Passava pouco das 14 horas desta quinta-feira (18/5) quando Anielle Franco entrou no auditório do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), em Fortaleza. Trajava um vestido azul, como quem carregava um oceano consigo. No peito, um colar de concha. Nada mais simbólico para um lugar que, lotado, lhe rodeava dos seus. Era como se cada um e cada uma ali fosse uma parte pequenina da imensidão de águas representadas por ela, uma mulher negra de origem favelada, e ela própria, hoje ministra, fosse, exatamente pelo cargo que ocupa, a esperança para ecoar outras esperanças. Tal qual é o búzio um relicário pélago dos ruídos; um artefato meticulosamente esculpido por Iemanjá, a mãe daquilo que molha.
Para uma plateia de jovens, Anielle falou de sonhos. Do que eles representam. Do país que ela idealiza e ajuda a construir estando em um dos postos mais altos da administração pública nacional. Um Brasil no qual o povo negro esteja vivo. O povo ao qual ela pertence e do qual descende. Ou seja: um futuro diametral oposto do que temos hoje com um persistente genocídio negro como projeto histórico de Estado.
Entre atabaques e axés, essa plateia ouviu da ministra que: “a gente não vai mudar nunca mais pra caber na política, porque a política é que tem que mudar pra gente caber nela”. Por isso, e por tanto mais, foi ovacionada. Emocionou-se. Mais de uma vez. Por lembrar da própria trajetória e por, como disse, ter visto a memória da irmã, Marielle Franco, tão respeitosamente reverenciada em imagens, gestos e gritos de protesto.
A seguir, se viu surpreendida pela imprensa cearense que, em entrevista coletiva, a incitou a comentar o mais recente escândalo envolvendo humoristas brancos que se arvoram do “direito de ofender”, para reproduzir a expressão literal usada por um deles sobre o caso, e ofendem principalmente negros/as, mulheres, pobres, LGBTs e pessoas gordas e/ou com deficiência.
O bate-papo com o Ceará Criolo ocorreu logo após isso, numa sala da administração do CDMAC e com uma Anielle que estava em Fortaleza não para ver surrupiado por homens brancos racistas o protagonismo do lançamento da caravana de construção do “Plano Nacional Juventude Negra Viva”. A ministra queria falar sobre o que um ministério ressurgido das cinzas tem feito. E falou. Colocou a bolsa de lado, esqueceu o celular e conversou conosco sobre políticas afirmativas.
Fomos, assim, o único veículo do Ceará a conseguir uma entrevista exclusiva com Anielle Franco, que, se houvesse condições políticas para isso, instituiria cotas raciais para 50% das vagas do ensino superior. Mas ela está no Governo. E gestão nenhuma se faz de radicalismos. Ou se aprende a ceder, a negociar, no sentido mais literal do termo, ou se é devorado. E ela, a despeito do que muita gente pensa, sabe muito bem disso.
“A gente tem sonho. A gente tem projeto político de país. No meu projeto, vocês estarão vivos e respeitados do jeito que são. Se esse projeto estivesse em curso há alguns anos, a Mari (Marielle) estaria aqui com a gente. Então, a gente tem muito trabalho a fazer”, afirmou, no auditório-oceano. Para mim, minutos depois, no reservado, Anielle foi categórica: “a mudança tem que ser agora.”
Confira a íntegra da entrevista com a ministra da Igualdade Racial.
CEARÁ CRIOLO: A senhora defende as cotas raciais desde antes de compor o Governo do presidente Lula. E sempre faz muita questão de dizer que foi cotista. Quando a senhora assume o Ministério da Igualdade Racial e toma pé de tudo o que aconteceu, qual cenário a senhora encontra? E o que pretende startar a partir daí?
ANIELLE FRANCO: Nós encontramos zero investimentos pra políticas públicas pra igualdade racial. Ponto. Isso era notório. No GT de transição sobre igualdade racial, a gente tinha isso muito explícito. Porque, na verdade, não tinha uma crescente de dados nem de investimentos dos últimos seis anos pra cá. Tínhamos o que a presidenta Dilma deixa e, depois do golpe, se manteve ali. Um outro ponto: dentro do Ministério dos Direitos Humanos, ela puxa uma Secretaria de Igualdade Racial, puxa uma Secretaria da Mulher e uma da Família. Ou seja: como se [a Igualdade Racial] fosse ali não um protagonista e sim um mero coadjuvante.
Qual o nosso maior desafio hoje em relação às cotas? Porque existe ainda uma parcela da população que acredita que não tem que ter. E, para além disso, a gente ainda tem parlamentares que defendem a extinção das cotas de acesso ao ensino superior. Por isso que eu sou muito incisiva em falar e defender as cotas. Essa posição, essa postura vem comigo desde antes e não iria mudar jamais, mesmo sendo ministra.
Cota pra mim é a maior política de ação afirmativa que esse país já teve! Na minha opinião, disparado! A gente pega dados de 2002, que você tem ali 1,3% de pessoas negras que ingressam no ensino superior. Aí, em 2012, você tem 3,3%. Aí, você vem dez anos depois e você tem 43%. Então assim, tem alguma coisa. Tem um retrato ali do porquê.
Ontem, e desculpa me alongar, mas é só pra você entender a minha indignação, a Bené [Benedita da Silva, uma das fundadoras do PT e primeira mulher negra deputada federal no Brasil] tava lá na Câmara, na Convenção da Mulher, e falou assim: “essa semana, eu fiquei muito feliz! Eu fui à Uerj e eu vi vários jovens negros. Isso não acontecia”. Quando eu entrei na Uerj, em 2012, eu tinha uma professora negra. Na minha sala, como cotista, eram só cinco alunos. Porque assim: as pessoas não têm acesso, não conseguem entrar e, quando entram, às vezes não conseguem permanecer.
Então, a minha grande briga, a minha grande defesa, quando eu falo com o Camilo Santana, por exemplo, é sobre isso: não adianta só a gente fortalecer a Lei de Cotas pra entrar. A gente tem que botar esse jovem pra permanecer ali. Porque muitas vezes eu fui salva pelo dinheiro da bolsa. Eram 300 reais que eu usava pra passagem, pra comida, pra tirar xerox… Então, é preciso todo um olhar quando a gente fala de Lei de Cotas.
CEARÁ CRIOLO: A senhora já chegou a ir na Unilab?
ANIELLE: Já. E a gente já tá falando com a Unilab. Porque tem muita coisa que tem que ser renovada ali. Desde quando não tem um investimento na Unilab? Há muito tempo! A gente não tem, Bruno, de verdade, como não fortalecer a Lei de Cotas agora. Com todo e qualquer parlamentar que eu encontro eu falo. Não é mudar. É fortalecer.
Tem gente que fala que a lei tem que mudar porque tem que ser social. Porra! Mais social do que já é? Não tem como falar que não é social! Pra mim, é a maior política de ação afirmativa. Pra mim, tem que ser fortalecida. Pra mim, tem que pensar essa permanência, sim.
CEARÁ CRIOLO: Mas ministra, qual é o entendimento da senhora quanto a esse fortalecimento? Fortalecer como? O que a senhora tem em mente?
ANIELLE: A gente tem que demonstrar cada vez mais os dados do progresso e da efetivação das cotas. Porque as pessoas falam: “me prova como cota ajuda em alguma coisa! É mentira”. Eu, enquanto professora, enquanto estava no Instituto Marielle Franco e agora, enquanto ministra, a pergunta que mais fazem é: “desde quando cota ajudou em alguma coisa? Ajudou em quê?”. Isso é inadmissível. E falam isso sendo eu mesma fruto de cota! Entende o absurdo?
A cota produz deputado, produz um monte de coisa! Hoje, você procura dermatologista pra pele negra e já tem. A gente não tinha isso antigamente. É isso o que me deixa indignada. Porque a pergunta que chega pra mim é: “mas pra que fortalecer? Não dá nada”. E a gente tem produção acadêmica de montão de professoras, mas dez anos depois da lei ser criada ainda tem gente no nosso convívio que acha que não tem que ter.
O fortalecimento, pra mim, passa por dados, passa por seminários aos montes. No país inteiro. Faz no mundo inteiro! A gente relançou o Japer [sigla em inglês para indicar Plano de Ação Conjunta para Eliminar a Discriminação, a ser executado em parceria com os Estados Unidos] agora e as primeiras perguntas da embaixadora dos Estados Unidos e das chefes de Departamento de Estado foram sobre as cotas. Porque elas sabem que nós nos inspiramos neles e que a gente tem que fortalecer. E como que fortalece? É isso: fazendo com que elas cheguem a mais espaços. Quando a gente cria preenchimento de 30% nos ministérios, na administração pública. Quando a gente tem um programa de letramento racial, pra que a gente possa debater isso…
CEARÁ CRIOLO: A ideia da senhora, então, é não se trabalhar mais com a ideia de 20% e partir pra patamares maiores de cota?
ANIELLE: Você fala em relação ao ensino superior?
CEARÁ CRIOLO: De um modo geral, porque via de regra a base que se tem é de reserva de 20% das vagas…
ANIELLE: Ia ser lindo se a gente pudesse ampliar. Mas a gente não perder os 20% é o mínimo. Quando a gente fala de fortalecer, é óbvio que, por mim, a gente colocava 50% nessa bagaça. Por mim, as cotas raciais seriam 50%. Mas a gente sabe que talvez a gente não consiga botar 50%. Mas a gente precisa cada vez mais fortalecer que fique minimamente os 20%. Nós fizemos 30% na administração pública dos Ministérios do Governo Federal. No ensino superior, a gente tem que, pelo menos, manter.
CEARÁ CRIOLO: Cota não é uma temática exclusiva do seu Ministério, embora tenha nascido nele, no primeiro Governo Lula, com a ministra Matilde Ribeiro. Na Educação, a senhora já se articula com o ministro Camilo Santana desde o início do Governo e, hoje, diferente de antigamente, o presidente Lula é uma figura sensível à causa. O que tem avançado com a senhora à frente desse diálogo? O que o Camilo já sinalizou? O que se mostra possível de fazer a curto, médio e longo prazo?
ANIELLE: O que acontece hoje, politicamente, que causa dúvida? A gente tem as cotas do ensino superior e tem a cota de concurso. Essa do concurso público vence ano que vem. A nossa cota, ela não vence. A gente tem essa discussão política. E muita gente acha que ela vai acabar ano que vem. E trás uma discussão dessa pauta achando que tem o poder de “não, não vai ter mais”. O Camilo sabe. Ele sabe da nossa, diria, priorização em educação, em acesso pra Lei de Cotas. Ele fala: “o que vocês precisarem, a gente tá aqui.”
Esse debate vai começar agora, com a Dandara, que vai ser a relatora no Congresso. É uma deputada do PT, jovem. E a gente está cada vez mais em diálogo em conjunto, conosco, já alinhando tudo o que a gente vai levar em discussão. Porque o que a gente não pode é levar esse debate pra lá e perder o que a gente já tem. Retroceder não tem como. Então, a nossa ideia é essa: fortalecer o que a gente já tem e mostrar, com dados, com comprovações concretas, o que a Lei de Cotas tem feito no nosso país.
CEARÁ CRIOLO: Dentro desse contexto do ensino superior, existe o acesso da graduação e o acesso dos cursos de mestrado e doutorado. Neles, há uma guerra porque muitos programas alegam “autonomia acadêmica” e burlam a implementação de cotas mesmo hoje, dez anos depois da criação da legislação. Como a senhora pretende lidar com isso? Pretende?
ANIELLE: Dentro do Ministério, a gente tem uma secretaria focada em ações afirmativas com duas professoras universitárias maravilhosas. Tudo isso está no nosso radar. A gente tá construindo. Por isso que quando a gente tem um GT de um plano nacional de políticas afirmativas, passa também por isso.
Assim, é óbvio que a gente não tem a solução de tudo inicialmente. A gente tá construindo. Porque os programas encontram facilidade pra burlar a obrigatoriedade das cotas e não aderirem a cota nenhuma.
CEARÁ CRIOLO: Mas a ideia de vocês é o que, ministra? É ir às universidades fazer sensibilização no corpo a corpo?
ANIELLE: Com certeza! Com certeza. Mas estar junto com o MEC pra isso. Porque o MEC é essencial, seja a Secretaria de Ensino Superior ou a Secadi, mas eles têm que estar conosco. Porque o pessoal do MEC sabe.
CEARÁ CRIOLO: E dá pra fazer isso sem orçamento, ministra?
ANIELLE: Vai ter que dar! Vai ter que dar! Nem que seja por e-mail, por telefone, mas vai ter que dar! O que a gente não pode é retroceder!
CEARÁ CRIOLO: Como que se chega nessas pessoas? Como que convence?
ANIELLE: Mas o ministro Camilo tá muito do nosso lado pra que isso chegue até lá. Ele já falou, tanto em relação a orçamento quanto ao que mais precisar construir. É pegar a secretaria e ir. Ele sabe, até porque esse é um pedido do presidente Lula. Porque as cotas têm um peso de virem no governo dele (Lula). Então, ele sabe e fortalece.
Quando nós fizemos o evento do 21 de março, tinha uma estudante da UNB, se não me engano, que conta o relato dela e ele (Camilo) se orgulhando, falando depois, comentando com a gente da importância da Lei de Cotas. Então assim, não tem como: a gente tem o presidente, tem os dois ministérios e tem que fazer chegar. Como eu não sei, mas tem que chegar!
CEARÁ CRIOLO: A senhora pretende chegar ao fim do mandato comemorando o quê? A senhora deseja voltar ao Ceará pra comemorar o quê? O que a senhora vislumbra?
ANIELLE: De sonho? A gente ter conseguido colocar mais jovens negros no mercado de trabalho. A gente ter conseguido tirar inúmeras mulheres que empreendem com tão pouco, seja criando cozinha solidária ou ajudando com material. A gente pretende comemorar o fim do genocídio da população preta em vários locais. A gente pretende ter titulado um monte de terra quilombola, de território. De ter chegado nesses quilombos com educação, com saúde, com luz, com água, com vida digna. O que mais? Eu quero comemorar a população negra tendo acesso ao SUS. Que uma mulher negra parindo não tenha medo de ser assassinada ou não ser atendida por ser uma mulher negra. Ter a saúde mental recuperada do nosso povo. Eu queria também chegar ao final do mandato comemorando o fim da violência política, principalmente contra mulheres negras e mulheres LGBTQIAP+.
CEARÁ CRIOLO: Está no seu horizonte, ministra, trabalhar no campo educativo pra fazer um letramento racial em massa?
ANIELLE: Com certeza! Já estamos tocando um programa na administração pública. Sexta agora, a gente se reuniu com a Anac. Porque é inadmissível o que está acontecendo nos aeroportos! Então, a partir dali, a gente ofereceu pra Anac um letramento, minimamente que seja, junto com a PF e com o MDHC pros seguranças que atendem a Anac e atendem aeroporto. A gente espera que eles aceitem.
A gente sentou com a Coca Cola e com a Ambev pra pensar esse letramento nas empresas, porque não basta eu falar “vem, pretinho, trabalhar comigo” e soltar eles nas empresas, largo lá e o ambiente é adoecedor. Eu falei isso com todas as letras. Ontem, nós recebemos o iFood, e tratamos de condições de trabalho. Porque lá 89% são entregadores negros.
É óbvio e eu sei, Bruno, que eu posso estar sonhando e querendo muito. Mas se a gente não sonhar e tentar fazer, não tem motivo pra gente estar aqui, trabalhando. É por isso que a gente está incansável reconstruindo um Ministério que sequer tinha orçamento.É por isso que a gente tá indo em todos os lugares! A gente tá com quatro meses e meio e já tem 50 e poucos voos. Não é pouca coisa, sabe! É uma missão que a gente tem pela frente, porque o povo tem urgência!
Não dá pra gente falar de priorização de educação, saúde, genocídio, quilombo…o que mais que eu tô esquecendo? Fome! O combate à fome! 70% são pessoas negras e a gente tem que agir. A gente foi na Previdência, que é a primeira favela do Rio de Janeiro, com o ministro Wellington Dias [ministro do Desenvolvimento Social], pra assinar um acordo de combate à fome! A gente tava lá na Ação e Cidadania pensando em cozinha solidária pra Baixada, porque são mulheres vivendo no ano com 5 mil reais! O ano! No ano! E consegue ajudar os outros distribuindo quentinhas dentro do próprio território! É só a gente pensar no Nordeste! Então, tem que estar em conjunto com a Cida [Gonçalves, ministra da Mulher], pra pensar a violência contra as mulheres. A gente cria o programa “Mulher viver sem violência”, que são mulheres da administração pública que vão ter prioridade, se já sofreram alguma violência, pra serem contratadas pelas empresas terceirizadas. A gente fez isso agora. É muita coisa. E o segredo pra mim é não cansar. Porque se eu parar pra pensar que tô cansada, aí não vai dar certo. É a gente ir até o final e batendo até o final!
Ontem, foi muito importante estar na Câmara e estar com tantas deputadas, não só do PT mas de vários outros partidos, ouvindo e debatendo sobre essas questões. Porque não é mais sobre mim ou sobre outra pessoa. É sobre todo mundo. É sobre um país que precisa crescer.
Eu falo muito, né? Me perdoa.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
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