Texto em parceria com Rayana Vasconcelos
A Etna lançou, no último dia 20 de novembro, uma ação em alusão ao Dia da Consciência Negra. Com a campanha #CriadoMudoNuncaMais, a rede varejista pretende causar reflexão sobre termos racistas utilizados no cotidiano e iniciar um movimento no mercado de decoração para substituir a palavra “criado-mudo” por “mesa de cabeceira”. A promessa é começar a mudança (literalmente) dentro de casa e retirar a expressão do catálogo. Porém, outras marcas do segmento e fornecedores estão sendo convidados a colocar a nomenclatura em desuso.
Na campanha, foi resgatada a origem histórica do termo, que é relacionado aos negros escravizados no período colonial brasileiro que eram obrigados a ficar em pé junto às camas dos senhores segurando roupas, água e outros objetos. Alguns apanhavam, caso se movimentassem durante o sono do senhorio. Eles eram chamados de criados. Quando o móvel foi colocado ao lado das camas com a mesma função, era “preciso” diferenciar um do outro. E, assim, nasceu o termo “criado-mudo.”
No vídeo, algumas pessoas sentam ao lado do móvel e, ao abrirem a gaveta, encontram um papel contando a origem da palavra. Elas têm um exemplo simples de como o racismo está enraizado na nossa linguagem, fazendo parte da nossa cultura e sendo repassado através do tempo sem que nos demos conta.
Até aqui, tudo lindo. Mas se espera de uma campanha publicitária algo além de estética e criatividade. Ela deve sair do discurso vazio. Precisa emocionar e causar impacto na prática. A princípio, foi uma ideia ousada, pois mexe na logística de uma grande rede varejista e provoca o mercado e a sociedade no tocante a uma mácula nacional histórica.
A pergunta que não quer calar é: onde estão as pessoas brancas nessa campanha? Porque só negros foram convidados para o “despertar” sobre o termo?
É preciso entender a gravidade disso. Essa expressão tenebrosa foi criada por pessoas brancas, colocando um móvel no mesmo patamar de uma pessoa negra. Naquela época, as pessoas escravizadas eram consideradas inferiores, objetos/peças adquiridas e descartadas conforme a vontade branca. Mesmo com todas as mudanças ocorridas até os dias de hoje, sabemos que essa construção imagética a respeito da população negra ainda pauta a sociedade.
Não há representatividade no filme. O que existe nele são pessoas pretas revivendo uma dor e sentindo vergonha por algo que não é responsabilidade delas. Pessoas não negras é quem deveriam sentir o peso, o engasgo, o desconforto e o constrangimento de descobrir a origem da palavra “criado-mudo”. Impreterivelmente! A ideia de que o racismo é problema de preto e, por isso, a ele cabe resolvê-lo não pode ser reforçada em hipótese alguma. As pessoas brancas impuseram o racismo e precisam ser responsabilizadas por ele e por tudo o que ele implica. São elas que perpetuam esse crime através dos tempos e beneficiam-se dos privilégios resultantes dessa praga.
A presença apenas de pessoas negras nesse vídeo, sentadas, relatando o senso comum sobre a História do criado-mudo, se não deixa claro, nos dá uma pista sobre em que posição essas pessoas estão nesse discurso. Elas estão aprendendo, tanto quanto nós, espectadores, através de um texto que elas não produziram, a origem do termo citado. A partir da leitura do texto, se chega à conclusão de que “é sempre tempo de mudar e evoluir”. Quem tem que mudar? Quem tem que evoluir? Quem tem que aprender com quem? São questões que o texto publicitário desperta e vazam nas imagens.
E já que estamos falando em “abolir” termos racistas do nosso cotidiano, é interessante pensar que o uso da palavra “escravo” – citada na campanha na descrição histórica de “criado-mudo” – também reproduz o mesmo pensamento colonial que pretensamente se quer combater. A psicóloga e pesquisadora Grada Kilomba nos alerta para a inércia que o termo “escravo” (substantivo) confere à identidade das pessoas que passaram pelo processo de desumanização da escravidão no Brasil. “Escravizado” (adjetivo) traduziria melhor a ideia de que a condição desumana imposta pela escravidão a esses povos faz parte de um projeto político. Para existir um escravizado(a), é preciso necessariamente existir um “escravizador(a)”.
É uma pena! Estão dizendo por aí que foi um golaço. A ideia é bem intencionada. A execução da campanha é uma bola na trave daquelas. Descolonizar a linguagem não é tão simples quanto parece. Sigamos tentando.
Assista ao vídeo:
Publicitária. Movida por decibéis, apegada ao escurinho do cinema e trilha o aprendizado de ser uma mulher preta. Trabalhou em agências de Fortaleza e Salvador ao longo de 10 anos. Hoje responde pela Mídia na Set Comunicação, house da Educadora 7 de Setembro.