Não existe Psicologia Preta, Afrocentrada ou Antirracista. Reformar o nome não é mudar. Separar pode ser, como rebote de uma estratégia que pretende incluir as relações raciais e desresponsabilizar o núcleo-duro, que ainda vai ser somente chamado de Psicologias. A especificidade, a outra, “àquela lá” define a dependência de usar como referência um ponto universal, completo, total.
Nós, que somos e ocupamos uma área não feita para nossos problemas, curas, corpos e danças, lidamos com uma cena: no limite da Psicologia, a fronteira. Podemos costurar ainda mais a psi com outras áreas, como as Artes, as Matemáticas e a Educação, para podermos avançar um pouco mais. Também podemos construir essa psi de fronteira com o que já temos. Andar nesse limite até saber onde se vai.
Nenhuma dessas opções foca ou centraliza o que é nosso. Por exemplo: “Psicologia Afrocentrada” revela a reforma de um conhecimento que ainda não nos contempla; daí adicionar “afrocentrada”, o que não precisaria se já fosse. Afinal, o que é “Psi/psiquê” para o povo negro? O que e como se faz usar o jeito de ver, pensar, fabricar problemas e algumas perguntas, palavreado de outra comunidade para a nossa própria? Pode não ser útil o que é válido para o mundo branco, que se faz miseravelmente dependente de nós, quebrado e higienizado.
“Não deveríamos nos preocupar com o sujeito branco no colonialismo, mas sim com o fato de o sujeito negro ser sempre forçado a desenvolver uma relação consigo mesma/o através da presença alienadora do ‘outro’ branco”, Grada Kilomba escreve. Fico curioso: você, negra/o que está lendo, no seu cotidiano, como lida com pessoas brancas? Seus/suas amigos/as próximas/os são brancos/as? Você já sentiu dificuldade em impor limites para alguma pessoa branca “amigável” ou já foi repreendido por alguém negro por fazer isso? Já se pegou desejando, namorando uma pessoa branca? Ou nada disso?
O que nos resta, se estamos nessa relação/mundo colonial? Nem esse Português escrito que está sendo lido agora por você serve tanto assim. “Língua portuguesa” e “América Latina” não nos servem, mesmo que isso possa causar uma falsa sensação de pertencimento ou força. Quem nos deu estas palavras?
Em uma aula², Deivison Nkosi diz que Fanon trouxe um ponto: o branco criou o negro, mas foi o negro que criou a negritude, sendo a afirmação identitária um pressuposto para uma luta política e objetiva contra a discriminação. Mas o grande problema se dá quando esse “pedaço” parece corresponder ao todo da experiência genérica de humanidade possível, impossibilitando que o sujeito se veja naquilo que está fora da diferença (negritude), no comum e no outro, portanto, de todo modo, sem esquecer que a diferenciação foi uma criação inicial do branco na colonização.
Voltando a citar a Psicologia, sei que não seria só ela – e sim todos os conhecimentos que estão na Universidade – que o racismo epistemológico, epistemicídio ou “o que quer que seja o nome” atravessa. De novo: isso não é privilégio da Psicologia. Envolve o lugar, a Universidade, que é também uma armadilha de afirmar quem e o que é legítimo. Às vezes, mais quem. E, assim, funciona para nossa comunidade: quem são as pessoas negras reconhecidas, em Fortaleza ou no Brasil, se não (quase todas) as que passaram/ainda estão na universidade? O que faz que esse lugar seja especial ou valoroso?
Somos muitos e muitas, com vontades diversas e alianças diferentes com a comunidade branca – afinal, quem não quer reconhecimento e amor, mas por quem, quantas e como é este pacto? “A busca por aceitação não deve nos cegar para a necessidade ampla e genuína de mudança”, escreve Audre Lorde, em Sou Sua Irmã.
Como a universidade (branca) pode ser um lugar de reconhecimento para pessoas (negras)? Em quem e no que acreditam as/os que acreditam no antirracismo na universidade? Por que estar na universidade? Por ter escutado “Ninguém pode tirar seus estudos de você” como estratégia de sobrevivência familiar? Sobreviver assim não seria um ato de reconhecimento, obter valor?
Perder a referência de conhecimento branco pode nos servir para mostrar que, afinal, demoramos algum tempo para reformar a Psicologia – ou qualquer outra conhecimento acadêmico – mais próximo da gente. Daí surgem nomes como Afrocentrada, Preta, Antirracista, Decolonial (…), que damos para o que não é construído para nós. Essa negociação parece ainda causar/ou sacrifício, dor, orgulho, tempo especialmente por ser “branco-responsiva” – como se fosse difícil soltar, mas não há reconhecimento real se quem o faz é a comunidade branca.
Tenho perguntas: até lá, quando houver conhecimento próprio, o que fazer? Existem urgências agora que pedem nossas respostas, como suicídio, amor-afeto, doenças, bem-estar? O que fazer com isso? Não seria possível negociar até lá?
“Quem não tem cão, caça com gato e come rato”, provérbio de terreiro³.
Aqui, quem pergunta em mim lembra que sempre algo feito pela comunidade branca parece estar mais acessível e pronto. Nos fazer perder a noção, como pegar esse “atalho” do caminho fácil, é uma estratégia comum contra nós. “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienada”, lembro de Neusa Santos Souza. Enfim, não é sobre “o que fazer até construir algo autônomo?” e, sim, o quão alienada à branquitude está quem pega esses “atalhos.”
A novidade seria: e se não fosse possível uma Psicologia “Outra”, quem e como faríamos saúde? Existe quem não precisou de universidade para proporcionar cuidados e saúde. De novo, quem e onde, quando e como faremos/já fizemos? Essas são perguntas para tentar incomodar mais possibilidades e nisso sinto que errei em algum lugar neste texto, mas minhas palavras estão aqui4.
Título: Pergunta feita por Leonardo Aguiar, psicólogo negro, no post “Psicólogxs pretxs e a crise com as abordagens clássicas da clínica psicológica”, de 04 de junho de 2020 (https://www.instagram.com/p/CBAzalcJK9d/)
“Diálogos sobre a atualidade de Frantz Fanon (aula 1)”, de 08 de dezembro de 2020, no Ubu em Curso.
³ Acredito que seja um dito de Mãe Stella de Oxóssi
4 Referência ao discurso de Audre Lorde, chamado “Minhas Palavras Estarão Lá”, transcrito em Sou Sua Irmã.
Cuidador online, psicólogo clínico e acompanhante terapêutico. CRP 11/15308. @maianetopsi