Rede de Atenção Psicossocial precisa de melhorias emergenciais, mas Ceará ainda engatinha quanto à coleta de dados e até mesmo no tocante à interlocução entre projetos voltados para pessoas com dores na alma. Proposta é envolver profissionais da Atenção Primária para vascularizar os pontos de diagnóstico e acompanhamento dos casos
A execução de políticas públicas em Saúde Mental é responsabilidade tanto do Governo do Ceará quanto das prefeituras. Especialistas e usuários, porém, apontam a necessidade urgente de melhorias serem implementadas na prestação do serviço em ambas as instâncias.
As falhas põem em risco a integridade psicológica e física da população que enfrenta sofrimentos da alma e precisa de intervenções a curto prazo ou mesmo emergenciais de diversas ordens. E é o serviço público a principal (e, às vezes, única) opção da maioria da população no tratamento de qualquer doença.
Estima-se que 70% dos brasileiros dependam exclusivamente do SUS. No caso do povo negro, morador de periferia e exposto a inúmeras violências, isso é ainda mais evidente. As demandas de acolhimento terapêutico acabam supridas de forma importante (ainda que parcial) por projetos sem vínculo com o poder público.
No âmbito estadual, o Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinho (HSM), em Messejana, bairro de Fortaleza, é referência no atendimento em psiquiatria para todo o Ceará. Só de janeiro a agosto deste ano, segundo informou ao Ceará Criolo a Secretaria Estadual da Saúde (Sesa), a unidade registrou 16.220 atendimentos de inúmeras naturezas na enfermaria. Nove e meio por cento desse total (ou 1.501 ocorrências em números brutos) foram internações.
O Ceará não dispõe, no entanto, de projetos articulados em Saúde Mental. As iniciativas estão isoladas. Não conversam entre si. E sequer há um plano estadual para reduzir a quantidade de pessoas que interrompem a vida, a exemplo do que começou a ser feito em Fortaleza este ano.
Secretária-executiva de Saúde Mental do Ceará, Lisiane Cysne pondera que trabalhar a prevenção “é muito mais competência dos serviços municipais”. Ao Estado, conforme ela, caberia “apenas” lidar com casos de tentativa de autolesão fatal – ocorrências cuja orientação médica é a busca imediata da emergência hospitalar mais próxima para a tentativa de reversão do quadro.
“No caso da ideação [quando o paciente admite que pensa em tirar a própria vida], os Caps são referência. Eles têm equipes preparadas para isso. Mas a proposta hoje é a de capacitar cada vez mais os profissionais da saúde, especialmente os da Atenção Primária (que atuam nos postos, nas comunidades), para lidar com esse agravo. E esses profissionais são importantes porque estão praticamente dentro da casa das pessoas. São o primeiro contato delas com a rede”, pontua Lisiane Cysne.
Psiquiatra, ela argumenta que a política de Saúde Mental do Ceará “ainda está sendo construída”. Os três grandes hospitais inaugurados nos últimos anos pelo Governo em Sobral (Região Norte), Quixeramobim (Sertão Central) e Juazeiro do Norte (Região do Cariri), por exemplo, sequer dispõem de enfermarias e leitos especializados na área.
“Nós temos diversos serviços na rede. O que queremos agora é que eles conversem entre si. Que a rede se comunique. Estamos tentando informatizar essa rede. Porque pra ela se comunicar precisa falar a mesma linguagem e ter dados fidedignos, que vão resultar num diagnóstico situacional com a cara de cada região. E, em termos de dados, agora que nós estamos melhorando. O Brasil tem só 30 anos de reforma psiquiátrica. A batalha é grande. Mas se uma pessoa tira a própria vida isso significa que a gente falhou enquanto sociedade”, acrescenta a médica.
O Ceará Criolo também procurou a Prefeitura de Fortaleza para obter explicações sobre os fluxos de atendimento de pessoas com transtornos psicológicos e comportamentos autodestrutivos, e para a gestão municipal comentar projetos de melhoria da Rede de Atenção Psicossocial (Raps).
A Secretaria Municipal de Saúde (SMS), no entanto, posicionou-se apenas por meio de nota oficial na qual não dá esclarecimentos de quanto tempo médio é a espera por uma psicoterapia, quantas psicoterapias são realizadas nem com qual frequência ela é oferecida ao usuário.
Detalhes sobre o plano municipal lançado em agosto deste ano pela primeira-dama Carol Bezerra também não foram fornecidos. Na nota, a SMS informa que Fortaleza dispõe de 23 equipamentos na Raps. Só nos 15 Centros de Atendimento Psicossocial (Caps), mais de 25 mil atendimentos mensais são registrados.
“Os serviços ofertados nos Caps envolvem acolhimento, avaliação inicial, atendimento a situações de crise, reavaliação, visita domiciliar, ações intersetoriais, apoio matricial, oficinas terapêuticas, terapia comunitária, consulta individual, serviço social, clínica médica e psiquiátrica, assistência de enfermagem, psicologia, terapia ocupacional e massoterapia, além de promoção de atividades com grupos de dança, arte, música, fotografia, entre outros”, afirma a nota.
De acordo com a SMS, todos esses serviços dos Caps são realizados por “uma equipe multidisciplinar composta por médico psiquiatra, psicólogo, enfermeiro, técnico de enfermagem, farmacêutico, assistente social, terapeuta ocupacional, massoterapeuta, educador físico, fonoaudiólogo, nutricionista e pedagogo.”
Quem integra a Raps atesta melhorias substanciais no serviço, especialmente no último triênio, mas também relata fragilidades. “Realmente são feitos muitos atendimentos, mas de que tipo? Majoritariamente ambulatoriais? Ou há de fato acompanhamento? Só receitar remédio não resolve a questão. Muita coisa está sendo feita agora por pressão do Ministério Público, que estabeleceu uma série de procedimentos. Mas no primeiro mandato do prefeito a Saúde Mental foi negligenciada. A chegada de novos servidores desafogou muita coisa, é verdade. No entanto, a gente ainda se depara com a realidade de o acolhimento até hoje não ser padronizado. Não há um protocolo sobre como encaminhar o caso de uma pessoa que chega relatando o desejo de tirar a própria vida, por exemplo. No meu, a gente intervém imediatamente porque a equipe sentou e pactuou assim. Mas cada Caps atua da forma que acha melhor diante até do fato de que os Caps 24 horas ainda não têm internação e é preciso mandar a pessoa pra Messejana”, relata um profissional que pediu para ter a identidade preservada.
A inexistência de uma política de preservação da vida articulada é vista com criticidade pelo Ministério Público. “Nós precisamos ter uma política pública geral bem sedimentada, com equipes treinadas e bem equipadas no tocante à preservação da vida para aprofundá-la aos grupos específicos. Mas também é fundamental levar informação à população. Sem isso, a população não é capaz de contribuir com esse trabalho, que é de todos. Não precisa ser médico, psiquiatra, psicólogo, nada. Você pode ser até analfabeto e ainda assim ser um agente de preservação da vida. Mas hoje a maioria das pessoas que conhece alguém com pensamento de tirar a própria vida não oferece ajuda por medo de dizer alguma coisa e piorar a situação. E, na maioria das vezes, basta você dizer “fulano, percebi mudança no seu comportamento e estou aqui pra lhe ouvir”. Se você não julgar o que a pessoa te disser, ela vai criar um elo de confiança e você vai poder conduzi-la a uma ajuda especializada”, frisa o promotor Hugo Mendonça.
INFOGRÁFICOS: Rayana Vasconcelos.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.