Para muitos, apenas uma escritora e ativista dos movimentos feministas negros. Para outros que foram impactadas(os) por sua obra, revolucionária e divisora de águas. Com imenso pesar, recebemos a notícia do falecimento da eterna bell hooks, mulher negra estadunidense, autora de dezenas de livros, professora, teórica feminista, artista e ativista antirracista, aos 69 anos.

O primeiro contato que tive com hooks foi na pós-graduação em Psicologia, quando comecei a me engraçar pelos estudos de gênero e raça, ainda sem nem saber que este seria um caminho sem volta não só do ponto de vista intelectual, mas sobretudo humano. bell hooks (assim, em caixa baixa mesmo como gostava de referenciar-se na literatura) cruzou o meu caminho pela primeira vez com seu texto “Ain’t I a Woman?” (“não sou eu uma mulher?“), no qual discorre brilhantemente o impacto das desigualdades de gênero e de raça a que mulheres negras estavam subjugadas, ainda em um contexto escravocrata.
Enquanto sufragistas brancas lutavam por sua liberação sexual e emancipação política, hooks toma emprestada a indagação originalmente feita por Sourjourner Truth, durante a convenção Seneca Falls, para questionar: e nós, por acaso não somos também “mulheres”? (referindo-se às mulheres racializadas que claramente não eram o público majoritário daquele encontro).
Se o dito movimento feminista lutava pelas “mulheres”, não estariam as mulheres negras também incluídas neste ativismo? Não seriam elas também “mulheres”?
Esse texto foi um soco no estômago. Eu que àquela altura já me considerava uma feminista de carteirinha, me vi tendo que rever tudo o que eu achava que entendia de feminismo. bell hooks foi uma importante chamada de atenção pra eu descortinar toda uma perspectiva interseccional, ou seja, interessada a entender a realidade e as experiências vividas pelos sujeitos a partir de múltiplas e concomitantes lentes, como a lente do gênero, da raça, da sexualidade, da classe, da nacionalidade e por aí vai.

Outro texto seu com o qual me deparei ao longo da pós-graduação foi o “Alisando nosso cabelo“, em que discorre as relações das mulheres negras com o alisamento capilar. Entendi com hooks que antes mesmo de pretender “embranquecer-se” ao alisar os cabelos, as mulheres negras de seu convívio desejavam antes partilhar sua mulheridade através do rito de alisar os cabelos uma das outras.
Um cabelo que não tinha o “pé na senzala”, não tinha carapinha, essa parte na nuca onde o pente quente não consegue alisar. Mas esse “cabelo bom” não signicava nada para mim quando se colocava como uma barreira ao meu ingresso nesse mundo secreto da mulher negra (…) Não é um símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. Não existem brancos no nosso mundo íntimo. É um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres. (…) Levando em consideração que o mundo em que vivíamos estava segregado racialmente, era fácil desvincular a relação entre a supremacia branca e a nossa obsessão pelo cabelo.
Alisando o Nosso Cabelo, por Bell Hooks.
Logo alisamento e transição capilar, tema que eu escolhi para minha tese de doutorado, do qual eu acreditava entender tão bem. Outro soco no estômago. Me fez perceber que existem muitas nuances no ser e pertencer-se negra, território até então muito pouco explorado por mim. Nem tudo gira em torno da branquitude. Obrigada por me ensinar isso, bell hooks.
Embora seja tida como uma escritora sobre feminismos negros, bell hooks foi muito mais que uma autora monotemática. Em “Ensinando a Transgredir“, hooks constrói sua concepção de Pedagogia Engajada, explicitando sua forma de ver a educação, formada ao longo do tempo, como resultado da confluência de múltiplas fontes: a pedagogia crítica de Paulo Freire, o antirracismo, o feminismo e uma abordagem holística do aprendizado. Sublinha que educar-se é muito mais que dispor de um aparelho cognitivo, mas considerar os aspectos espirituais e anseios individuais dos sujeitos em aprendizagem.
Em “O Feminismo é para todo mundo“, a teórica crítica é categórica no seu compromisso contra sexismo, exploração sexista e qualquer forma de opressão e apresenta o feminismo como uma nova episteme para romper com o mundo cisheteropatriarcal: o feminismo é para todos e todos podem se beneficiar dele, e quando elas diz todos, ela diz inclusive os homens. Na obra, hooks sustenta uma visão original sobre políticas feministas, direitos reprodutivos, beleza, luta de classes feminista, feminismo global, trabalho, raça e gênero e o fim da violência.
Seja você da academia ou não, ao deparar-se com a obra de bell hooks, é impossível não deixar-se afetar. Sua luta, sua escrita e tudo o que representa essa mulher transborda quaisquer muros e castelos intelectuais. bell hooks é necessária e seu legado é eterno.
Confira os principais temas e tópicos abordados por bell hooks ao longo de sua carreira:
- políticas feministas
- teoria crítica
- feminismos negros
- Pedagogia Engajada
- Pós-modernismo e política
- Racismo e Sexismo
- Espiritualidade

Biografia
Gloria Jean Watkins, mais conhecida como bell hooks, nasceu no dia 25 de setembro de 1952 em um pequeno e segregado bairro de Kentucky, Estados Unidos. Era uma entre os seis filhos de seus pais, e uma ávida leitora, tendo sido educada em escolas públicas segregadas e depois escrevendo a respeito de onde ela experienciou a educação como prática libertária. Hooks graduou-se em Inglês na Universidade de Stanford em 1973 e concluiu seu mestrado em Inglês na Universidade de Wisconsin-Madison em 1976. Completou seu doutorado em Literatura pela Universidade da Califórnia. Hooks é uma autora, professora, feminista e ativista social americana, cujo nome foi emprestado de sua bisavó, Bell Blair Hooks. Escreveu mais de 40 livros publicados em 15 idiomas diferentes e ficou conhecida por tratar de temas como feminismo, racismo, cultura, política, papéis de gênero, amor e espiritualidade.

Publicitária cearense. Canceriana. Doutora e mestre em Psicologia. Amante da docência. Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (Paralaxe-UFC). Defendeu em sua tese de doutorado um estudo sobre mulheres em transição capilar. Atualmente, dedicada aos estudos de gênero, raça, feminismos negros e decolonialidade.
Louca por fotografia, design, viajar e colecionar carimbos no passaporte. Uma pessoa extremamente curiosa.