Numa discussão, estávamos em um quarto-kitnet alugado. Eu em pé; ele, numa cadeira. Era pela manhã, prato sujo e xícara usada na mesa. A insistência veio de mim. “Esse é o problema: comunicação. Eu me canso de ficar adivinhando ou interpretando o que você quer dizer. Isso [dificuldade de expressar] não é meu. Fala, criatura! Diz!”.
“Falar é coisa de branco”, respondeu.
Então, ele começou uma contação de cenas que envolviam o atual trabalho (com gente branca, sem noção) até aparecerem histórias mais antigas, de uma vida. Sala de aula, grupos de pessoas, falar-falar-falar. Estar num lugar de falatório, de mostrar, de como gente branca faz. Lattes, lugares onde foi, as referências e referências não tão usadas, ter “dinheiro” do tipo que não é problema. Mãe, tio, avó, alguém estende a mão. Pessoal que usa a palavra “herança”, que teve/tem “mesada” há anos. Já ele não. Estar nesse falatório com gente assim cansa. Dá vontade de revirar os olhos, ignorar, rir da cara. Todo dia isso. E eu ia concordando.
Alguns puxavam assunto, insistiam. “Conhece [nome de referência italiana]? Já viu o trabalho de [autor francês]? Sério, não sabe? Mas e teus projetos, o que vai fazer agora?”.
“Branco fala muito,
sabe muito,
manda muito.
Branco impõe muito,
mata muito,
mente muito
e isso tudo
porque teme muito.
Teme muito.
Se liga,
nóis tamo voltando para acertar as conta, doido,
vai ficar barato não”
(Carolina de Souza, @carolsouoreta, em Lembranças Ancestrais)
Dessa vez, fui eu que perguntei. “O que?! Não entendi (…) Eles te roubaram isso, falar?!”.
Eu senti os minutos. Silêncio. Você já passou um tempo olhando e estando com alguém assim, sem qualquer distração, só vocês? Parece que o tempo come a gente. Quem sabe o que fazer agora?
Como se eu fosse língua, o empurrava contra a parede: “fala!”.
“Falar é coisa de branco”, eu ouvia de mim mesmo.
Em um post antigo, que já não está mais no Instagram, Luedji Luna (@luedjiluna) fala sobre a dívida do racismo na maneira como ela se relacionava. Nas cobranças, nas autocobranças, na presença de um medo de que se acabe, na autoestima e no quanto demorou para namorar.
Taís Araújo entrevistada pelo próprio marido, Lázaro Ramos, no programa Espelho, falou sobre sua adolescência: que era a amiga-suporte, a amiga mais inteligente e só. Na época da entrevista, nem Lázaro sabia que Taís só teve um relacionamento mais sério já na vida adulta.
“Quem vai pagar essa dívida?”, escreve Luedji nesse post que citei. Quem vai pagar essa dívida que o racismo fez arranhar nos nossos afetos?
“(…) o racismo afeta a maneira como amamos a nós mesmos e como nos relacionamos com o outro a partir desse amor”, escreve Lucas Veiga em “As diásporas da bixa preta.”
Nesse texto meio confuso, não consegui deixar tanto o verbo no presente, como fiz nos outros escritos dessa coluna. Ainda lembro o “Falar é coisa de branco” e continuo lá. Estar nessa relação foi um grande tema de terapia na época. Antes, eu não tinha estado tão ligado e sem boa comunicação com alguém ao mesmo tempo.
No grupo de homens negros do qual participava no mesmo período disso tudo, ele já não me aparecia tanto. Estranhamente, talvez eu tenha entendido ele mais naquela época, hoje menos. Tendo ideia de como ele se comportava e sentia, quando estava em algum silêncio, o ter desresponsabilizado pode ter sido um erro. Hoje, já não nos falamos. Ainda não sei quem vai pagar essa dívida.
“(…) vivendo com uma sensação iminente de rejeição, a bixa preta, por vezes, cai em um desses complicados dilemas: ou não se permite amar e não suporta receber o amor do outro quando amada, ou ama e se submete a uma relação em que não é amada, ou ama e é amada, mas vive em estado permanente de ansiedade devido à ansiedade de que a qualquer momento esse amor pode acabar.” (“As diásporas da bixa preta”, Lucas Veiga)
Estar em grupo de homens negros, para mim, funcionou como uma ajuda para ver o que estava pedindo em mim para ser visto. É um começo, ter apoio. Eu me colocava para escutar dúvidas tão reais do pessoal. Sobre ser hétero (?), sobre ter medo de se parecer com o pai, sobre dinheiro e emprego. E, nisso tudo, ouvir poesia autoral, trocar indicação de filme, receber abraço. Eu ainda não tinha passado por isso, estar em um grupo de homens, metade sendo héteros, e ainda ficar desconfortável, sem medo.
“Um milagre estatístico: um monte de homem negro se juntando para conversar sobre masculinidade e, imediatamente, ter um clic, em que a gente configura um círculo de proteção, de partilha, de crescimento mútuo. Isso aí é resistência individual e coletiva, de maneira mais poética possível, é maravilhoso. O que não quer dizer perfeito, mas é justamente por ser imperfeito que vale a pena”, narra Cainã sobre o grupo de homens negros MilTons, no livro “Diálogos Contemporâneos sobre homens negros e masculinidades.”
Se quiser acompanhar, aqui estão os contatos de alguns grupos de homens (alguns estão fazendo encontros on-line):
- Projeto MEMOH (@projeto.memoh)
- Roda de Homens Negros (@rodadehomensnegros)
- Grupo MilTons (@miltonsmasculinidades)
- Pais Pretos Presentes (@paispretos)
E aqui estão 129 iniciativas e projetos nacionais relacionados ao assunto de homens e masculinidades.
(Ah, saudade de mais grupo de homens negros em Fortaleza)
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Cuidador online, psicólogo clínico e acompanhante terapêutico. CRP 11/15308. @maianetopsi