Coordenador do Programa de Apoio à Vida, psiquiatra alerta sobre a maior possibilidade de negros desenvolverem transtornos psicológicos por conta dos marcadores sociais que lhes são impostos. A masculinidade tóxica também é um risco, assim como a hiperconcentração de afetos entre jovens e a hiperexposição na Internet. Para todos os casos, a primeira coisa a se fazer é falar
Existe uma multidão de pessoas precisando de ajuda para atravessar um momento ruim da vida. Podem ser seus pais, seus irmãos, seus amigos de sala, seus colegas de trabalho, seu/sua namorado(a). Pode ser você, inclusive.
Como cada um lida com a dor é o que diferencia cada caso. Tudo, no entanto, começa com uma conversa. É preciso falar dessa dor. Admitir que ela existe para, então, começar a ressignificá-la. Só assim vai ser possível continuar.
Negros podem somatizar mais situações, pressões, marcadores sociais e tantos outros fatores que levam ao surgimento de transtornos psicológicos (e ao ideário de morte). Algo que nem sempre dá pra superar sozinho ou com o ombro do melhor amigo. É preciso prudência para buscar um atendimento especializado e/ou para identificar sinais de alerta.
Mas, antes de qualquer coisa, é preciso ter claro que indivíduo nenhum se resume à doença que tem. Seja ela qual for. Toda história vai além de diagnósticos e estigmas. Toda história é, na verdade, uma vida. E, como tal, precisa ser vista com toda a sua peculiaridade. Porque toda vida importa. Vidas negras importam.
Foi sobre isso que o Ceará Criolo conversou com o psiquiatra Fábio Gomes de Matos e Souza, o professor Fábio de vários residentes médicos e o doutor Fábio de inúmeros pacientes do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC).
Confira o bate-papo na íntegra.
CEARÁ CRIOLO l A gente, no decorrer da vida, negligencia a saúde mental? Se fala muito em alimentação saudável, que devemos envelhecer com o corpo bom… Mas e a cabeça?
FÁBIO SOUZA l Começa com a terminologia. Se você tem um problema no coração, você chama de problema cardíaco. Se você tem um problema no pulmão, você chama de problema pulmonar etc. Você denomina o problema como uma questão orgânica, que é normal. As pessoas encaram a diabetes e a hipertensão como algo “normal”. Mas se você diz que tem esquizofrenia, que tem transtorno bipolar e que já tentou suicídio, ihhhh… Porque você muda a categoria da denominação do problema pra transtorno mental. E transtorno mental é algo ainda muito cheio de estigma.
Nós aqui [no Hospital Universitário Walter Cantídio, em Fortaleza] recebemos pacientes de Crateús, de Tauá, Quixeramobim… E recebemos porque eles não querem ir pros Caps das cidades onde moram. Sabe por quê? Porque quando eles passam a população fica gritando: “olha o doidim, olha o doidim do Caps.”
As nossas propostas em termos de diminuir o estigma em relação ao transtorno mental é primeiro mudar o termo. Você deve falar de transtorno psicológico, transtorno cerebral, de qualquer outro nome, menos transtorno mental.
Um segundo ponto importante é um viés de gênero. Heterossexuais, homens especialmente, têm uma enorme dificuldade de falar sobre problemas emocionais. Sessenta por cento dos heterossexuais que tentam algo contra si já conseguem na primeira vez. Os caras têm tanta dificuldade de se sentir vulneráveis aos acontecimentos que fazem isso.
As pessoas não podem admitir que têm transtornos psicológicos. Há todo um preconceito.
CC l No caso dos homens, é a velha história da masculinidade tóxica…
FÁBIO l Exato. Que tem que ser viril! Que não pode chorar! Aí, você vai pra comunidade LGBT e, por incrível que pareça, o número é o mesmo. Sessenta por cento dos que tentam conseguem logo na primeira vez. Mas a razão é outra. É o preconceito, a não aceitação, muitas vezes até da própria família… O pior cenário é o dos transexuais, que sobe pra 80%.
As pessoas precisam de diferentes enfoques porque a realidade de cada uma é muito específica. Você tem que diminuir essa masculinidade tóxica. Acabar com isso de o cara se sentir o danadão que não pode adoecer, não pode chorar, não pode isso e não pode aquilo.
Essa questão do falar é extremamente importante, especialmente pros homens. Mas as piores taxas estão quando você pertence a mais de uma minoria. Por exemplo: você é negro e gay. O risco é bem maior. Porque você tem que provar todo dia que é tão capaz, tão competente quanto qualquer branco. Isso é um desafio.
E as condições que a comunidade negra tem de acesso a serviços básicos são muito aquém do que a comunidade branca. Além disso, a violência está muito mais próxima da comunidade negra.
Por isso, é preciso ter um enfoque ainda mais diferenciado quando você tem mais de uma minoria numa mesma pessoa. Cada marcador social é um agravante. E se você não tiver uma assistência à saúde mental você pode não conseguir lidar com tudo isso.
Vinte e oito por cento da incapacitação causada por todas as doenças são transtornos mentais. Quando você vai pro orçamento de saúde, só 2% ou 3% é destinado à saúde mental. É uma conta que não fecha nunca.
Não ter acesso a uma plataforma que lide com saúde mental agrava o problema. Porque a pessoa com transtorno psicológico deriva pra uma coisa terrível: o álcool e as drogas, que são outro fator de risco. Você é negro e gay, não encontra alternativas, começa a beber, a fumar maconha e só vai aumentando a exposição à possibilidade de tirar a própria vida.
Como esse é o comportamento mais complexo que alguém pode imaginar, você tem que entender cada estrato desse e o que ele precisa. E criar uma rede de saúde mental que nós ainda não temos.
CC l Por que é tão importante uma pessoa que está em sofrimento psicológico falar? Por que isso pode ser tão revolucionário a ponto de salvá-la de um ato extremo?
FÁBIO l Quando você fala, você estrutura seu pensamento. Pra nós, seres humanos, é meio impossível estruturar pensamentos sem palavras. Qual é a dificuldade fundamental pra falar? É que você transforma sentimentos de angústia e desespero em palavras que o outro tem acesso. E aí você encontra uma coisa subjetiva, que é o sentimento, transformada numa coisa objetiva, que é a palavra. Essa palavra é entendida por outra pessoa, que transforma essa palavra também em sentimentos e ressignifica a história pra que você tenha uma nova visão daqueles eventos.
Você está vendo o mundo por um ângulo e o processo psicoterápico te apresenta outras perspectivas. Você pode ter a tua vida sob um olhar diferente. Porque quando você está só sob os seus próprios neurônios, dificilmente você se afasta de você. Você é praticamente contaminado pelo teu passado pra fazer o mesmo circuito de interpretação. O terapeuta vai abrir fagulhas pra que a pessoa possa refletir sobre a vida. E a pessoa vai perceber que nem tudo na vida dela é o desastre que ela imagina. O processo terapêutico te mostra outras maneiras de você lidar com a própria vida do que tu está habituado a fazer e não está dando certo.
CC l E essa conversa necessariamente precisa ser com um profissional especializado? Ou pode ser com um amigo?
FÁBIO l A conversa sempre é boa com o amigo e com o profissional especializado. O problema do amigo é que ele sempre se coloca ao teu lado. E, muitas vezes, tem dificuldades de dizer que você pode ter feito algo de errado. O terapeuta é neutro. Ele precisa ser neutro. O amigo pode ser fantasticamente bom pra gente chorar nossas mágoas. É bom ter um ombro amigo pra desabafar. Mas quando você não consegue lidar com isso nesse nível, você tem que ir pro próximo nível. E o próximo nível é o profissional. Mas muita gente consegue lidar nesse nível [do amigo], porque alguns amigos dizem as verdades que a gente não quer ouvir mas precisa ouvir.
CC l Em que momento eu devo me preocupar que de fato o meu sofrimento psicológico pode ter um desdobramento prático, físico?
FÁBIO l Hoje, os critérios de diagnóstico dão muita ênfase à função. Por exemplo: você deixa de trabalhar, você deixa de estudar, você deixa de escovar os dentes, você deixa de tomar banho, você deixa de fazer a barba, você deixa de funcionar como um ser humano que fazia tudo isso há até bem pouco tempo. A função é um indicativo muito grande de que você não está bem.
CC l A gente vive hoje uma realidade na qual as coisas acontecem numa velocidade às vezes espantosa. E, nessa correria, a gente pode deixar passar algo e não observar esses sinais em alguém próximo ou até na gente mesmo, não?
FÁBIO l Se a pessoa não está bem, ela vai denunciar isso em alguma fala ou em algum comportamento. É difícil você não estar bem e os outros não notarem. Ou até mesmo você não notar. O que acontece muito é de você negar que não está bem. Aí cabe do bom senso da pessoa aceitar que quem fala algo tá querendo o bem dela e não o mal, e procurar ajuda especializada.
CC l Mas existe muita resistência nesse processo…
FÁBIO l Especialmente de homens. As mulheres são habituadas a falar de sentimentos. Os homens não são. Eles têm dificuldade de falar.
CC l Sobre os jovens, nosso olhar tem que ser ainda mais apurado?
FÁBIO l Isso tem várias causas. Não é uma resposta simples. Tem a desagregação familiar, a desagregação social, uma hiperpresença do mundo digital, relações líquidas, a hipervalorização do agora, a hipervalorização do estar bem… Eu tenho uma paciente de 17 anos que diz: “doutor Fábio, se não postar no Instagram, não aconteceu”. E ninguém posta no Instagram uma vida ruim ou triste.
CC l E, no fim das contas, a gente não tem obrigação nenhuma de estar bem o tempo todo…
FÁBIO l Todo mundo tem seus dias ruins. Mas esse processo nos jovens é meio doloroso porque existe também uma hiperconcentração de afeto. O namorado ou namorada não é mais só namorado ou namorada. A gente criou até uma sigla. É o Anapi ou a Anami. O que é isso? Amante, namorado, amigo, pai e irmão, o Anapi, e amante, namorada, amiga, mãe e irmã, a Anami. Eles são tudo isso. Quando deixam de ser, o jovem fica sem eixo. Eu hiperconcentro afeto e quando aquele afeto vai embora eu perdi tudo. É preciso ter cuidado com isso.
CC l Quando a gente fala da família de uma pessoa que tirou a própria vida existe a necessidade de essa família ter apoio especializado? Ou ela consegue ressignificar a coisa por conta própria?
FÁBIO l Aí depende de cada família. Mas muitas não conseguem. Hoje mesmo eu atendi a uma senhora do Interior. Ela perdeu o filho há sete anos. Ela ainda não fez o luto dele e está se autodestruindo. Está com hipertensão, diabetes, problema renal, possivelmente vai pra diálise… Ela está se matando aos poucos. Tudo porque não fez o luto. Quando ela chegou pra gente, perguntei como ela se sentia em relação à morte do filho. E ela desabou. Passou dez minutos chorando. A turma [os médicos] estava pensando em tratar o coração, tratar o pulmão, tratar o diabetes, tratar o rim e não estava tratando o principal: a alma. Ela não elaborou a morte do filho. “Ele morreu porque eu não cuidei bem dele”. Essa foi a frase dela.
CC l Nessas famílias, o sentimento de culpa existe?
FÁBIO l Sempre. Sempre falam que “ele disse que não via sentido na vida e eu não prestei atenção” ou que “ela falou que preferia morrer e eu não achei importante” ou que “eu não percebi que ele estava depressivo”. Sempre tem isso.
Toda quinta a gente tem o Pravida [Programa de Apoio à Vida, que há 15 anos atende a pessoas com risco de tirar a própria vida]. A gente atende e faz a supervisão dos casos. E você vê isso [sentimento de culpa] direto. A gente passa a tarde toda atendendo. De uma às seis da tarde. Normalmente, a gente tem entre 25 e 27 pacientes.
CC l Também há no imaginário também a ideia de que toda pessoa atendida na rede de Saúde Mental é tratada com remédio…
FÁBIO l Sim, tem esse preconceito também. E remédio é, como eu diria, uma muleta. Às vezes, ela é necessária pra você se recuperar. Mas ela não te faz caminhar. É você quem se faz caminhar. E não necessariamente vai durar a vida toda. Ela pode estar ali só pra uma melhora pontual.
A gente sugere que não se diga “você é diabético”, “você é hipertenso”, “você é depressivo”, “você é autista”. Porque você NÃO é a doença que você tem. Você tem diabetes, você tem hipertensão, você tem depressão, você tem autismo. Mas você não é diabético nem hipertenso nem depressivo nem autista. Você é mais do que a doença.
CC l O senhor lembrou dos altos índices de jovens. Mas, enquanto sociedade, a gente não fala disso…
FÁBIO l A gente tenta falar no Setembro Amarelo. Mas o que eu acho é que a gente não pode ter só Setembro Amarelo. Tem que ter o Ano Amarelo. A prevenção não deve acontecer só em setembro. Deve ser o ano todo, o tempo inteiro.
PERFIL
Fábio Gomes de Matos e Souza nasceu em Iguatu, no Centro-Sul do Ceará. É graduado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre em Farmacologia também pela UFC e PhD em Psiquiatria pela Universidade de Edimburgo, na Escócia. É professor titular de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFC, preceptor da Residência Médica em Psiquiatria do Hospital Universitário Walter Cantídio e coordenador do Programa de Apoio à Vida, que atende pessoas em risco de tirarem a própria vida. Foi idealizador da Caminhada pela Vida, marco importante para o início da campanha Setembro Amarelo.
INFOGRÁFICO EM DESTAQUE: Rayana Vasconcelos. FOTO: Reprodução Internet.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.