A gente sentou no chão e conversou. Éramos, ao mesmo tempo, dois estranhos recém-descobertos um ao outro (ao menos presencialmente) e cúmplices antigos. Negro e negra, os dois jornalistas e escritores, contra uma parede branca de uma Pinacoteca, a Pinacoteca do Ceará, inaugurada horas antes com uma exposição de/sobre/para pessoas como nós: Negros na Piscina. Foi no miolo deste trabalho que aconteceu a entrevista revelada nas linhas abaixo.

Era dia de jogo da Copa do Qatar. Brasil em campo. Quartas-de-final. Uma manhã de sexta-feira. Croácia, a adversária. Eu, de branco, para o dia de Oxalá; Fabiana Moraes, de preto e vestida também de memórias de ondas e raios de sol de uma Sabiaguaba na véspera. Um país inteiro com o coração na goela porque era vencer ou vencer, enquanto nós não estávamos afeitos a futebol. Ou melhor: àquele futebol. Àquela seleção. Éramos gêmeos de uma aversão muito específica. Neymar nos descia indigesto, a despeito de uma feijoada deliciosa para a qual fomos convidados antes de a entrevista ocorrer (e a qual, enfim, nos rendemos depois da conversa e de alguns caminhos percorridos por dentro do complexo cultural do qual a Pinacoteca faz parte).
Nós havíamos nos visto só duas vezes. Ambas pelo computador. A primeira, numa aula on-line dessas ministradas durante os picos da pandemia de Covid-19 e para a qual fomos convidados a falar sobre jornalismos. Eu em Fortaleza, dizendo do Ceará Criolo, e ela no Recife, de onde é e mora, refletindo acerca do poder humanitário das subjetividades na escrita – exatamente o marco maior da carreira de Fabiana, de quem eu conhecia apenas a fama de ser uma repórter nordestina com uma coleção particular de prêmios Esso.
Da aula on-line, no fim de 2021, em diante, nosso papo evoluiu do Instagram para o Whatsapp e culminou num convite de Fabiana para eu ser um dos professores de um curso coordenado por ela para jovens jornalistas e estudantes de Jornalismo viventes em periferias. Na aula, também virtual, lá ela. Acompanhando tudo. E mediando o nervosismo de um iniciante nas docências.
No nosso primeiro encontro presencial, porém, no dia anterior da entrevista transcrita abaixo, antes também, portanto, de a gente sentar no chão da Pinacoteca e conversar por quase uma hora e meia, ela me disse, durante a abertura da exposição Negros na Piscina, dentro de um vestido de gala preto e a caráter para as felicidades: “nós já nos conhecemos faz tempo, Bruno.”
Ao dizer isso, ela sabe bem, acenou a uma ancestralidade que nos une a todos e para nós, pessoas negras, é ainda mais cara. Porque representa a possibilidade de continuarmos nos perpetuando. Porque, ao fim e ao cabo, naquela primeira aula on-line, da qual fomos palestrantes, a gente percebeu o quanto nossos olhares miram o mesmo horizonte: de um jornalismo menos desumanizador e mais emancipatório. Porque é isso ou desaparecermos, enquanto categoria e, sobretudo, enquanto gentes.
Ao lado de uma das grandes obras de Negros na Piscina, um imenso tecido no qual lê-se “Protejam suas garotas”, nós conversamos sobre muitos mundos possíveis e o que as bichas têm a nos ensinar. Assim como para Fabiana, me foi impactante entrar na exposição e ser recepcionado por uma sequência de fotos de Ester. Uma bicha preta poderosa. Uma revolução. Tal qual me foi urgente a necessidade de me reconhecer num casal de crianças negras vestidas de doutoras do ABC. Às vésperas de ingressar em um doutorado em Comunicação e prestes a entrevistar uma Fabiana doutora (em Sociologia) há uma década, era impossível não marejar diante daqueles dois. Dulce, de rosa, e Efigênio, de azul. Canudos nas mãos e olhos de sonho.

Fabiana desconstrói a imagem da intelectual inacessível. Doutora sim, ela fala a língua dos pretos, que é a língua da vida, sem desprezar a língua branca, elitizada, das apartações. Disputa narrativas de igual pra igual porque sabe que ser negra, mulher e nordestina é potência e nunca, jamais, em tempo algum, degenerescência. Enquanto conversávamos, o Brasil perdia para a Croácia e a Negros na Piscina iniciava a temporada de exibições no Ceará, onde fica pelo menos até maio de 2023. O mais significativo, talvez, de tudo o que trocamos naquele tempo sozinhos no meio de uma exposição aberta só pra nós, foi a generosidade das palavras de Fabiana, que me recebeu em meio a uma agenda corrida da própria exposição, entrevista pr’As Cunhãs e lançamento do livro A pauta é uma arma de combate.
Por isso, sugiro a você, que acompanha o Ceará Criolo, a ler essa entrevista como quem faz um amigo, lembrando que a melhor fotografia, dizem, é a do sentimento. É a memória dos afetos. Foi esse entendimento que me fez ter coragem e ousadia de entregar nas mãos de Fabiana o exemplar de um livro meu, lançado três anos atrás e feito em homenagem à minha mãe e aos sertões que me povoam, no desejo de que aquela jornalista na minha frente enxergue um pouco de si no caminho que percorri naquelas palavras. Caminhos por dentro. Porque eu me reconheço em muitos dos passos que ela, Fabiana, dá.
Saravá.
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CEARÁ CRIOLO: A exposição Negros na Piscina é composta por muitas linguagens. A gente responde a estímulos pelo olhar, pelo ouvido, pela leitura… Enquanto curadores, como você e o Moacir dos Anjos fizeram essa dosimetria do que ia acontecer e como ia acontecer?
FABIANA MORAES: Tinha a questão de a exposição acontecer dentro do Solar, que é um festival de fotografia. Mas a proposta que a gente tinha de exposição, que ainda não se chamava Negros na Piscina, quando a gente tava pensando em fazer uma exposição que trouxesse a felicidade como também um ato de insurgência e de possibilidade, era uma exposição com várias linguagens. E Moacir tinha recebido o convite pra trazer o Alfredo Jaar pra cá porque ele fez uma exposição com Jaar lá em São Paulo, no Sesc Pompeia. E aí, quando essa questão foi postergada, perguntaram a Moacir se ele teria alguma proposta e ele disse que estava montando uma exposição comigo, mas não era só de fotografia. E isso foi recebido de braços abertos e só fez crescer ainda mais as próprias fotos. Elas ganham muito nessa conversa com outros objetos e outras linguagens no campo da arte.
Aí, a gente começou a pensar nessa aglutinação, nessas coisas conversando entre si, a partir dessa questão pragmática que se colocou. Mas essas questões já estavam postas pra nós para além da questão das imagens e do campo da arte também. Tem essa convergência minha e de Moa pra falar sobre esse assunto, eu vindo muito da análise das imagens midiáticas e Moa pensando de como o campo da arte se desenha no Brasil. Então, tanto representações artísticas quanto midiáticas a respeito da felicidade estavam interpelando a gente, de modo que a gente não podia repousar na fotografia em si essa exposição.
CEARÁ CRIOLO: A gente vê que todos aqui são corpos negros e de diversas expressões. São muitas subjetividades expostas. E a subjetividade é um campo sobre o qual você tem se debruçado muito na Comunicação. Quando você traz essa perspectiva midiática pra dentro da exposição e coloca uma lupa sobre isso no mercado de comunicação, que não é hoje a mesma de cinco anos atrás, o que você encontra?
FABIANA MORAES: É muita coisa, né? É tudo ao mesmo tempo agora. A gente, aos poucos, por insistência, pé na porta, atuação em campos diferentes, seja em movimentos sociais, dentro da academia, conversando mais…eu acho que tem uma diferença entre ontem e hoje em relação à subjetividade. E eu acho que ela passa não só a ser sublinhada, mas assumida como um valor. Um valor necessário, possível, buscado. Porque se antes você tinha uma recusa, se tem hoje uma perspectiva diferente porque o jornalismo passou a ser um tema mais discutido socialmente. Do jornalismo e do papel do jornalista. Isso pro bom e pro mal, né? Porque também tem o desmerecimento atroz da profissão. Eu acho que isso é um caminho que se desenhou.
Eu não sei se a gente vai em algum momento requalificar o olhar de uma grande parcela da população em relação ao jornalismo e aos jornalistas, porque inclusive os próprios jornalistas contribuíram muito com esse desmerecimento profissional. Pensando nisso, a questão da subjetividade, pensando especificamente dentro do jornalismo, vai ser trazida como um dos valores possíveis como resgate da profissão, sabe? Não só da profissão, mas do que a profissão produz: de que olhar a gente está desenhando, a gente está produzindo, de que tipo de contribuição social de fato o jornalismo pode dar pra um país tão marcadamente racista e com tanto ódio ao pobre, como esse jornalismo pode contribuir de fato pra situação das coisas se alterar e melhorar pra população mais preta, mais pobre, mais vulnerável. Essa perspectiva da subjetividade vai ser entendida como um valor por muita gente que tá tentando requalificar e trazer o jornalismo pra outras searas que não sejam, por exemplo, esse jornalismo como notório ativista pro mercado; esse ativista pró-empresa, pró-riqueza. Eu acho que tem essa mudança. E que ela vem se desenhando em campos vários, porque a gente tem um cenário, como você falou, muito diferente.
Eu acho que é bem difícil pra muita gente que tá começando e tentando se inserir nesse mercado, que é bem marcado pela desvalorização profissional. Mas, ao mesmo tempo, e eu tô falando isso porque geralmente essa questão surge entre estudantes, eu fico pensando: quando eu tava me formando como jornalista – eu ainda tô me formando como jornalista, todo dia eu tô me formando como jornalista -, mas ali, na universidade, no momento da graduação e um pouco depois, eu não me lembro de a gente ter, por exemplo, de uma maneira tão intensa os coletivos, o jornalismo feito por populações ribeirinhas profissionalizadas, indígenas, vários coletivos tipo Afoitas, Agência Retruco, Ceará Criolo…
Eu entendo todos os senões que todos esses coletivos passam. Entendo mesmo. Não é só “existem” e tá tudo resolvido. Não. É muito difícil estar fazendo e concorrer em termos discursivos. Mas eu entendo que tem uma outra lógica desenhada em relação ao jornalismo que também está relacionada a essa população mais preta e mais pobre, que entrou nas universidades e nos cursos de jornalismo. Eu nunca discuti racismo quando eu estava na universidade. Não era uma questão. A questão era discutir classe. E quando muito. Porque o resto era acessório. E ainda era na perspectiva via Marx…
CEARÁ CRIOLO: É esse tipo de jornalismo que está mais próximo do que você chama de a pauta ser uma arma de combate do que o jornalismo que a gente encontra nas redações profissionais? Ou uma coisa não anula a outra?
FABIANA MORAES: A pauta sempre foi uma arma de combate. Mas de que combate a gente está falando? Ela sempre foi uma forma de combater por vias não generosas mas de dizimação da pobreza, de dizimação das subjetividades, de dizimação de corpos trans, de corpos indígenas, de corpos negros, enfim. O jornalismo esteve muito a serviço disso. E eu não digo que as pessoas estão conscientemente a serviço disso. Muitas vezes, a gente só reproduz mesmo.
Quando eu saí da universidade, não havia uma discussão democratizada, digamos assim, popularizada sobre feminismos e sobre racismo. Isso era coisa de militante. Não era coisa que a gente discutia. Discutir questões sobre raça? Só em 13 de maio e em 20 de novembro, e, depois, nós voltávamos “à realidade”. Não era uma questão. Eu falo isso porque um amigo meu, Ricardo Sabóia, sempre fala isso: “ninguém nasce desconstruído”. É importante a gente pensar isso, né? A gente está nesse processo também de olhar pra população no Brasil através de lentes mais críticas e, portanto, mais generosas. Mas, sobre a pauta, a gente vai entender que o jornalismo tem essa pauta que dizima há tanto tempo. E eu falo no livro que se a pauta é uma arma a gente tem que combater com ela. E isso pode ser feito, eu entendo, mesmo entre redações mais conservadoras.
Nessas redações mais conservadoras, e eu participei de uma durante 20 anos, você tem várias subjetividades ali, presentes. Tudo bem, tem uma linha editorial. Mas existem formas de você fissurar tudo isso, através de uma prática que não precisa estar anunciada aos quatro ventos. São maneiras hackers de ação. Você hackeia lá de dentro. Você hackeia na escolha de quem está falando. Você hackeia nas vozes que você vai trazer. Quando você vai fazer uma reportagem, todas as pessoas que você escolhe são pessoas negras ou travestis, isso não precisa estar dito no seu texto. O seu editor, que é uma pessoa ultraconservadora, hipoteticamente falando, não precisa saber disso. E é pra essas pessoas negras ou travestis falarem sobre tecnologia, é pra falar sobre mercado de trabalho, é pra falar sobre a escolha do ministro da Fazenda. É pra falar sobre qualquer coisa. Procure essas pessoas e entreviste elas!
Você chega na redação dizendo “a matéria tá pronta e eu entrevistei só heterossexuais”? Não, você não faz isso! Porque a gente sempre fez isso. Nós sempre só entrevistamos pessoas brancas e heterossexuais e isso nunca foi uma questão. Então, eu acho que tem que ter umas delicadezas nesse sentido. Delicadezas e espertezas, sabe? Porque a gente, como jornalista, sabe que as pessoas não estão vendo com uma lupa o que a gente tá fazendo. E você vai fazendo. Você só faz. É uma coisa que tá no começo do livro: “bicha quer, bicha faz”. Você vai desenvolvendo isso a partir da compreensão de como as estratégias podem ser realizadas dentro de um determinado lugar. Não tem uma fórmula pra isso, porque esse campo está em mutação a todo momento. É um chefe que entra, é um chefe que sai, é um colega seu que te ajuda…Você vai traçando estratégias dentro e fora desses ambientes.
CEARÁ CRIOLO: É importante você dizer isso porque, muitas vezes, quem lê a notícia e não sabe como se dá o processo de produção dela tende a pensar que ela é só aquilo ali que está escrito, quando, na verdade, existe um jornalismo antes do jornalismo que o leitor encontra. E esse processo todo é o que define de fato a pauta…
FABIANA MORAES: Exatamente. A pauta é o resultado de várias escolhas, de vários olhares, de várias abordagens. Toda vez que eu vou desenhar como vou tratar determinado tema, é bem importante que a gente se pergunte: o que falaram sobre isso? Como falaram sobre isso? Quem é que fala sobre isso? Esse meu recorte vai fazer o quê? São todas estratégias que, na verdade, se a gente quer falar realmente de objetividade, a gente devia ter seguido sempre. Porque, na verdade, essas escolhas sempre foram subjetivas e não anunciadas. Sempre foram subjetivas.
Quando eu tô fazendo essa crítica, é óbvio que o jornalismo precisa de objetividade. É óbvio! O jornalismo é um lugar de criação, mas não é um lugar de ficção. Isso é do campo da literatura e das artes. O jornalismo pode conversar com a ficção, mas você não pode me dizer uma coisa e eu mudar completamente. Eu não posso. Isso seria antiético. É óbvio que o jornalismo precisa da objetividade. Mas o jornalismo é também o lugar da criação, o lugar onde essas minhas escolhas vão produzir um sentido. E essa produção de sentido pode dizer várias coisas. Eu posso produzir um sentido no qual, por exemplo, eu associe corpos trans a Jesus como poder. Eu posso entrevistar diversos corpos pra um debate qualificado sobre religião? Eu devo fazer isso! Eu devo entrevistar travestis para falar de religião! Isso me incomoda muito.
Eu estava vendo televisão esses dias. A GloboNews tinha vários jornalistas em tela e colocaram pra Flávia Oliveira falar sobre racismo. É óbvio que Flávia Oliveira pode e deve falar sobre racismo. Mas eu imagino, aliás, eu imagino não, eu sei e você sabe o porquê de nos acessarem só pra essa temática. É uma coisa que eu vivo falando: o racismo é um problema dos brancos. Falem sobre o racismo! Mas falem mesmo! Flávia tem que falar? Tem. Mas vocês têm que falar também! Eu penso assim: esse corpo pode falar sobre isso.
É uma estratégia importantíssima que a gente tem que pensar: eu preciso colocar pessoas, várias, negras, travestis etc, pra falar sobre tudo mesmo. É por isso que é importante estar em espaços formativos também. A academia é um lugar de poder, como Jesus é um lugar de poder. E eu digo isso porque tem um discurso muito acadêmico, às vezes, muito perigoso, mesmo entre pessoas progressistas e muito jovens, de que a academia é um lugar violento. É, também. Mas não é só isso. A academia tem que ser disputada. Tem que estar habitada por várias pessoas pra que essas pessoas também consigam acessar espaços de legitimação, se elas quiserem. Se elas quiserem. Se a gente vive dizendo que lugar de negro é onde ele quiser, por que não a academia ou o campo da arte? Eu acho que a questão de pautar tem que ser entendida como desenho de estratégias de reconfigurar discurso. É isso.

CEARÁ CRIOLO: Dentro de sala, como os alunos lidam com o debate? A gente tem hoje um perfil discente muito diferente do meu e do seu, quando não se tinha a discussão racial dentro de casa. Hoje, a gente continua tendo um corpo docente muito branco, o debate sobre racismo é tão difícil quanto, mas os movimentos sociais tensionam mais isso, existem mídias alternativas que propõem esse debate e os alunos estão antenados nisso. Fatalmente, isso deve ir pra dentro de sala. Como isso chega pra ti, enquanto professora, e como se administra essas tensões tendo que mostrar que tanto essas mídias quanto a Folha de São Paulo, como veículo hegemônico, são lugares possíveis?
FABIANA: Chega muito. A universidade como a gente conhecia não existe mais. Não estou dizendo que zerou e tá tudo bem agora. Não. O negócio tá pegando fogo! A universidade pública brasileira ainda é daquele jeito, mas ela não é mais só daquele jeito. Definitivamente. Insistir nisso seria apagar todo o sangue, suor e lágrima desse pessoal que tá dentro da universidade já há algum tempo e ralando. Eu não vou invisibilizar isso.
Acho que docentes negros não são nem 3% no ensino superior. Eu acho que pode ser um pouco mais. Mas somos muito poucos. Lá, na universidade federal [de Pernambuco], tem pouquíssimos. Ou que, pelo menos, se declaram, né? Porque tenho colegas que não se entendem como pessoas negras. Pessoas de pele mais clara. Mas se tensiona muito. Essas pessoas [alunos] chegam em sala de aula hoje, e aí falo especificamente de cursos de jornalismo e comunicação, nas conversas que tenho, se chega mais pra discutir essas questões. E de chegar numa perspectiva propositiva, de como a gente faz.
Jean Oliveira apresentou um trabalho esses dias, orientado por Cremilda Medina. Ele é professor da FIAM, em São Paulo, e analisou as bibliografias usadas e entrevistou os docentes de cinco ou dez cursos de jornalismo. Eu estava na banca dele e me impressiona muito que as bibliografias de hoje se pareçam tanto com a bibliografias de quando eu fiz jornalismo. Isso diz alguma coisa. Ao mesmo tempo, na entrevista com os professores, eles falam assim: “ah, eu sinto falta de ter mais pessoas negras e pessoas indígenas como autores nas bibliografias”. Então, o que esses docentes estão fazendo: eles estão trazendo de maneira não oficial. Não está no projeto pedagógico do curso, mas eles vão trazendo. É uma estratégia que quase todo mundo faz.
Ele estava analisando as disciplinas de teoria do jornalismo. O trabalho dele ilumina de maneira muito interessante, porque o debate sobre raça é assimilada em disciplinas como jornalismo comunitário, mas não entra na teoria. Na epistemologia, não tá. E uma coisa muito importante é estar na epistemologia. A minha discussão é epistemológica. Eu tô pensando na estrutura do jornalismo. Eu tô pensando na estrutura formativa do jornalismo, que obviamente vai ser muito parecida com a estrutura do direito, da medicina, de campos intelectuais e científicos, que estão todos estruturados dentro de uma racionalidade moderna, branca, excludente, enfim.
CEARÁ CRIOLO: E não cabe mais nem a desculpa de que não existem autores, porque eles existem, estão vivos e falando conosco agora: Rosane Borges, Dennis de Oliveira, Muniz Sodré, Valmir Araújo, Ana Flávia Magalhães Pinto… Estão todos aí, disputando o lugar histórico de mídias alternativas, que a gente nem sabe que existe, porque na narrativa oficial é como se tudo tivesse começado com Assis Chateaubriand, em 1950…
FABIANA: Exatamente. Isso mesmo! Isso foi algo que surgiu na banca de Jean: nesses cursos, fazendo a análise dos projetos pedagógicos, cadê a discussão sobre a mídia abolicionista, feita por pessoas negras? Não entra na epistemologia? Epistemologicamente, o que isso diz? Os docentes, eu percebo pelo trabalho dele e por questão própria minha, estão observando isso e isso é muito impulsionado pelos alunos e pelas alunas, que exigem, que pegam as bibliografias e dizem: “por que só tem gente branca?”. E é sempre assim: as mudanças, no geral, não ocorrem de dentro pra fora. Elas ocorrem de fora pra dentro. Por pressão.
É assim que eu acho que os jornais, em graus variados, vão mudando também. É porque ali, na caixinha dos comentários, o pessoal tá dizendo assim: “vocês estão sendo uns escrotos racistas”. E, mesmo por questões mercadológicas, não pega bem pra empresa. Você vai tendo, muitas vezes de maneira superficial e perigosa, essa questão racial sendo assimilada pelas grandes empresas a partir da ideia da “diversidade” e da “representatividade”, que eu sempre fico com o pé atrás.
CEARÁ CRIOLO: Eu tenho uma amiga travesti que odeia o termo “diversidade” porque ela diz que em diversidade cabe tudo, até jumento. E o debate que a gente propõe não é sobre tudo e sim muito específico: é sobre negros, sobre travestis, sobre corpos dissidentes…
FABIANA: Eu também não gosto dessa palavra [diversidade]. É uma maneira, eu percebo, de tentar apaziguar o que não é pra ser apaziguado. Eu não tô falando que a gente vai sair tocando fogo nas coisas não, sabe? E a gente pode tocar esse fogo de diferentes maneiras. A gente pode tocar esse fogo no desenho de uma pauta. Eu até entendo que possa haver uma vontade real de trazer mais gente. Se se demonstra isso, pode ser um caminho interessante. Mas achar que por ter uma pessoa negra, uma indígena etc já tá tudo resolvido? Isso é o começo. Tem muita coisa pra gente fazer.
CEARÁ CRIOLO: Nós temos aqui muitos corpos bicha retratados na exposição, como a Ester, com quem a gente se depara logo na entrada, numa sequência linda. Você disse na abertura da exposição que nós temos muito o que aprender com as bichas. O que as bichas têm a ensinar?

FABIANA: Quando eu tô falando das bichas, eu tô pensando em bichas várias. Essa categoria bicha me envolve, te envolve. Se alguém perguntar pra mim, eu digo: “eu sou bicha”. Isso foi uma coisa muito a partir de conversas com Neon Cunha. Ela diz que não gosta muito desse termo queer porque aqui a gente tem a bicha. Pra mim, tem um lugar de classe aí entre o queer e a bicha. Eu me interesso também mais pela bicha. Pelo entendimento de que as bichas sempre deram um jeito. As bichas são mulheres pretas periféricas. A bicha Conceição Evaristo, que uma vez me falou sobre que muitas vezes as pessoas falam agora sobre sororidade quando essa ajuda entre mulheres nas periferias sempre aconteceu: quando uma vai pro trabalho e a outra fica com o filho, de formação de famílias extrafamílias…
Eu entendo que as bichas sempre desenvolveram estratégias de sobrevivência e ensinam muito pra gente. Pra gente, categoria jornalista, artistas… E essas estratégias, muitas vezes, elas se dão de maneira muito silenciosa. É por isso que eu falo que você não precisa anunciar o que você está fazendo quando você está fazendo. Quando você tá em ação, você pode desenvolver essa ação de maneira muito silenciosa. É porque a gente aprendeu sempre com a espetacularização do si. Vai pras redes dizer que está fazendo isso e aquilo ou pra contar a rebordosa, e cria outro evento em cima daquilo, que cria um trauma e, de certa forma, isso te engessa. Se as pessoas fizessem isso em vez de se mostrarem quando estavam fazendo suas estratégias, elas nem viviam. Nem sobreviveriam, sabe?
Então, bicha no sentido de agir coletivamente. Bicha no sentido de agir estratégico, que eu acho que são duas questões que foram abandonadas pelo jornalismo durante muito tempo. O agir coletivo é uma delas e eu acho que a gente tá redesenhando isso. Os coletivos são uma materialização disso. Vocês, Ceará Criolo. O meu entendimento é esse.
É muito ruim ficar falando de si, mas quando eu escrevo O nascimento de Joicy ou outras reportagens, eu estava ali em pleno “bicha quer, bicha faz”. Eu não anunciava o que eu estava acontecendo exatamente. Eu dizia que estava fazendo uma reportagem sobre uma pessoa trans, que ia ficar algumas semanas ou meses, tudo passava por uma reunião… Depois que eu tava em campo, e a gente sabe que o campo muda tudo, eu não precisava estar todo dia com um relatório sobre como as coisas estavam acontecendo. Eu fui desenvolvendo, eu sabia das resistências que poderiam se colocar e, por isso, eu não falei. Eu não falei. Quando eu falei, tava pronto. Tava tudo pronto. Tava tudo editado. E teve uma reação do jornal, tipo: “que porra é essa que você fez?”. Mas fiz.
Não é um manual técnico de como fazer porque essas questões mudam muito de acordo com o tempo, com as gerências etc. Mas é possível sim produzir dissonância, produzir fissura. É possível! Eu tenho certeza que é. Eu vejo isso acontecendo. O que a gente precisa é desenvolver esse pensamento estratégico. Se aliar. Estar perto de outras pessoas. As bichas sempre fizeram isso. E eu me entendo muito bicha nesse sentido. Não quero fixar a bicha aqui numa figura específica, mas entendendo a bicha como categoria política, discursiva e política, que é muito importante pra você pensar, por exemplo, as periferias brasileiras.
Eu me lembro muito de isso ser motivo de conversa há muito tempo. Quando eu era criança, eu tinha um tio super, super, super bicha afeminada, uma avó evangélica, que já faleceu, e eu via algumas vezes em casa acontecerem surras terríveis por causa de um shortinho curto. Tortura mesmo. Surras que depois eram tratadas com vinagre, pra arder o corpo. E, ao mesmo tempo, nesses lugares, eu via travestis passando pela rua, uma convivência pacífica, mas sabendo que só travestis sabem o que elas passam.
A partir da entrada na universidade, no jornalismo, com meu corpo circulando por outros lugares, eu não vejo mais travestis. Quanto mais distante você vai socialmente, mais distante você fica delas. Eu tenho uma amiga, Cláudia, que é travesti e ela de vez em quando tem um namorado, é paquerada, os caras se relacionam com ela, e isso não significa que ela não sofra constrangimentos. Mas ali, na periferia, isso sempre foi mais possível. A gente fala que periferia é lugar mais conservador e menos esclarecido, mas eu vejo o contrário. Quando eu chego nesses espaços mais brancos, de poderes legitimados, as convivências são muito menos complexas. Tem muito menos complexidades de corpos, de discursos, de visões de vida. Tem muito mais a galera da “diversidade”. Quando eu penso na bicha, no “bicha quer, bicha faz”, eu tô pensando nas periferias. De termos um pensamento periférico e insurgente. Não um periférico cabeça baixa.
CEARÁ CRIOLO: É interessante você dizer isso, da insurgência, porque historicamente nós associamos a imagem de pessoas trans, travestis e periféricas à promiscuidade, à pobreza e ao signo do que é triste e ruim. E o ensaio da Ester é exatamente o contrário disso: tem uma pegada de alegria, que é a proposta da exposição como um todo, e está posicionado logo na entrada. E não está dito em nenhum lugar que ela é uma pessoa trans. Nem se ela está viva ou morta. Ela apenas está.
FABIANA: Ester estar ali é uma declaração. Ester está vivendo o que Neon Cunha diz, como eu escrevi esses dias: a dimensão eterna de um elogio. Essas imagens de Ester, desde o início, há dois anos, me movimentam muito. Porque tem essa questão. Toda vez que eu pensar no corpo travesti, no corpo de uma mulher negra, eu vou acessar imagens de sofrimento por quê? O que significa isso? Por que quando eu falo “travesti” é quase um sinônimo de violência, morte, perigo? Por quê? Quando é que eu vou falar “travesti” e pensar num doutorado, em tecnologia, em celebração, em vida? E essas coisas não estão em separado. A violência e o doutorado vão caminhar juntos.
Uma coisa que está aqui tanto na exposição quanto eu tento trazer no jornalismo o pensamento conceitual, epistemológico, é a gente, como acontece nos terreiros, como acontece no pensamento negro, na filosofia negra, como Muniz Sodré tão bem coloca, e eu não sei falar como ele fala, mas o pensar nagô. Nunca foi binário o pensamento. Sempre foi complexificado. As coisas sempre estão caminhando juntas e emaranhadas. O Allan da Rosa fala muito isso. Ele tem uma expressão que eu adoro: teoria suada. A teoria tem que ser suada. Teoria e corpo. Teoria é corpo. Todos os binarismos sempre fizeram muito mal pra gente. E Ester ali é essa quebra, de dizer que esse corpo, que sofre, que foi assassinado depois, ele também celebrou. Esse corpo não precisa ser, e não vai ser, só lembrado e falado a partir da tragédia. Reduzido à tragédia. Ele vai ser também falado pela beleza, pelo encanto, pelo o que ela amava fazer, que era dançar de olho fechado e, por algum tempo, se distanciando da morte por estar num espaço de acolhimento, ver as imagens depois e rir. Se reconhecer: essa sou eu. Essa sou eu, sabe?
Tem várias questões. Quando o fotógrafo que fez as imagens, um menino branco cisgênero que acompanha muito Neon e tem projetos de fotografia com Neon, ele tinha essa proposta: ele não fotografa travestis em situação de debilidade. Não fotografa. E nessa conversa com a Casa Neon Cunha, nesse afetar-se por Neon, isso se tornou uma questão muito importante pra ele também, de fotografar travestis e transexuais em situação de integridade. E muitas dessas pessoas vivem em situação de rua, onde a integridade é quase nula.
As fotos de Ester tinham essa proposta, com ela dançando Vogue. Essas imagens nunca tinham sido expostas porque logo depois Ester foi assassinada e ele, o fotógrafo, disse que não conseguia. A Casa Neon Cunha, quando fez os trâmites de Ester, usou justamente uma delas, a que ela está com o braço levantado, pra pedir justiça por Ester. Usaram uma imagem dela celebrando. E, a partir disso, tudo ganha um outro sentido. De expor Ester viva. Isso é bem importante. E é importante falar nisso porque o pensamento negro é complexo e é emaranhado. É um pensamento de trazer tudo pra cá, tudo pra junto. Não é um pensamento sectário. Se você tá aqui nessa disputa e dançando com a gente, tá dançando comigo, eu te quero do meu lado sim. Porque, senão, eu vou estar desumanizando você. De saída, sabe?
Aqui, na exposição, nós temos outros autores brancos. São minoria, de fato. Doze, eu acho, diante de 40 e tantos negros. Não sei se esse é um debate que a gente vai conseguir ter agora. Mas é um debate que já já a gente vai precisar ter. E que quem colocou isso pra mim de uma forma muito maravilhosa foi Carla Akotirene. Quando eu li o livro Interseccionalidade, eu achei massa porque eu vi que até em mim tinha um pouco, às vezes, aquilo de “você não, sai”. E tem ainda. E tem gente que eu não quero que abra a boca perto de mim mesmo não. Não me venha com transfobia. Não me venha com racismo. Não me venha com qualquer classismo. Não me venha diminuir ninguém. Não me venha. Vá pra lá! Mas eu entendo que tem pessoas que estão interessadas, de fato, numa discussão sobre humanidade. Se essas pessoas estão querendo discutir sobre humanidade comigo, e vai ter tensão e vai ter discordância, eu me interesso sim em ter esses diálogos. Carla Akotirene diz isso: a gente não pode usar interseccionalidade ao nosso favor apenas.
CEARÁ CRIOLO: A gente está passando por isso agora, com a Djamila Ribeiro nessa disputa dela com o movimento trans sobre a expressão “pessoas que menstruam”…
FABIANA: Eu jamais excluiria Djamila de um debate. É uma pessoa negra, uma filósofa que trás questões. Mas eu jamais posso concordar com o discurso transfóbico que ela trás. E aí, abertamente, te digo: é um discurso transfóbico. Eu acho que talvez, provavelmente, no mínimo, você não compreendeu, e eu digo isso de mulher negra pra mulher negra, mesmo com a gente escutando muito o “você não tá entendendo” como uma interdição, mas eu quero dizer que talvez você não compreendeu dentro dessa constelação o que é estar tentando trazer uma pessoa que menstrua pra dentro da saúde pública, do atendimento. Não é uma questão identitária ou de interdição às mulheres cisgêneras.
O pensamento feminista negro não é à toa tão ligado a mulheres trans, travestis. Não é à toa. A gente se intersecciona muito bem. Várias transfeministas já falaram pra mim: “Fabiana, eu jamais vou olhar pra uma mulher negra, periférica, cheia de filhos e dizer que eu sofro muito mais do que ela”. Porque isso é absurdo. Não é uma competição de sofrimento. A gente se reconhecer na outra naquilo que a Vilma Piedade fala de dororidade. Acho esse termo sensacional. Temos que pensar nas dororidades e interseccionalidades.
A gente não pode universalizar experiências, mas também não me venha falar em racismo reverso. Não me venha falar que antes da cor há a classe. Não. O racismo é uma questão e ponto. Você morre mais quando você é preto e ponto. Você morre mais quando você preto e jovem e é homem no Brasil e ponto. Isso eu não vou discutir. Mas é óbvio que a situação de ser uma mulher, de ser uma bicha pobre, a gente sabe as coisas são. Agora, as periferias não são mais as periferias de antes.

CEARÁ CRIOLO: É, a favela deixou de ser um espaço segregado, inclusive geograficamente, pra ser um lugar a partir do qual as pessoas se reivindicam também pelo jornalismo independente. Como você avalia que se dá essa disputa, com a TV perdendo espaço e os jornais em constante adaptações diante de tantas plataformas de produção de conteúdo?
FABIANA: Eu acho que tudo pode convergir, sabe, Bruno? A mudança é individual-coletiva. Se eu tenho essas subjetividades insurgentes dentro desses espaços tradicionais, claro que elas vão se submeter a várias regras daquele espaço, mas é possível traçar insurgências a partir desses lugares também. E elas convergem com o que está acontecendo em outros meios.
Márcia Veiga fez o doutorado dela, pegou “O nascimento de Joicy” e livros de jornalistas pra mostrar que mesmo dentro de um sistema se conseguiu produzir algo. É interessante que a gente observe até pra seguir. Eu acho que é possível convergir porque a gente está falando também de pessoas. A gente não pode falar só de empresas. A empresa tá ali, mas tem muita gente dentro e muita gente querendo produzir o samba, né? É…, agora, eu, ao mesmo tempo, acho preocupante a precarização do trabalho. E pensando em quem faz mídias alternativas…é muito difícil. Você não pode ficar sendo herói. Massa que as pessoas façam e esteja acontecendo. Mas eu me preocupo um pouco porque acaba sendo muita big tech que vai, às vezes, dar conta que esses projetos aconteçam. E que eu entendo. Isso não é uma crítica. Pelo contrário. Eu mesma pegaria, eu faria sim pra ganhar uma grana. Mas acaba que fica nisso.
Eu falo isso e fico pensando em como a gente pode ser parcialmente sustentado pelo público leitor. Falo de uma valorização desse jornalismo por quem está lendo. Óbvio: no país que tá atualmente com 65 milhões de pessoas na pobreza, um país semidestruído por esse fascista [Bolsonaro], é muito difícil falar sobre isso num país em frangalhos. Ok. Mas quando a gente se reerguer mais um pouco, a gente consegue pensar num público leitor que banca com dez reais, com 15 reais, com 20 reais iniciativas de jornalismo independente? Acho que a gente também tem que se educar coletivamente como público leitor. E eu tô falando isso sobre a população de classe média. De gente que lê a Folha. De gente que pode colaborar. Então, assinem mídias independentes! De gente que quer a democracia, mas você tem que se mexer também como público leitor. Porque é muito difícil manter esses coletivos de jornalismo. A gente tem que se pensar como mantenedores.

CEARÁ CRIOLO: Você já falou que muita coisa que escreveu em “O nascimento de Joicy” se venceu, principalmente no tocante às terminologias. E você não se furta a esse debate de admitir que é uma coisa que tá lá, não vai negar a existência dela e muita coisa mudou, como a própria transexualidade deixando de ser uma patologia e sendo compreendida como uma condição. Foi difícil fazer esse exercício de autocrítica? Ou é algo pacificado?
FABIANA: Eu fiz isso em “O nascimento de Joicy” e fiz isso no livro novo [A pauta é uma arma de combate], quando resgato três reportagens e faço a crítica a essas reportagens e a questões que eu não colocaria do jeito que escrevi. Eu pego uma delas, Vestido de Noiva, que eu chamava de “amor partido” o que um personagem sentia pelo outro. Hoje, eu jamais chamaria de “amor partido”. Era ódio mesmo. Quando eu fui ler, pensei: “amor partido, Fabiana? Oi?”. E tem uma coisa, Bruno: eu me coloco dentro das críticas porque eu sou uma pessoa também. Eu não vou assumir uma posição que eu critico, de estar flutuando e fingir que não faço parte de um Brasil racista, xenófobo, misógino… Eu sou esse Brasil também. Eu me constituo dele. Então, tem muita coisa que tá encucada e que, depois, a gente diz: “opa! As coisas não são assim”. A gente vai tendo essa compreensão. É por isso que eu faço essa análise, pra mostrar que aqueles dizeres caducaram e, no caso que falei, são termos machistas. Isso é importante porque quando a gente tá escrevendo a reportagem, a gente não tá escrevendo na perspectiva de um historiador ou de um acadêmico. A gente tá escrevendo ali, na hora. É o clichê mesmo: tá fazendo ali, no quente! Eu acho que a fotografia desses momentos ela fica fixa ali.
Quando eu peguei as reportagens Casa-Grande & Senzala, A vida é Nelson e Ave Maria pra analisar, eu notei que eu tava escrevendo sobre um momento de transformação do Brasil que eu só sei agora, olhando. Mas foi num momento pós-jornadas de junho, com aquele levante que parecia ser um levante massa e foi um levante contra as coisas que eu estava escrevendo: contra gente preta, contra gente preta na universidade, contra gente preta no avião… O levante que tava acontecendo era esse. E quando eu pego hoje as reportagens eu vejo isso. Obviamente, isso vira documento e nesse documento vai ter várias questões que daqui a dez anos, quando eu olhar praquilo, aquilo ali vai dizer: “opa, era esse Brasil que tava aqui? E esse Brasil estava sendo dito como? E que questões apareceram aqui, que hoje já estão superadas?”. Eu me lembro que quando a OMS tirou a transexualidade da categoria de doença e depois Neon pediu na justiça a própria morte assistida, eu vi como virou tudo. “O nascimento de Joicy” tá contando o Brasil daquele momento. Eu não poderia escrever “O nascimento de Joicy” hoje do jeito que eu escrevi. Os marcos legais mudam e você vai aprendendo e reaprendendo e elaborando discussões.
No momento em que eu escrevi “O nascimento de Joicy”, me chamavam pra falar de transexualidade em debates. E eu dizia que podia falar sobre cobertura jornalística e sobre “O nascimento de Joicy”, mas eu não posso falar por pessoas travestis e transexuais. Eu dizia: pra isso, você chama essas pessoas. Mas se é pra falar do livro ou de cobertura, beleza. Mas me chame como jornalista.
Logo que a reportagem saiu, talvez um pouco depois, quando chamaram a gente pra parada LGBTQIA+ em São Paulo, isso não era uma questão pra mim. Eu ia. Quando eu lancei o livro, em todo lançamento do livro só pessoas transexuais falavam. Eu fazia uma abertura e o debate não era comigo. O debate era com elas. Eu podia fazer diferente e falar a partir da perspectiva jornalística. Mas eu queria que pessoas transexuais e travestis que tinham lido o livro falassem sobre o livro, inclusive com críticas. Neon e Daniela Andrade me chamaram no canto, no lançamento em São Paulo, e falaram assim: “ó, tem mulher biológica no teu texto”. Aí, eu disse: “e não é pra escrever assim não?”. E elas me disseram que o termo era completamente equivocado.
O jornalismo, geralmente, não gosta de admitir seus erros. Não admite. É uma perspectiva… “macha”. De “eu preciso ser infalível”, sabe? Essa coisa imbroxável! (risos) E eu não me interesso por isso. É claro, é ruim errar. Mas, gente, vai acontecer. E isso não é uma questão pra mim.
CEARÁ CRIOLO: Além de não admitir, o Jornalismo se coloca num lugar de fora da sociedade, como se ele só pusesse uma lupa sobre os problemas e não fizesse parte deles. Ele denuncia o racismo, mas não fomenta o racismo. Ele denuncia o feminicídio, mas não estereotipa a mulher todo dia…
FABIANA: É, é. Algumas teóricas feministas denunciam isso. Elas defendem que é preciso estabelecer uma objetividade forte e uma objetividade situada. Você precisa estabelecer um lugar. Eu gosto disso.
CEARÁ CRIOLO: Como você encara essa onda de jornalistas que são digitais influencers e essa mistura de universos, com esses jornalistas tendo que engajar seguidores?
FABIANA: Eu não sei não, Bruno (risos). Porque isso é uma questão do próprio jornalismo e que não é só do jornalismo. Eu lembro de uma colega, Carla Acioli, que fez doutorado comigo e a tese dela era de como o professor não era mais só professor e tinha se transformado, tendo que tocar violão e fazer multitarefas. Era mais uma figura do entretenimento do que da educação. Não dizendo que o entretenimento não possa se dar pela educação e vice-versa. Essas coisas podem convergir, mas a gente não pode achar que o professor é um músico que vai… No caso do jornalismo, eu penso nisso. A gente falou agora há pouco sobre coletividade e esse cenário que você citou aposta na individualização, que pode ser interessante, mas também podem resultar em figuras da Jovem Pan, como aquela Ana Paula Henkel, que tomaram o lugar de jornalistas.
Agora, não sei. Esse é um fenômeno que a gente ainda vai passar um tempo pra entender, sabe? Sem educação midiática, em escola, e o entendimento do que é informação, do que é o jornalismo, o que o jornalismo faz, acho que a gente não pode achar que o jornalismo sozinho vai resolver essas questões. Acho que a gente tem que ter aí um entrecruzamento de saberes e espaços nos quais a atividade jornalística seja melhor ensinada, percebida, entendida.
A gente tem que ter leitura crítica de mídia, começando no pré-escolar. Não que isso vá mudar. Acho que a gente vai estar sempre na mão dessas super figuras midiáticas. Já acontecia antes, de outra maneira, mas agora ganhou uma projeção bem maior. Mas eu acho que essa é uma resposta que o jornalismo, sozinho, não pode dar não.
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QUEM É FABIANA MORAES DA SILVA?
Jornalista, professora e pesquisadora do Núcleo de Design (NDC) e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), instituição na qual leciona. É mestra em Comunicação e doutora em Sociologia. Venceu o Prêmio Esso de Jornalismo (por Os Sertões, 2009), Prêmio Esso de Reportagem (por O Nascimento de Joicy, 2011); Prêmio Esso Regional (A Vida Mambembe, 2007), Prêmio Petrobras de Jornalismo (2014), prêmio Embratel de Cultura (por Quase Brancos, Quase Negros, 2011). Ainda ganhou dois premios Cristina Tavares por Os Sertões (2009) e Quase Brancos, Quase Negros (2010). Foi três vezes finalista do prêmio Jabuti (categoria livro reportagem, com Os Sertões, Nabuco em Pretos e Brancos e O Nascimento de Joicy).


Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.