Eis que, aos 28 anos, Neymar Jr., o menino Neymar, descobriu o racismo. Foi xingado de macaco pelo zagueiro Álvaro González, do Olympique de Marselha, em partida do campeonato francês neste domingo (13/9), e, indignado por ter sido expulso do jogo após revidar às provocações, desabafou nas redes sociais.
De nada adiantou Neymar ter 639 jogos, 405 gols, 229 assistências, 53 prêmios individuais, 7 prêmios coletivos, 23 títulos oficiais, 22 títulos não oficiais e tantas outras conquistas. Foi tão somente pela cor da pele que tentaram defini-lo (e depois negaram, como de praxe). Se isso acontece com um dos jogadores mais importantes da história do futebol, imagine com a dona Mariazinha da favela que todo dia atravessa a cidade pra fazer faxina na casa da madame branca! Imagine com o garotinho preto e favelado que sonha ser que nem o ídolo.
Foi Neymar expor a situação pra ser achincalhado. Milhares reagindo ao silêncio histórico dele às causas antirracistas. Mas é preciso que sejamos honestos nesse debate: em alguma medida, todos somos um pouco esse jovem de 28 anos. Todos somos um pouco Neymar. Por um simples motivo: nenhum de nós nasceu sabendo tudo de negritude. Nem nós, negros, nascemos sabendo que somos negros. Uns mais precocemente são/foram apresentados à face cretina do mundo racista; outros, tardiamente. E muitos – milhares, milhões – vão atravessar a vida sem conseguir identificar uma manifestação racista, tamanha a prática já foi incorporada à vida.
Eu, por exemplo, descobri que sou negro somente aos 32 anos. Sim, levei mais de três décadas pra me olhar no espelho e ter consciência de estar diante de um homem negro. Não moreno, como sempre me defini e fui definido. Mas negro. Preto, de preferência. Preto e jornalista. Até isso acontecer, silenciei pra muita coisa. E, me perdoe a franqueza, não sinto vergonha alguma disso.
Não me envergonho por saber que estou, como todos estamos, inclusive os pretos mais pretos, num processo de desconstrução sem fim. Meu tempo por aqui vai findar e eu não vou ter compreendido tudo da imensidão que é ser um indivíduo de pele escura. O tempo todo a vida nos apresenta aspectos da negritude e do racismo aos quais precisamos nos moldar. Pra acomodação ou pro embate. Diante disso, eu sei o quê? Nada! Vivo a experiência, ouço, leio para ser apresentado a outras perspectivas do assunto, peço ajuda a amigos mais vividos e inteligentes, e cresço a partir disso tudo.
Tem sido assim nesses dois anos após meu autodescobrimento. Ao contrário de Neymar, eu não me vi negro num episódio racista. Tive a sorte de perceber quem realmente sou no processo de criação do Ceará Criolo, em outubro de 2018, ao lado de quatro comunicadores cujo desejo inicial era apenas entregar um projeto de conclusão de um curso de extensão para garantir um certificado. O portal foi ficando, eu fui amadurecendo, o portal foi crescendo, eu fui crescendo junto, novos espaços foram sendo ocupados, eu acompanhei o fluxo, outras pessoas passaram a fazer parte do coletivo, eu me agigantei com elas e hoje, mais de 700 dias depois, sou um Bruno totalmente diferente do que era no começo dessa caminhada.
Meu amigo Preto Zezé costuma dizer que nem sempre o nêgo aguenta o baque quando compreende o modo cruel como o racismo doutrina o mundo. Eu suportei porque, como ele também sabiamente me adiantou, tenho uma rede de apoio sólida. Família e amigos foram fundamentais nesse processo, que exige da gente um esforço hercúleo pra não endoidecer. É um rolo compressor impiedoso, o racismo.
Olho pra trás hoje em dia e agradeço a minha “ingenuidade” diante de determinadas situações. As profissionais e afetivas são as mais dolorosas. Lidar com a certeza de a cor da pele ter sido fator primordial para perder um emprego, ser vítima de determinado ataque ou mesmo desviver um amor é dilacerante. E a gente é feito mais dos nãos do que dos sins que recebemos. Fosse eu consciente da minha negritude nesses episódios, sabe-se lá qual carga de rancor esse texto teria.
Com isso, não romantizo essas feridas. Não reforço a tese do “quem sofreu mais merece ser mais reconhecido”. Acho essa uma lógica perigosa. Só atesto a existência dessas feridas – com ou sem minha anuência, porque o racismo do outro independe do meu desejo – e digo que agora, ciente de mim, de quem sou, da matéria da qual sou feito por dentro e por fora, não consigo retroceder.
Me descobri tarde. A ignorância me fez sobreviver a muita coisa e, por isso, digo que compreendo Neymar. A gente pode demorar mesmo. Ou, às vezes, adia de propósito esse momento por (pre)sentir que ele será decisivo para a nossa vida da mesma forma que foi para muita gente que a gente conhece. O Bruno de hoje nem ousa pensar na possibilidade de desver o mundo do modo como exercita o olhar desde outubro de 2018. Porque é impossível. A gente se condiciona, mesmo sem querer, a perceber o quão determinado ambiente é branco. E não me refiro às paredes.
Cada um tem um tempo muito particular de florescer para/na negritude. E isso independe de fortuna, fama ou talento. É como um estalo. Tipo acordar após uma noite de sono. Pra uns, essa noite de sono é longa. Pra outros, curta – da permanência de uma sesta. E nenhum dos dois está certo ou errado. Cada um, repito, teve o seu tempo. O tempo certo pra maturar. O que fazer a partir do momento que se desperta é o que nos diferencia. Silenciar não é, não pode ser a única opção.
Consciente da minha negritude, eu, Bruno, me sinto na obrigação de me posicionar publicamente como uma pessoa antirracista. Primeiro, óbvio, por acreditar nisso. Por sentir na pele (no sentido mais literal de todos) o peso do preconceito racial. Mas pratico o antirracismo também como forma de honrar as milhões de pessoas negras que lutaram e morreram para eu ter o direito a ter direitos hoje em dia. Me sinto no dever moral de fazer o mesmo para os que vierem depois de mim terem ainda mais direitos. E direitos a terem direitos.
Eu tive a chance de cursar o ensino superior e sou agora um sujeito empregado com carteira assinada porque negros e negras lá atrás, séculos atrás, reivindicaram o fim da proibição constitucional de pessoas de cor frequentarem ambientes escolares. Sim, isso aconteceu. Como tantos outros crimes ao meu povo financiados pelo Estado brasileiro. Eu só posso processar alguém que me direcione um ataque racista graças à luta de movimentos sociais pela criminalização do racismo. Não é justo, portanto, ficar calado. É preciso lutar para esses direitos serem ampliados.
Espero, sinceramente, que Neymar tenha outro posicionamento público diante da existência do racismo que só agora ele descobriu. O mundo esportivo, notadamente o do futebol, é machista, sexista, homofóbico e anti-preto. É, creio eu, o espaço que mais demanda desconstrução dentro do universo do entretenimento. Ter um atleta do quilate desse garoto na linha de frente da nossa luta seria elevar as reivindicações a outro patamar. E não importa se Neymar foi/é ou não mimado, como vi muitos alegarem. Também não importam, neste momento, para este episódio em específico, as convicções políticas do jogador (que, sim, são pra lá de controversas).
É perfeitamente possível ser contra o que ele defende e, ainda assim, estar solidário a ele. Um paradoxo necessário, eu diria. Porque diminuir a dor de alguém, seja ele quem for, em especial a dor decorrente de um episódio racista, é desumanizar esse alguém. É diminuir a causa, tão coletiva e tão fundamental. E, em ataques racistas, a culpa NUNCA é da vítima, não importa quem ela seja ou o que ela represente. Além disso, racismo não é uma brincadeira. Racismo não é “do jogo”. Racismo é crime. E precisa ser tratado assim.
Milhões de meninos pretos favelados espelham-se em Neymar. Noutros jogadores negros também, por óbvio. Daí ser tão necessário o melhor deles entender o lugar que ocupa e encampar em nosso favor. Nem que seja apenas em favor próprio, exigindo uma punição para Álvaro González. Ao fazer isso, já se estaria prestando um serviço imenso à conscientização coletiva de que inferiorizar o outro pela cor da pele é, além de ilegal, uma atitude rasteira para se sentir superior.
Da mesma forma que um ato racista fala muito mais do caráter de quem o pratica do que da vida de quem é atacado, o modo como a vítima reage também fala muito mais da verdadeira disposição dela para mudar paradigmas do que da letargia de quem não tem interesse nessa desconstrução. Por isso, Neymar, mãos à obra!
Seja bem-vindo ao time dos negros conscientes da própria negritude e antirracistas praticantes. Resta agora só você descobrir que apoia um presidente racista, homofóbico, machista e com tantas outras características inomináveis. Daqui, a gente pede pra você não sofrer de Síndrome de Estocolmo.
Mas aí é outro assunto!
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
1 comentário
Quero parabenizar Bruno de Castro pelo texto, e, abraçá-lo fortemente pela descoberta – nunca tardia – do horizonte antirracista. É assim que tornamo-nos todos “agentes”, “agência”, e, consequentemente, expurgadores dos “colonizadores” hospedados em nós, na perspectiva da afirmação de nossa identidade Afrocêntrica.
Um grande abraço ao Ceará Criolo!!!