E você, já viu um psicólogo? Se eu te pedisse para descrever a cara de um, como seria? Os cabelos, os olhos, como se veste… E o jeito de ser? Onde um psicólogo estaria? Como te receberia quanto te visse? Aliás, você já imaginou ir a um psicólogo?
Na pesquisa da minha monografia (“Eu não estou aqui”: texto testemunho para Psicologias Antirracistas), encontrei um artigo no portal Geledés chamado “Meu psicólogo disse que racismo não existe”, da escritora cearense Jarrid Arraes. Os comentários das/os leitoras/es me chamaram atenção. Alguém fala sobre denunciar ou prender o profissional, outra que o problema é da formação em Psicologia – e muito mais. E os profissionais daqui, quem somos?
Trago agora um relatório feito por Mayrá Pequeno, encomendado pelo Conselho Regional de Psicologia do Ceará (CRP-11): “Condições de trabalho de psicólogas(os) do Ceará”, de 2019. Apresento recortes, especialmente sobre o perfil profissional.
- Mais de 75% da categoria é composta por mulheres. Em nível nacional, já acontece a mudança nas redes sociais dos conselhos e na mudança de título do código de ética, desnaturalizando “homem”/”masculino” como sinônimo de humanidade;
- A grande maioria é católica, o que me fez lembrar do santuário da minha clínica-escola ou da cruz que via no pescoço de alguma estagiária ou professora quando estava nesta mesma clínica;
- As duas instituições que mais formam psicólogas são a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Universidade de Fortaleza (Unifor);
- Mais da metade se autodeclara negra (55,1%), sendo maioria parda (47,8%) e outra parte preta (7,3%).
A pesquisa de Mayrá Pequeno destaca a ambiguidade da autodeclaração “parda”, tendo a ver com a miscigenação e o branqueamento no Brasil. Eu não esperava por essa maioria, sinceramente. E umas perguntas me chegam: como é se perceber parda (nem preto nem branco, muito menos amarelo ou indígena) e ser psicóloga? Por que ainda há tanto silêncio da psicóloga em se dizer negra? Qual a responsabilidade da categoria diante disso?
Nisso, lembro de uma conversa com um amigo psicólogo sobre a rede de Psicoterapretas/os do Ceará, iniciativa que organizei pela ideia “simples” de mapear quem somos para facilitar indicações, porque era realmente difícil indicar uma terapeuta negra (na minha experiência e na de colegas próximas/os). Pensava que éramos poucas/os. Mas a ação não era tão simples assim e recebi uma crítica mais dura sobre a iniciativa. Antes, tinha ouvido comentários mais tranquilos. Era sobre isso a conversa com meu amigo psicólogo.
Só ser psicóloga negra garante ser psicóloga antirracista? Se declarar terapeuta negra ou LGBT+ pode ser um problema, pois prejudica o vínculo com a/o cliente, então não seria um erro expor? Uma psicoterapeuta branca não seria viável para pessoas negras?
Existem questões mais absurdas que outras. Por exemplo: se se declarar psicóloga LGBT+ seria um problema, seria mais uma questão de desconforto para héteros, acredito. A heterrosexualidade é bem frágil também para homens e mulheres negros. Também surgiu o assunto sobre o mito da “branquitude crítica”, os limites de uma pessoa branca que se coloca na luta antirracista – é possível mesmo?
De todo jeito, a conversa chegou em um ponto importante: o que se espera de uma psicóloga? Seu jeito de agir, roupa, cabelo, ambiente de trabalho? É esperada uma psicóloga “sem corpo” ou com corpo limpo, higienizado e branco?
Se eu pudesse montar uma personagem psicóloga, ela seria cis-hétero-branca, cabelo liso e loiro, jeito de ser plena-tranquila-convidativa, vestindo roupas que parecem dizer “sou séria”, com algumas poucas jóias folheadas a ouro. Nem eu nem meu amigo somos assim. Sou um homem negro, bixa, psicólogo e nordestino. Não nos esperam, mas estamos aqui. “Eu, psicólogo?”, lembro de uma pergunta que me fiz anos atrás. Inesperado.
Como escreve o psiquiatra Frantz Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas, “não fui eu quem criou um sentido para mim; este sentido estava lá, pré-existente, esperando-me” (p.121). Ou: “aqueles que estão diante de mim me olham, me espionam, me esperam” (p. 126). Existem a imagem da psicóloga e a imagem de uma pessoa negra. E as duas juntas? É possível reconhecer uma psicóloga negra? Um psicólogo negro e LGBT? Como dizer isso? Quem me espera e o que busca em mim? Essa é a pergunta, na verdade. O desconforto é da cisgeneridade, heterossexualidade, masculinidade e branquitude. Esse é meu ponto de virada e alívio.
Agora eu respiro. E resgato a lembrança de que não corri o suficiente, então vi a minha primeira psicóloga.
Era uma aposta no Ensino Fundamental II: bater à porta, correr e não ser pego. Eu não fui muito longe quando a porta abriu. Uma mulher branca, alta, de rosto muito quadrado, com cabelo pintado de vermelho, usava óculos e, sorrindo, me chamou de volta.
Era psicóloga da escola porque era amiga próxima de um dos donos da instituição. Era, então, comum ela caminhar com ele por aí sempre conversando e sendo apresentada aos alunos. Mesmo simpática e convidativa, ninguém ia para a sala dela. Só eu, quando vacilei, daí o peso da aposta. “Quem seria o doidin da escola?”.
Me agoniava o quão disposta, disponível, sorridente e, ainda mais, o quanto ela chiava enquanto falava. Quando entrei na sala, naquele dia que perdi a aposta, eu suava horrores. Olhava para baixo e queria fugir. Ela me tirou umas palavras e confissões, e toda vez que eu a via depois evitava, para não ser chamado de novo à sala dela. A gentileza era uma armadilha para eu falar, eu sentia isso.
Essa foi a primeira psicóloga que eu conheci.
Muitos anos depois, na minha turma de graduação, a gente via alguns colegas saindo e, logo depois, já veterana, sabia o ritmo de outras turmas: depois de alguma disciplina específica ou quando as coisas ficavam sérias, nos estágios, por exemplo. E eu fui ficando. Cheguei no meu dilema: até então, não queria tanto e nem sabia o porquê de ter feito Psicologia. Queria Publicidade e Propaganda, que não tinha na Estadual (só Psicologia, que começava com “P” também, então era o suficiente para eu escolher).
Na metade do curso, eu sabia que era uma necessidade de ser cuidado ou entendido por alguém (realmente) num momento muito difícil, mas eu estava me formando para ser profissional. Seria EU quem cuidaria/ajudaria outra pessoa. “Eu, psicólogo?”, assim eu ria até chegar no quinto ano do curso.
Em 26 de agosto de 2020, a categoria completou 58 anos de regulamentação da Psicologia como profissão no Brasil. Isso fez com que semana passada me dessem os parabéns pelo Dia do Psicólogo. Tanto colegas de trabalho quanto clientes. A vergonha de se dizer profissional já não existe. A comemoração era inédita pra mim e fiquei um pouco sem jeito por isso. Mas aceitei mesmo assim.
Cuidador online, psicólogo clínico e acompanhante terapêutico. CRP 11/15308. @maianetopsi