aceito daquele jeito, embranquecido. E, de negação em negação, a gente nem sonha o peso de tudo isso no nosso imaginário sobre nós mesmos.
Passei uma vida inteira lendo livros, ouvindo histórias e assistindo na televisão o quanto o negro é preguiçoso, escravo, malandro, vagabundo, gatuno, agressivo, viril, pobre e que, por falta de intelectualidade, algo restrito aos brancos, só podia lidar com trabalhos braçais.
Eu era soterrado por todas essas predestinações impostas pelos outros a mim e aquilo ficava no fundo da minha cabeça, me sabotando toda vez que eu sonhava em dar um passo maior do que o permitido pela sociedade para um jovem, de pele escura e de família classe média-baixa.
Do lugar de onde eu vim, sonhar não fazia da gente mais inteligente. Saber direitinho o lugar que cada um ocupava dentro da lógica da violência urbana e da repressão do Estado? Isso sim tornava a gente esperto. E, assim, eu vi tombarem diversos amigos negros como eu. Meninos que, diferentes de mim, tinham famílias desestruturadas e não contavam com um pai dono da certeza de me tornar gente por meio da educação. Sem oportunidade, essa galerinha foi presa. Ou morta.
Do meu grupo de amigos pretos da infância, só eu tenho ensino superior. E devo isso à insistência de meu pai, que deu inúmeras horas extras para ter um trocado a mais no fim do mês e conseguir pagar colégio particular pra mim. Salas nas quais quase sempre eu era o único negro. No máximo, tinham um ou dois outros colegas de cor. O resto da turma, mais 55 alunos, era toda branca. Rica. E eu lá, destoando. Questionando o sistema sem nem ter noção disso. Me posicionando politicamente pelo simples fato de existir num ambiente tão distópico – e tóxico – pra minha negritude ainda desconhecida por mim mesmo.
Papai sabia que essas experiências seriam determinantes pra eu me enxergar como alguém cujo futuro seria possível. Pra eu não querer sucumbir tal qual meus amigos de infância, hoje viventes no passado, na memória, nas lágrimas derramadas pelas mães. Ele insistiu que eu me formasse, contra tudo e todos, inclusive contra gente da própria família, que uma vida inteira me tachou como “o negrinho” ou “a vergonha”. Pois bem. Da minha geração familiar, eu, o negrinho, a vergonha, fui o primeiro em quase tudo.
O primeiro com ensino superior. O primeiro de emprego formal depois de formado. O primeiro a viajar para fora do país. O primeiro a ter carro próprio. E…o primeiro a ingressar num mestrado. Me sabotei por 14 anos, até me dar conta de que meu maior inimigo era eu mesmo. Que essa imagem de burro e feio que haviam pintado em mim sobre mim, e na qual eu tanto acreditei, precisava cair por terra, sob pena de eu me paralisar para sempre.
Ano passado, na surdina, sem dizer uma palavra a absolutamente ninguém, e talvez fiz isso por medo de falhar e não querer lidar publicamente com uma possível derrota, confesso, decidi me submeter à seleção de um mestrado. Recebi como uma intimação da vida a mensagem de uma amiga me informando do edital para o Programa Associado de Pós-Graduação em Antropologia da UFC-Unilab, o PPGA.
Todos os demônios que alimentam na gente uma vida inteira vieram à tona. E lá estava eu, pensando que não conseguiria entrar numa universidade pública federal. Porque minha vida acadêmica inteira foi em instituição particular, o que, por óbvio, fazia dali, uma universidade pública federal, lugar para outras pessoas, não pra mim. Assim eu imaginava.
“Nunca fiz um memorial de vida escolar, gente! Isso não vai prestar”. Pensei. Prestou. Tirei 10. O único dentre todos os concorrentes. “Esse projeto está horrível. Não tem como eu passar”. Me sabotei de novo. E não estava horrível. Tirei 7, como muita gente. Passei. “A entrevista vai ser um horror. Vou dizer o que se inventei de fazer um projeto sozinho, sem pergunar a ninguém? Vão perguntar e eu vou falar besteira”. Me antecipei pra, novamente, ser surpreendido. Tirei 9.
Quinze pessoas participavam do meu edital. Eram apenas duas vagas. Duas. E eu fiquei em primeiro lugar. Passei no mestrado na primeira tentativa. Hoje, o Bruno que começou o processo de seleção se sabotando, faz parte de uma turma incrível e diversa (e majoritariamente negra).
É bobeira a gente se fiar em complexos de inferioridade pra definir os rumos da vida. Óbvio que nem sempre dá pra ganhar. Nem sempre se vai passar numa seleção. Nem sempre se vai conseguir o emprego dos sonhos. Nem sempre se vai ganhar o tão almejado prêmio. Mas isso, de forma alguma, deve ser impedimento pra tentar. É preciso tentar. Se não der certo, você sai com a certeza de que cresceu durante a caminhada. Porque, no fim, a vida é sobre isso: crescimento e caminhada.
Nada cai do céu, especialmente para pessoas negras, como eu. Pelo mundo atual (e por muitos mundos que ainda virão, imagino), a gente tem sim que ler duas vezes mais do que pessoas brancas, se esforçar duas vezes mais do que pessoas brancas, brigar duas vezes mais por reconhecimento do que pessoas brancas. A lógica da vida é mais condescendente com elas. Não há como negar isso. Há, no entanto, como a gente não se imobilizar diante de um sonho porque nos disseram que ele não era pra gente.
Qualquer sonho é pra qualquer pessoa. Entender isso é um processo. Uma construção. Algo hoje mais evidente pra mim, que me permito ser o que quiser e ocupar o espaço que desejo. Vou em busca e quem quiser que lute ao meu lado ou contra mim, que seja. Cruzar os braços e me intimidar está fora de questão. O meu mundo quem constrói sou eu, primeiramente.
Escrevi tudo isso, Daniel, só pra te dizer que tua sensação de incapacidade naquele tuíte é compreensível. Mas que você não está sozinho nessa. Que tua origem social vai determinar muita coisa na tua vida. Mas você jamais deve se deixar assombrar por fantasmas que os outros te colocam. Eles dizem que somos incapazes justamente por receio da nossa imensa capacidade. Nos fazem reproduzir uma lógica racista que só beneficia eles mesmos. Nos alijam afetivamente pra nos impedirem de crescermos ainda mais intelectualmente. Eles têm medo.
Somos inteligentes, bonitos, resistência. Você é capaz. Se deu bom pra mim, companheiro, vai dar bom pra você também. Aqui no Ceará ou na sua Bahia, a negritude tem força. Voe. Estou iniciando minha caminhada para, em breve, estar em sala de aula mostrando a outras pessoas negras o quanto a educação é capaz de mudar vidas. E o quanto nós não devemos nunca desistir do que sonhamos pra gente.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.