Como o jornalismo não enfrenta uma crise seríssima, o Brasil não tem um presidente babaca e nossa política não está no fundo do poço, um homem branco julgou por bem gastar tempo provando o quanto a primeira mulher negra a apresentar o Jornal Nacional em 50 anos é incompetente. Racismo puro e descarado.
Até vídeo com os erros de Maria Júlia Coutinho o cara fez. E um monte de site publicou notícia sobre uma suposta preocupação da alta cúpula da Globo diante da suposta insegurança da moça. Não deu outra. A suposta insatisfação ganhou o mundo. Em segundos.
Maju assumiu o Jornal Hoje há menos de um mês. Entrou em substituição de Sandra Annemberg, uma mulher branca que passou 16 anos à frente do programa, cometeu inúmeras gafes. Quem nunca esbarrou no “Que deselegante” dela ao lado de Evaristo Costa, não é mesmo? Mas patrulha contando erros, produzindo vídeo e ateando fogo em rede social? Isso jamais a afligiu, assim como não acontece com tantos outros âncoras – homens e mulheres – brancos que deslizam nas leituras e interações ao vivo!
Essa avalanche de críticas recai sobre Maju porque Maju é preta. E, por ser preta, não tem competência para uma tarefa tão difícil quanto comandar um dos principais jornais da televisão brasileira. É assim que o tal rapaz a enxerga. Que a sociedade a enxerga. Como incapaz, tal qual todos os demais pretos que, por serem pretos, incomodam quando chegam a um lugar de destaque.
Essa moça é o exemplo mais escancarado do quanto a gente, preto, precisa ser muito melhor do que um branco, qualquer um, pra estar diante de um holofote, num cargo de chefia, coordenando uma equipe, distribuindo tarefas, dando ordens. Se a gente não for muito, muito, muito bom, não chega perto nem do razoável socialmente exigido de um branco. A gente, preto, é devorado no menor dos deslizes.
Maju serve para ser repórter. Moça do tempo. Não para apresentadora. Jamais para apresentadora. Quem ela pensa que é? Apresentador é cargo de branco. De mulher branca e bonita, de preferência. Se você não reparou que é esse o padrão, lamento informar: é esse o padrão. E ele tem sufocado cada vez mais o mercado comunicacional do qual faço parte.
Não importa o currículo dela. Não importam eventuais fatores externos (sim, eles existem e são inúmeros). Não importam as pressões internas. O que está indo ao ar não agrada. E não agrada porque Maju é preta. Quem se habitua com uma mulher de pele escura e cabelo black power numa bancada de jornal? O lugar dela é na favela. Ou dentro de casa, cuidando de menino e fazendo comida pro marido. Ou até dentro da Globo, mas na faxina.
É NISSO QUE A GENTE, SOCIALMENTE, ACREDITA. Que preto nenhum tem a mesma expertise do branco, mesmo o mais medíocre. É POR ISSO QUE A GENTE, SOCIALMENTE, TORCE. Para o preto estar sempre para lá do abissal. E é com base nisso que essas mesmas pessoas embarcam nessa moda cafona de compartilhar em rede social vídeo racista com os erros da jornalista.
Sim, ela erra. Que nem eu. Que nem você. Que nem o William Bonner. Esse é um debate que beira o ridículo, mas precisa ser dito em termos claros para acabarmos com essa cretinice de as pessoas quase sempre acharem que estão nos fazendo um favor e quase sempre esperarem que o negro agradeça (de joelhos ou publicamente, de preferência) por estar num cargo bom. Mas não. Não temos que agradecer nada. NADA!
Antes de tudo, existe ali uma relação trabalhista. O patrão precisa do meu talento e eu recebo pelo meu talento associado à marca dele ou de quem quer que ele represente. Simples. Por isso, apenas PAREM de nos exigir uma postura coitadista ou subserviente diante da vida e diante de vocês.
Gente como a Maju, gente como eu e gente como tantos no mundo quer reconhecimento. Não é favor nenhum que patrão (e isso inclui você, leitor do Ceará Criolo) nos faz. Somos bons, precisamos provar isso todo dia e merecemos o lugar que conquistamos.
Mas ainda estamos longe de nos tornarmos maioria. A maioria ainda está nas favelas, nos cemitérios (como vítimas e autores de crimes), nas penitenciárias, fora das escolas e invisíveis para o Estado. A foto que Maria Júlia Coutinho postou nas redes sociais dela no primeiro dia como chefe do Jornal Hoje mostra bem essa disparidade. Da equipe INTEIRA, apenas ela é preta.
Nenhum outro jornalista branco da Globo ou de qualquer outro veículo foi visado da forma como Maju tem sido. Hipocrisia fantasiada de preocupação com o interesse público e a qualidade de um telejornal. Ela precisa, sim, estar lá. E, a bem da verdade, não tem coisa nenhuma que pedir desculpas ao telespectador.
Deixem a moça em paz!

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.