A revolução das cotas coloca em xeque o modo como nós mesmos nos enxergamos enquanto sociedade que não se reconhece racista ao passo que se autodeclara majoritariamente negra e apaga da história a importância do povo preto. As cotas aumentam os negros nas universidades para que esse mesmo povo negro precise cada vez menos de uma política pública para lhe garantir algo que nunca sequer deveria ter sido proibido.
“A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos,
quando apenas conseguem identificar
o que os separa e não o que os une.”
Milton Santos, geógrafo negro brasileiro.
Muito do porquê de as universidades terem se transformado em quilombos ao invés de permanecerem como espaços brancos deve-se às políticas afirmativas implementadas pelo Estado nas últimas décadas. Neste contexto de democratização dos acessos, a instituição das cotas é apontada por alunos e estudiosos do tema como uma verdadeira revolução. Os cotistas coloriram o Ensino Superior brasileiro.
A UFC foi a primeira universidade a adotar a totalidade do percentual de cotas. Isso ainda na gestão do ex-reitor Jesualdo Farias. Por lei, existia a possibilidade de as instituições implementarem as cotas de forma gradual. A federal cearense, no entanto, abriu logo de imediato 50% dos acessos.
Ao passo que gerou forte debate social – e resistência -, inclusive dentro do próprio ambiente acadêmico, a medida permitiu que alunos pobres, de periferia, tivessem mais chances de um futuro bom, diferente do destino de quase todas as gerações pretas anteriores.
Isso mudou por completo o Ensino Superior. “O começo não foi acolhedor nem por parte da universidade em si nem das pessoas que estudavam comigo. De cara, eu e outros colegas fomos atacados. A lista de cota saiu no jornal. Todo o curso sabia a forma que havíamos entrado e as pessoas usavam isso pra desmerecer a gente, como se fôssemos menos preparados e não devêssemos estar ali. Depois que você percebe o racismo estrutural, parece que tá tudo errado”, sintetiza Déllio Willians.
Esse cenário ele viveu dez anos atrás, quando de 45 alunos apenas 11 eram cotistas no curso de Farmácia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). “Não havia negros que não fossem cotistas na minha sala. A quantidade de negros hoje é bem maior”, atesta.
É pela educação que o modo de nós nos enxergarmos também muda enquanto sociedade racista que não se assume como tal. Especialmente se pensarmos que na sua primeira Constituição, em 1824, o negro no Brasil era proibido de frequentar escolas brasileiras. Sem formação adequada, essa população foi empurrada para as periferias e, sem formação adequada, acabou forçada a ocupar funções estigmatizadas e com pouca representatividade.
Não à toa, o negro é ainda hoje tratado como sujeito mais afeito (quase que biologicamente formatado) a trabalhos braçais e à malandragem, não sendo visto (ou encontrado de forma irrisória) em espaços de poder. Pretos não são eleitos governadores, praticamente não estão em mandatos parlamentares, não figuram em tribunais de justiça e até hoje ocupam cargos mirrados de chefia até mesmo dentro das universidades.
Além de constitucionalmente proibir os negros de frequentarem escolas, o Governo custeou a vinda de europeus ao Brasil após a libertação dos escravizados, em 1888, e privilegiou a contratação dessa mão de obra branca. “Impediu-se aí a criação de uma classe média negra neste país. O Estado promoveu a segregação racial e agora deve desconstruir essa realidade. A política de cotas vem para democratizar este país racialmente. Está oficializada pelo IBGE a desigualdade racial no nosso país. Então, se essa desigualdade existe, o Estado tem por obrigação promover a igualdade material para democratizar esse país em termos raciais. Mas mudar o status quo dói. Aqueles que estão no status hegemônico não aceitam a mudança de bom grado. Na história, a gente tem isso muito facilmente. A mudança de status quo requer conflitos”, pontua no programa TVE Debate a coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público da Bahia, promotora de Justiça Lívia Santana e Sant’Anna Vaz.
E são justamente os cotistas, os negros, que têm apresentado os melhores desempenhos nas universidades federais. Na UFC, por exemplo, é assim. Logo, o discurso de que eles baixam o nível da qualidade educacional está superado, ainda mais se considerarmos que é justo o ingresso deles que escancara debates historicamente negligenciados inclusive pela Academia.
“A experiência universitária é muito importante. Tanto pra questão pessoal quanto pra de conhecimento. Foi um divisor de águas da minha vida. Foi quando eu tive acesso a debates e a pessoas que me mostraram a perspectiva da possibilidade de uma realidade outra. Mas temos que avançar muito ainda. Porque muita coisa precisa ser aperfeiçoada e ampliada”, comemora Isabella Santos, de 21 anos, aluna cotista (social e racial) de História da UFC.
Nem mesmo as fraudes ao sistema de cotas (quase sempre ligadas à falsificação da autodeclaração) desqualificam a potência desta política afirmativa, que muito em breve, em 2022, será encerrada ou renovada pelo Governo Federal após dez anos de vigência da legislação que a criou (Lei nº 12.711).
“As fraudes são uma nova forma de manifestação do racismo institucional. O Movimento Negro, quando pleiteou a autodeclaração racial, não imaginava que brancos iriam se utilizar disso. A autodeclaração é fundamental, é importante e diz respeito à identidade racial e ao ato político de confirmação da identidade. Mas ela não pode ser absoluta. Porque a discriminação racial se dá muito mais com base na forma como eu sou vista e tratada socialmente do que na forma como eu me autodeclaro. Se amanhã eu resolver deixar de sofrer racismo e passar a me autodeclarar branca, é ingenuidade minha. Eu não vou parar de sofrer racismo; eu não vou parar de ser vítima de discriminação racial. Assim com a Xuxa, se ela passar a se autodeclarar negra, ela não vai sofrer os efeitos do racismo”, detalha Lívia Vaz.
A matemática social da política de cotas é “simples”: elas – as cotas – precisam fazer com que o número de alunos negros aumente cada vez mais nas universidades para que esse mesmo povo negro precise cada vez menos de uma política pública para lhe garantir algo que nunca sequer deveria ter sido proibido.
“O Movimento Negro não quer cotas eternas. Antes das cotas raciais, não havia negros nas formaturas de cursos de alto status da Universidade Federal da Bahia. Isso é vergonhoso pro mundo, porque a Bahia é um exemplo pro mundo. A juventude negra não quer morrer. A juventude negra quer entrar na universidade. As cotas visam selecionar talentos negros que não morreram e conseguiram, por seus méritos, ser aprovados no vestibular e superar todos os obstáculos do racismo”, acrescenta a doutora em Sociologia Marcilene Garcia também ao TVE Debate.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.