Conversar com um desconhecido pode ser uma opção para quem não tem coragem de falar da angústia que sente com familiares e amigos. Há um serviço gratuito para isso no Brasil. E que em breve será replicado de forma inédita no Ceará. Enquanto isso, uma grande mobilização da sociedade civil acontece para preservar vidas e cobrar do poder público avanços mais céleres no campo da Saúde Mental
Uma máxima da psicoterapia diz que “quando a boca cala, o corpo fala; quando a boca fala, o corpo sara”. Tirar o sofrimento psicológico de dentro da cabeça e transformá-lo em palavras é o primeiro passo para a cura. Também, talvez, o mais desafiador. Mas que pode ser dado sem você levantar sequer da cadeira.
Apesar de ser um dos dez países com maiores taxas do planeta de indivíduos que se autoflagelam fatalmente, o Brasil dispõe de um serviço telefônico de apoio emocional referência no mundo que anualmente recebe em média três milhões de ligações. Trata-se do Centro de Valorização da Vida.
De início, o CVV tinha abrangência apenas no Rio Grande Sul. Contudo, dispõe de alcance nacional desde junho do ano passado. Integra os estados brasileiros na linha 188, cuja ligação é gratuita e funciona 24 horas por dia todos os dias da semana. Além disso, o CVV oferece atendimento presencial em 110 postos espalhados pelo país e acolhe demandas pela Internet (por chat e e-mail). O serviço é voluntário e feito sob sigilo.
“Quem nos procura, é atendido pelos pilares da aceitação, respeito, compreensão, empatia e confiança. Pode desabafar livre de críticas e julgamentos. O voluntário interage oferecendo uma acolhida que será conduzida tendo por base o sentimento que domina o indivíduo. Muitas vezes, há uma confusão de ideias ao iniciar o atendimento, por tão abalada que a pessoa se encontra, mas percebe-se que ela, ao desabafar, alivia tensões e consegue organizar o pensamento”, testemunha a coordenadora-geral do posto do CVV em Fortaleza, Rejane Felipe.
Ela defende a adoção de políticas públicas mais eficazes nas Redes de Atenção Psicossocial (Raps). “Precisamos mudar as estatísticas sensibilizando a sociedade, nossos governantes e demais segmentos para abrirmos espaço para falarmos acerca dessa epidemia silenciosa que tem índices tão desfavoráveis. Precisamos, urgente, de medidas que prestem assistência aos casos de saúde mental. Estamos convivendo com uma sociedade adoecida, repleta de indiferença e intolerância, pela falta de calor humano, amor e de respeito à vida”, acrescenta a voluntária.
CAUCAIA
O reflexo do trabalho do CVV na preservação de vidas brasileiras é tão grande que a metodologia já começa a ser replicada pelo poder público. Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, está na iminência de iniciar a operação da Linha da Vida, uma central telefônica municipal, gerida integralmente pela Prefeitura, para acolher moradores e visitantes que precisem de amparo emocional.
A central atenderá no número 0800.275.9192 e deve ser disponibilizada até o começo de dezembro. Profissionais já foram capacitados e o espaço físico está em fase final de reforma para montagem dos equipamentos. A estrutura funcionará na Sede [maior distrito do município em população] e abrigará dez pessoas.
Funcionará 24 horas. “O Ceará hoje conta apenas com o CVV pra esse tipo de serviço. E o CVV tem 35 pessoas. Trinta e cinco pessoas para nove milhões de habitantes. A Linha da Vida vai ter dez profissionais exclusivos para Caucaia. Vamos oferecer a escuta, como o CVV faz, mas vamos além. Vamos orientar a pessoa a buscar algum equipamento da rede da própria cidade. Porque nós temos uma rede, mas a saúde mental ainda é um tabu. As pessoas associam logo à loucura. E ninguém quer dizer que está doido”, pontua o coordenador da Linha da Vida, Daniel Gadelha.
Com mais de 360 mil habitantes, segunda maior cidade do Ceará, Caucaia dispõe hoje de um Caps Geral, um Caps Infantil e um Caps AD (Álcool e outras Drogas), além de um programa de residência em Saúde Mental que conta com nove médicos psiquiatras. No caso do Linha da Vida, até delegados de Polícia estão envolvidos no projeto. Se o relato for de cyberbullying, a central os acionará imediatamente.
Em 2018, Caucaia registrou dez casos de pessoas que interromperam a própria vida. Foi o menor indicador dos últimos nove anos. “Nossa intenção é acolher a pessoa de toda forma, da melhor forma, porque acolhimento é algo muito importante nessa hora, e oferecer ajuda. Vai ser o primeiro call center municipal do Brasil com esse viés. Porque muitas pessoas que tiraram a própria vida sequer deram entrada antes, em algum momento, no sistema de Saúde Mental (Raps). Em todos os 200 casos que escolhi aleatoriamente e estudei até agora foi esse o perfil”, acrescenta Daniel Gadelha.
Assim como o plano de prevenção e posvenção lançado em agosto deste ano por Fortaleza, a iniciativa de Caucaia é desdobramento de uma mobilização encabeçada pelo Ministério Público do Ceará (MPCE). O projeto chama Vidas Preservadas e existe há um ano e meio. Nasceu da inquietação de promotores de Justiça diante dos elevados números de pessoas que tiram a própria vida no Estado (só no ano passado foram 643; 85% delas da etnia negra (pretos ou pardos)).
OUTROS PLANOS
Inúmeros debates com especialistas e diversas capacitações de profissionais e de agentes públicos depois, o projeto tem hoje 68 municípios inscritos – 37 dos quais já com planos municipais de preservação da vida apresentados formalmente ao MPCE. E outros 15 em processo de elaboração. Conforme pactuação, essas cidades devem apresentar o documento até 1º de novembro.
Ou seja: ainda este ano, o Ceará pode sair de zero planos para 50 mobilizações públicas municipais com o intuito de mostrar à população que é possível amenizar as dores dos transtornos psicológicos e ter uma vida boa. A execução desses planos será acompanhada pela Promotoria de cada cidade. Em Fortaleza, por exemplo, essa “fiscalização” já está acontecendo.
“A gente não tem rede de saúde mental. Isso é indiscutível! A Raps [Rede de Atenção Psicossocial] é algo que saiu do papel de forma extremamente tímida. E muito por impedimento orçamentário. Os municípios dizem que não implantam porque o Estado não cofinancia e o Estado diz que não cofinancia porque a União não ajuda. Um joga a responsabilidade pro outro. E a realidade é que estamos numa situação muito difícil”, pontua o coordenador do Vidas Preservadas, promotor Hugo Mendonça.
Ele considera alarmante o fato de negros figurarem em 85% dos casos de pessoas que interromperam a própria vida em 2018. “É a prova de que Saúde Mental não se faz apenas em Caps. É intersetorial. E, nessa intersetorialidade, a atuação dos profissionais dos postos é importantíssima. Estado e municípios precisam garantir capacitação para essas equipes. Porque é totalmente inefetivo ter uma pessoa com transtorno psicológico e você só conseguir consulta pra daqui seis meses. O pessoal da Atenção Primária tem condições de acolher boa parte dos casos e enviar aos Caps apenas o necessário. Assim, os Caps não vão mais inchar, como ocorre hoje. Caps é pra ser retaguarda e as pessoas precisam acreditar que são capazes de ajudar a quem precisa. Todos nós podemos ser agentes de preservação da vida”, acrescenta o promotor.
Muito embora tenha tido outros importantes desdobramentos práticos dentro do Governo do Estado, da Prefeitura de Fortaleza e de diversos outros executivos municipais, o principal documento hoje do projeto Vidas Preservadas é um manifesto lançado em março deste ano com 11 pontos e 45 encaminhamentos que o MPCE julga fundamentais para a preservação de vidas no Ceará. O documento tem sido entregue às principais lideranças políticas locais e compartilhado por inúmeras entidades da sociedade civil que também julgam a vida importante e discordam do ideal de que a morte pode ser encarada como solução de problemas.
“No começo, nós nos perguntamos se o Ministério Público do Ceará tinha que trabalhar essa temática, já que nenhum outro MP do Brasil estava fazendo nada a respeito. Avaliamos se não estaríamos saindo da nossa esfera de atuação. E concluímos que não. Que tínhamos que trabalhar porque o Ministério Público é o órgão que constitucionalmente foi criado para proteger os direitos fundamentais. E a vida é o principal direito fundamental. Se eu trabalho para garantir o direito à vida, estou cumprindo a mais importante das minhas atribuições enquanto promotor de justiça. Se depois de tudo o que estamos fazendo alguns importantes gestores entenderem a necessidade do que foi proposto e implementarem políticas públicas eficazes, já terá valido à pena”, finaliza Hugo Mendonça.
NÚMEROS DO CVV
3 milhões de ligações por ano
3.000 voluntários em 24 estados e Distrito Federal
110 postos de atendimento presencial em todo o Brasil
24 horas é o funcionamento da central
188 é o número da central
SAIBA MAIS
O CVV foi fundado em São Paulo, em 1962. É uma associação civil sem fins lucrativos reconhecida como de utilidade pública federal há 46 anos.
Além do Linha da Vida, Caucaia desenvolve também um trabalho com escolas públicas da rede municipal de ensino. Com o Salve Jovem, estudantes participam de palestras e outros eventos educativos sobre valorização da vida.
O Vidas Preservadas também teve desdobramento no Parlamento. Por conta do projeto do Ministério Público, a Assembleia Legislativa instituiu uma Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e Combate à Depressão. O colegiado é presidido pelo deputado Evandro Leitão (PDT), membro da base governista.
Cinco secretarias estaduais foram convidadas pelo MPCE para atuarem no projeto. São elas: Saúde (Sesa), Educação (Seduc), Proteção Social (SPS), Administração Penitenciária (SAP) e Atendimento Socioeducativo (Seas).
A mediação escolar também é entendida pelo MPCE como política de prevenção à violência. “Se eu ensino à criança ou ao adolescente a lidar harmonicamente com os conflitos que a vida lhes traz, eu evito não só os atos de violência deles contra alguém, assim como evito atos de violência deles contra eles mesmos”, detalha o promotor Hugo Mendonça.
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CONHEÇA OS 11 TÓPICOS DO MANIFESTO VIDAS PRESERVADAS
1. Construção, com envolvimento da sociedade civil, de um plano estadual de prevenção, intervenção e posvenção aos casos de autoextermínio no Ceará
2. Fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial no Ceará, com estruturação e ampliação dos Caps, de leitos e de enfermarias psiquiátricas em hospitais gerais em todas as regionais do Estado
3. Capacitação em saúde mental (inicial e permanente), incluindo abordagem específica para prevenção e intervenção em casos que envolvam desejo de interromper a própria vida, tentativa de tirar a própria vida e consumação do fato
4. Desenvolvimento de protocolo de atendimento em Saúde Mental para todas as pessoas privadas de liberdade e sob custódia do Estado (presos, provisórios e definitivos, e adolescentes infratores, internados de modo provisório ou por prazo indeterminado)
5. Criação, através de concurso público, de quadro de psicólogos em todas as escolas estaduais
6. Criação de uma política de prevenção para uso de álcool e outras drogas voltada para estudantes de todo o Estado
7. Formação de mediadores escolares em todas as escolas estaduais
8. Criação de uma Linha de Vida como política pública governamental
9. Garantia de formação específica em prevenção para todos os profissionais de segurança pública: policiais civis, policiais militares, bombeiros, agentes penitenciários e guardas municipais
10. Garantir, em todo o Estado, a ampliação do número de ambulâncias e de profissionais treinados para o resgate e o atendimento das pessoas que tentam interromper a própria vida
11. Adequação das normas que regem a concessão, pelo Corpo de Bombeiros, dos alvarás de funcionamento, com o objetivo de que a prevenção seja princípio norteador dessas normas
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MUNICÍPIOS QUE ADERIRAM AO VIDAS PRESERVADAS EM 2018
Acaraú: com Plano Municipal concluído
Acopiara: com Plano Municipal concluído
Apuiarés: com Plano Municipal concluído
Aquiraz: com Plano Municipal concluído
Aracati: com Plano Municipal em elaboração
Aracoiaba: com Plano Municipal em elaboração
Aratuba: com Plano Municipal em elaboração
Barbalha: com Plano Municipal em elaboração
Barreira: com Plano Municipal em elaboração
Barro: com Plano Municipal concluído
Barroquinha: com Plano Municipal em elaboração
Beberibe: com Plano Municipal em elaboração
Camocim: com Plano Municipal concluído
Canindé: com Plano Municipal concluído
Carnaubal: com Plano Municipal concluído
Cascavel: com Plano Municipal em elaboração
Caucaia: com Plano Municipal concluído
Chaval: com Plano Municipal em elaboração
Choró: com Plano Municipal concluído
Crateús: com Plano Municipal concluído
Crato: com Plano Municipal concluído
Cruz: com Plano Municipal concluído
Eusébio
Termo de Adesão – Não assinou
Plano Municipal – Concluído
Farias Brito: com Plano Municipal em elaboração
Fortim: com Plano Municipal em elaboração
Guaiúba: com Plano Municipal concluído
Hidrolândia: com Plano Municipal em elaboração
Horizonte: com Plano Municipal em elaboração
Iguatu: com Plano Municipal concluído
Itaiçaba: com Plano Municipal concluído
Itaitinga: com Plano Municipal em elaboração
Jaguaribe: com Plano Municipal em elaboração
Jardim: com Plano Municipal em elaboração
Juazeiro do Norte
Termo de Adesão – Não assinou
Plano Municipal – Concluído
Limoeiro do Norte
Termo de Adesão – Não assinou
Plano Municipal – Concluído
Marcanaú
Termo de Adesão – Não assinou
Plano Municipal – Concluído
Maranguape: com Plano Municipal em elaboração
Meruoca: com Plano Municipal em elaboração
Mucambo: com Plano Municipal em elaboração
Nova Russas: com Plano Municipal concluído
Pacoti: com Plano Municipal em elaboração
Porteiras: com Plano Municipal concluído
Quixeré: com Plano Municipal concluído
Russas: com Plano Municipal concluído
Santana do Acaraú: com Plano Municipal concluído
São Benedito: com Plano Municipal em elaboração
São Gonçalo do Amarante: com Plano Municipal em elaboração
Senador Pompeu: com Plano Municipal concluído
Sobral: com Plano Municipal concluído
Solonópole: com Plano Municipal em elaboração
Tauá: com Plano Municipal em elaboração
Tianguá: com Plano Municipal em elaboração
Várzea Alegre: com Plano Municipal concluído
MUNICÍPIOS CONVIDADOS EM 2019 PELO MPCE A PARTICIPAREM DO VIDAS PRESERVADAS
Alto Santo
Plano Municipal – Não iniciado
Arneiroz
Plano Municipal – Não iniciado
Assaré
Plano Municipal – Não iniciado
Baixio
Plano Municipal – Não iniciado
Barreira
Termo de Adesão – Aguardando cópia do termo assinado
Plano Municipal – Não iniciado
Boa Viagem
Plano Municipal – Não iniciado
Deputado Irapuã Pinheiro
Plano Municipal – Não iniciado
Fortaleza
Plano Municipal – Não iniciado
Frecheirinha
Termo de Adesão – Aguardando cópia do termo assinado
Plano Municipal – Não iniciado
General Sampaio
Plano Municipal – Não iniciado
Itapiúna
Plano Municipal – Não iniciado
Novo Oriente
Plano Municipal de Prevenção e Posvenção do Suicídio – Não iniciado
Palmácia
Plano Municipal de Prevenção e Posvenção do Suicídio – Não iniciado
Paraipaba
Termo de Adesão – Aguardando cópia do termo assinado
Plano Municipal – Não iniciado
Penaforte
Plano Municipal – Não iniciado
Pereiro
Plano Municipal – Não iniciado
Pindoretama
Plano Municipal – Não iniciado
Piquet Carneiro
Plano Municipal – Não iniciado
Quixadá
Plano Municipal – Não iniciado
Quixelô
Plano Municipal – Não iniciado
Quixeramobim
Plano Municipal – Não iniciado
Salitre
Plano Municipal – Não iniciado
INFOGRÁFICO EM DESTAQUE: Rayana Vasconcelos.
MAPA: DIVULGAÇÃO/ VIDAS PRESERVADAS/ MPCE.
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O especial Vidas Negras Importam é composto de 13 textos. Leia também:
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O fator globalização e o perigo da romantizar o ato
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Sobre redesenhos, vidas e cadeiras na praça
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.