“A história única cria estereótipos. E o problema com os estereótipos não é que eles sejam mentiras, mas que sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história.” Chimamanda Adichie, escritora Nigeriana.
Não creio que estarei me equivocando ao afirmar que a maioria dos negros e negras cearenses não conhece a própria história. Mesmo os ditos militantes do movimento negro e pesquisadores e pesquisadoras negras. Isso representa um problema seríssimo.
Uma das estratégias do racismo é a produção de uma história única que tem por efeito o silêncio sobre nossa história e, consequentemente, a invisibilidade dos negros e negras e nas lutas cotidianas por liberdade, pela preservação de suas identidades étnica e de gênero, de poder viver, e a defesa de nossa cultura.
A marginalização de nossa cultura é uma ação proposital. Neste ponto se encontra a potencialidade das nossas tradições, das formas de cultuar o sagrado e do conhecimento de nossa descendência étnico-cultural e africana (que, no Ceará, é Congo-Angolana). Algo que tanto nos empodera e é responsável pela construção positiva de nossa identidade, é isso que a produção eurocêntrica quer que esqueçamos. Quando não temos domínio sobre essas informações e silenciamos sobre elas, reforçamos, sem perceber, o racismo que combatemos através do epistemicídio.1
Nessa história única, os protagonistas são sempre machos adultos, brancos e cristãos. Os outros grupos sociais aparecem geralmente como meros espectadores do processo histórico. Podemos trazer o exemplo da abolição. Nela, está implícito, pela forma como nos é passada, que a mesma fora uma dádiva dos brancos aos negros. Tal ponto de vista compreende a história como uma ciência que busca o passado apenas pelo passado. No entanto, felizmente, essa não é a única forma de se fazer história.
O historiador Marc Bloch subverte essa perspectiva propondo um estudo da vida dos seres humanos no tempo. Essa é uma perspectiva interessante, pois possibilita uma investigação das ações e significados dos diferentes grupos sociais, dentro dos contextos históricos, a exemplo dos africanos e seus descendentes. Tal ponto de vista nos possibilita, através de um diálogo com o uso de fontes documentais, saber como eles preservaram e criaram estratégias de resistências que garantiram, no presente, formas de conhecimentos, sobrevivências culturais e religiosas.
Tais saberes e fazeres históricos foram/são instrumentos fundamentais de fortalecimento da identidade negra. É neles que podemos dar vida e fortalecer a ancestralidade (de que muitos falam, mas não entendem nem vivem). É a conexão com o passado e a celebração no presente da memória dos que lutaram para que hoje estejamos aqui. Por isso, um dos pontos importantes ao conhecermos nossa história é lembrar daqueles que lutaram e vieram antes de nós: João Malemba, Tia Esperança, Tia Simoa, José Napoleão, Dragão do Mar e tantos outros. Entretanto, no momento, estamos presos às armadilhas do sistema que combatemos: o racismo.
Na Fortaleza do início do século XX, alguns trabalhos considerados infames, e que ninguém queria, prosseguiram praticados por negros e mestiços. Era o caso dos carregadores de camburões ou barris de dejetos. Esses barris, em outras cidades brasileiras, como no Recife, eram chamados de “tigres” e os seus condutores, de “tigreiros.”
A capital cearense, que a esta época se modernizava, entrava no novo século sem conseguir resolver problemas essenciais, a exemplo do fornecimento água e oferta do serviço de esgotamento. O cidadão, para ter acesso a água, tinha que fazer uma cacimba no quintal. A água potável, de mais confiança do povo, a água de beber era distribuída pelas residências em cargas de quatro ancoretas ou canecos, transportados por jumentos. Quanto aos esgotos, o processo era por demais grosseiro e inconveniente. Em Raimundo Girão tem-se uma descrição desta situação:
A maioria das casas mantinham, no quintal, cloacas fixas, às vezes simples buracos aberto ao chão, outras um barril ou um caixão enterrado, servindo de depósito às dejeções domésticas. Não havia W.C. De tempos em tempos, mudava-se o local do depósito, aterrando-se o anterior. Noutras casas, as mais ricas, adotavam-se cloacas moveis. Cubos de ferro ou barricas, com a capacidade média de 50 quilos, eram conservados em lugares discretos e neles depositados durante três, cinco ou mais dias.2
A chegada do século XX alterou em quase nada a vida dos negros e seus descendentes. Na verdade, eles deixaram a condição social de escravos para se tornarem marginalizados. A função de removedor de barris ou cubos e seu despejo sempre foi visto pela população livre como um trabalho condenável por ser considerado anti-higiênico e incômodo − essa era, durante o escravismo, uma função dos escravizados. Com abolição e a pauperização de parte da população, o recrutamento desses trabalhadores passa a ser entre os pobres, como nos informa Tomas Pompeu de Sousa Brasil:
Os condutores de barris, recrutados na escória da ínfima classe de jornaleiros, pela natureza repugnante do serviço…eram acusados de serem agentes de infecção da cidade, por às vezes irem conduzindo esses barris embriagados e/ou pelas condições dos mesmos, derramarem no meio da rua.3
Esses carregadores de camburões, por questões óbvias, não passavam despercebidos na cidade. Tais peripécias tornaram alguns mais conhecidos que outros, a ponto de figurarem em crônicas de autores cearenses, como é o caso de “Romão e o Sabão Mole”. Girão, através de Gustavo Barroso, descreve-os:
Romão é um antigo escravo bestializado pela miséria. Imundo, fedorento e sórdido, anda meio curvo, arrimado a um varapau, rosnando sempre nomes feios. Sustenta-se de cachaça e come vísceras cruas que compra ou lhe dão na Feira, misturadas com farinha de mandioca no fundo do seu fétido chapéu de carnaúba.(…) O concorrente de Romão, no sórdido ofício − continua Gustavo − é o Sabão Mole, mestiço, alto e escavado, cuja face a amarelidão tornou semelhante ao sabão amolecido na água. (Grifos meus)
A forma como Romão é descrito por Gustavo Barroso é um reflexo de como a elite branca brasileira (especificamente de Fortaleza) enxergava os ex-escravizados (e os negros livres) nas suas velhas atividades. Essa descrição também retrata como a sociedade cearense, em especial a fortalezense, não se preocupou em criar condições para aqueles antigos escravizados, libertados em 25 de março 1884.
Outros personagens negros que marcaram a Fortaleza do início do século XX são também citados por Raimundo Girão. Ao tratar dos chamados “tipos de rua” − aqueles indivíduos que perderam ou não alcançaram a condição de cidadãos e que geralmente ganham o adjetivo pejorativo de mendigos, vagabundos e loucos − ele cita Micaela (e outros), que é descrita por um tal Pedro Sampaio como uma
negra retinta, varapau de quase dois metros de altura, com passos de soldado alemão, vestida de preto e saia arrastando no chão. Andava nas ruas pelo calçamento e atravessava a praça em diagonal. Empunhava um grosso porrete, também preto, e a cada esquina parava, olhava para todos os lados e depois continuava seu caminho. Diziam que ela botava feitiço, que era homem disfarçado de mulher, mas a Micaela, que causava pavor a toda a gente, era simplesmente uma inofensiva criatura, que morava sozinha em uma palhoça para os lados do Prado Velho e só saia à rua para revolver as latas de lixo e catar o que comer.4 (Grifos meus)
E continua:
“(…) De rancho…um maníaco das ordens militares. Onomatopeicamente, reproduzia os tiros e as rajadas de metralhadoras numa algazarra atordoante. Velhote negro, vendedor ambulante, corria a cidade a gritar sempre: ‘Preparar, fogo! Descansar, armas! Pra, pra, pra! Bum!’ o que juntava os pregões: ‘Milho verde! Abacate!.’ Chamava-se Jesuino Rosendo, estivera nas lutas de Canudos e veio para o Ceará trazido pelo General Eudoro Correia, diretor do Colégio Militar.”5 (Grifos meus)
Nos anos pós-abolição, não houve política pública por parte das autoridades de inserção de ex-escravizados à sociedade fortalezense (dando a esses condições de moradia e trabalho). Uma grande parte foi abandonada à própria sorte e outra permaneceu com seus antigos donos por não terem para onde ir. Daí, podemos, então, supor que a situação de Romão, Micaela e Jesuino pode ser vista como um retrato de como aqueles, condenados à própria sorte, criaram estratégias de sobrevivência.
A forma como esses eram vistos pela sociedade talvez representasse a forma como os mesmos queriam que a mesma os visem. Isso pode ser percebido na narrativa sobre Micaela que, por andar com um porrete, era vista como valente (a ponto de a compararem a um homem) e acusada de fazer feitiço. Mas, aos olhos de observador mais atento a Micaela, que causava pavor a toda a gente, era simplesmente uma inofensiva criatura. E, talvez por ser uma mulher, negra e morar sozinha em uma palhoça para os lados do Prado Velho [região onde hoje fica hoje o IFCE no bairro Benfica] e [que] só saia à rua para revolver as latas de lixo e catar o que comer que aquele personagem teria que ser incorporado.
A situação de Romão não é diferente. Na busca de sobreviver, Romão foi levado a aceitar as condições de trabalho que lhe eram impostas. É possível que ao andar pela cidade proferindo palavrões Romão estaria de certo exteriorizando sua indignação pela forma como a sociedade o tratava. E que, algumas vezes, derramasse os dejetos na rua de propósito. E, diante de tudo isso, divertia-se com as portas e janelas se fechando, com as pessoas correndo para não sentirem o mau cheiro e até com as reclamações. O estado de embriaguez, em certos momentos, serviria até como desculpa pelo acidente (apesar de achar que só mesmo bêbado que esses trabalhadores conseguiam suportar o mau cheiro).
Ações iguais ou semelhantes podem ser percebidas como “formas cotidianas de resistência”. Como expressões dessa resistência cotidiana, citaremos as seguintes expressões: fazer ‘corpo mole’, dissimulação, condescendência, furto, surrupio, simulação, fuga, fantasia, difamação, maledicência, incêndio culposo [e outros].6 Para o cientista político e antropólogo James C. Scott7, as relações sociais devem ser observadas como uma teatralização, onde os indivíduos se utilizam de diversas máscaras para lidar com situações de poder. Penso que, a partir desse olhar, compreenderemos as estratégias de sobrevivência dos negros e negras em Fortaleza ao longo do século XX.
Estratégias de sobrevivências por compreender que uma barreira social e racial foi construída historicamente na sociedade brasileira para impedir que esta população alcançasse direitos básicos de cidadania.
O fim da sociedade escravista no Ceará não significou liberdade nem deu à população negra o direito de ser cidadã. A vida cotidiana representou o palco de lutas pela sobrevivência em todos os sentidos. Os personagens dessa luta foram em muitos casos pessoas anônimas e vistas como indesejadas por uma sociedade racista e desigual. Essas pessoas negras foram apagadas da história. Resgatar suas lutas é torná-las vivas e celebrar suas memórias. De diversas formas, elas garantiram conquistas e respeito que outras(os) no futuro ampliaram. Lembrá-las no presente é desconstruir a estratégia da história única de condená-las ao esquecimento. Evocar suas histórias e lutas é mostrar que essa história oficial mente ao nos inferiorizar.
Desse modo, ao expormos aqui a luta cotidiana de Romão, Sabão Mole, Micaela e Jesuino Rosendo estamos mandando um recado de que as lutas e histórias de negros e negras libertos/as e livres como João Malemba, João Congo, Tia Esperança, Tia Simoa, José Napoleão e Francisco José do Nascimento (Dragão do Mar)8 no século XIX e tantos outros − a exemplo dos negros homossexuais Raimundo (conhecido como Burra Preta) e Zé Tata que, pela valentia, seriam a Madame Satã cearense e que viveram na Fortaleza dos anos 70 e 80 do século XX.
Essas ações representam uma continuidade no tempo de que jamais aceitamos a opressão. Revelam que a luta e a resistência estiveram presentes onde existiu opressão a nossas vidas e formas de preservação da nossa identidade negra.
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1 O epistemicídio é, em essência, a destruição de conhecimentos, de saberes, e de culturas não assimiladas pela cultura branca/ocidental. É um subproduto do colonialismo instaurado pelo avanço imperialista europeu sobre os povos da Ásia, da África e das Américas. Fonte: Epistemicídio, a morte começa antes do tiro. Disponível em: https://www.almapreta.com/editorias/realidade/epistemicidio-a-morte-comeca-antes-do-tiro.
2 GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Fortaleza, Imprensa Universitária do Ceará, 1959. Prefácio de Antônio Martins Filho. (Biblioteca de Cultura – Série A – vol. 1). Ilustrada. Pags. 227 e 228.
3 SOUSA BRASIL, Tomas Pompeu de. O Ceará no começo do séc.XX, Fortaleza. Typo-Litografia a Vapor − 1909.
4 GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Fortaleza, Imprensa Universitária do Ceará, 1959. Prefácio de Antônio Martins Filho. (Biblioteca de Cultura – Série A – vol. 1). Ilustrada. Pags. 236.
5 GIRÃO, idem. Pag. 239.
6 MENEZES, Marilda Aparecida de. O cotidiano camponês e a sua importância enquanto resistência à dominação: a contribuição de James C. Scott. Raízes, Campina Grande, vol. 21, nº 01, p. 32-44, jan./jun. 2002
7 SCOTT, James C.. A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos. Tradução: Pedro Serras Pereira. Apresentação: Fátima de Sá. Letra Livre, Lisboa, 2013
8 Estes personagens e tantos outros aparecem nas histórias de luta contra o Tráfico interprovincial no meu livro, FERREIRA SOBRINHO, José Hilário “Catirina, minha nêga, tão querendo te vendê…”: escravidão, tráfico e negócios no Ceará do século XIX (1850-1881). Fortaleza : SECULT/CE, 2011, v.1
Graduado em Ciências Sociais e mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É pesquisador da Cultura e História do Negro no Ceará.