Sou um homem negro, bixa, psicólogo e nordestino diante de quem lê com o que escrevo hoje. Esse texto, como um diário de bordo, é sobre estar ocupando um lugar de psicólogo e ser gente, afetável e afetado.
Junto e deixo palavras aqui que são mais de questionamentos, como me sentia nos locais mais imprevisíveis ou aquilo que era mais fora da certeza de ser/saber o que se está fazendo sempre. “Vale um registro com dúvida?”.
De todo jeito, o que vale para mim é que com a escrita eu me organizo de pensamento e sentimento sobre ser um homem-bixa negra. Na universidade, na minha própria terapia, nos relacionamentos. Sem ainda saber por onde você deseja, começo com este texto como um bom início. “Quem lê e o que quer ler?”, penso fora.
Uma das coisas que vou fazer é apresentar uma cena, como essa que vem lá pra baixo. As cenas são contadas do meu lugar como psicoterapreto (um jogo de palavras) sobre esse mesmo lugar, não sobre outro, quem eu estou e estava atendendo. Parecido é quando se pega um álbum de fotografias. A foto é metade da coisa; a contação é a outra parte que vem junto. Já imaginou uma foto sem ter quem conte sobre ela? Por isso, aqui é ficção. Não de mentira, mas de memória. A memória é curadoria, criação de ficção tal como os esquecimentos ou imitação. Esta matéria é uma ficção. Por umas frases, vou friccionando estar no presente.
A cena remonta à primeira vez que realizei atendimento psicológico como estagiário. Sem ainda muito costume de usar calça e sapato por tanto tempo, caminho pela Sala de Espera. As pessoas que buscam ajuda estão aqui. Nas terças, ali estava lotado. Hoje não era, mas também está cheia de gente procurando ajuda. Nos fundos da clínica, as várias Salas de Atendimento.
Faço parte de um grupo de estagiários de diversos semestres, possuindo também diversas responsabilidades de acordo com o semestre que estamos. Nosso objetivo é fazer um momento de escuta pontual para cuidados psicológicos iniciais. Sou um dos mais velhos; daí um dos mais responsáveis.
Nessa primeira vez, estou disperso. Olho para fora da janela, que tem uma vista linda. Normalmente me perco olhando para alguma árvore, tentando descobrir nome, como se pega muda ou algo assim. Estou desse jeito. Ouço alguma orientação da professora-orientadora, que é especialmente cuidadosa e atenta, e isso me lembra da sala onde estou. A função dela é estar presente ali, guiando partes do atendimento, como agora, orientando o que vai acontecer e os fluxos. Depois disso, atendemos; depois voltamos à Sala de Supervisão e, finalmente depois, nos reencontramos com as pessoas que atendemos para dar o melhor retorno.
Eu, aqui, estou nervoso, disperso e com pensamento repetitivo. “Se acontecer de alguém chorar, a caixa de lenços fica pela direita” ou “Não posso esquecer de pedir para a pessoa ficar na Sala de Espera quando eu estiver na supervisão – e depois?”. Percebendo como estou, com grande amorosidade e perguntas simples, minha orientadora parece que me puxa e fico presente de novo. “Você tem o que é necessário, que é a disposição para ouvir alguém. Isso é suficiente agora.”
Sou acompanhado por alguma colega, que fica de apoio para caso aconteça de eu esquecer alguma informação ou se precisar tirar uma dúvida essencial. Chego à sala e, dali em diante, gaguejo e suo algumas várias vezes.
Ouço um adolescente, que pouco fala logo quando nos vemos. É estranho porque parece dizer tanto. O corpo dele está dizendo. A maneira como olha para os lados, a voz bem baixa que me faz pensar se estou entendendo mesmo o que ele está dizendo. Sempre me lembro de respirar e puxar o ar. De repente, ele chora, fala sobre amor, família e medo. Diz do namorado no colégio e, como eu pareço começar em algo sendo terapeuta, ele também parece começar a falar sobre isso em voz alta.
Em seguida, brevemente escutamos a mãe dele. Uma mulher desorientada sobre o filho estar se automutilando, se isolando e se calando pela casa. Tudo era inesperado para ela. A mãe falou de um adolescente que não parece ser o mesmo que ouvi. Acaba o atendimento. “É sobre amor, minha senhora”, penso dentro.
Voltamos à Sala de Supervisão e eu sinto dor de me ver nele, de preferir não atender pessoas se forem assim, de—
Minha professora-orientadora me para. Com os colegas, refazemos a cena de atendimento que acabou de acontecer. Por um momento, dramaticamente sou o adolescente; depois volto a ser eu-terapeuta. Como um estalo de osso, a minha dor vira uma ponte que me liga a ele. Eu posso entendê-lo. Aqui, não é um problema sentir dor.
Lembro de Castiel Vitorino Brasileiro: “se consigo enxergar a cura, por que meus olhos ainda doem?“ (Aqui foi o Quilombo do Pai Felipe) para não esquecer que temos dois olhos: um pra chorar, outro pra espiar o que faz o mundo fazer essa dor. Ou o que fazem dores como desse adolescente e a minha ainda terem sentido nesse mundo. Mais ou menos assim, diz Conceição Evaristo em Ayoluwa, a alegria do nosso povo. Também Ailton Krenak, Luiz Rufino, Lucas Veiga, meu amigo há meses numa visita lá em casa…
Sinto que somos muitos em lembrar disso, de lembrar do ato de cuidar e, também, de querer que esse mundo dê errado logo, o mais urgente possível.
Cuidador online, psicólogo clínico e acompanhante terapêutico. CRP 11/15308. @maianetopsi