Um dos maiores festivais de música do mundo decidiu que era legal ter na edição deste ano um palco chamado “Espaço Favela”. Vi ontem na televisão. No telejornal de maior audiência do Brasil, veiculado pela maior emissora do país e uma das maiores do planeta.
Estou falando do Rock in Rio. Do Jornal Nacional. Da Rede Globo. Estou falando da minha indignação diante disso tudo. E, principalmente, do modo como isso é tratado com uma normalidade assombrosa. Pior: muita gente comemora porque o “Espaço Favela” vai, como bem frisou o JN, “revelar 20 talentos das comunidades do Rio de Janeiro.”
Ou seja: em um dos maiores festivais de música do mundo, o lugar do artista de comunidade é num espaço que leva o mesmo nome de onde ele mora. O que isso significa? Que mais uma vez estão nos dizendo (a nós, pretos), empurrando goela abaixo, que o espaço que podemos ocupar é tão somente a favela.
Quer MESMO revelar talentos locais, Rock in Rio? Abra espaço pra esses artistas no palco principal do evento. Abraçar o diferente não é convidar pra festa. É chamar pra dançar. Nos poupe dessa politicazinha chinfrim do “pelo menos.”
“Pelo menos tem o Espaço Favela” é nada mais do que esfregar na cara dos pretos o lugar social que eles (nós) devem ocupar. E isso com a ajuda da maior emissora de televisão do país. É mostrar pra quem está em casa, assistindo ao JN, que preto num festival como esse é atração tanto quanto favela virou ponto turístico pra gringo. Exibicionismo barato travestido de solidariedade.

Sim, as comunidades do Rio de Janeiro têm moradores majoritariamente negros. Sim, as comunidades do Rio de Janeiro são favelas. Sim, há muitos (inúmeros) talentos nas comunidades do Rio de Janeiro. Mas: 1) as comunidades do Rio de Janeiro DETESTAM ser chamadas de favelas, justamente porque sabem, sentem na pele, todo estereótipo ruim que essa palavra carrega em qualquer lugar; e 2) se alguém tem o direito de chamar de Favela o espaço onde esses artistas vão cantar são TÃO SOMENTE os próprios artistas ou as pessoas dessas comunidades que estejam lá para prestigiá-los.
O problema (mais um) é que as pessoas dessas comunidades não estarão no Rock in Rio. Elas estarão onde? Adivinhe. Nas casas delas, que ficam nas comunidades. Assistirão ao festival de casa, pela televisão. Pela Globo. Pelo Jornal Nacional. E se verão empurradas mais uma vez para um espaço com nome ligado ao crime e à pobreza. Estigmatizado pela própria Globo e pelo próprio Jornal Nacional todos os dias do ano, assim como também o fazem TODAS as demais empresas de comunicação deste país.
Ou pior: as pessoas dessas comunidades até estão no festival. Mas nos serviços gerais, na segurança, nos quiosques de lanches, como fiscais de brinquedos e um monte de outras funções para servir ao público de mais de 80 mil fãs por noite de tudo o que é tipo de música.
Colabora em absolutamente NA-DA com o bem-estar social criar e batizar um espaço com esse nome e com esse propósito dentro de um festival de gente branca. É, amigo. O Rock in Rio é um festival de gente branca. Branca e rica, que pode pagar R$ 525 (inteira) ou R$ 262,50 (meia) por cada noite de festa. Isso apenas o ingresso. Não inclusos gastos com deslocamento e alimentação.
E um festival branco também no tocante à programação. Você sabe quantas atrações principais dos sete dias de Rock in Rio são pretas? Quatro. Drake, Nile Rogers & Chic, Black Eyed Peas e H.E.R são os únicos artistas pretos do Palco Mundo (o maior do evento), que ao todo receberá 28 cantores/bandas. Traduzindo: nós somos menos de 15% do line up principal. O resto é o quê? O quê? Branco.
Branco que nem os Medina, Roberto e Roberta, donos do festival. Festival esse que pleiteou para a edição deste ano a mixaria de R$ 12 milhões da Lei Rouanet. Acabou não utilizando, é verdade. Mas nem por isso está desobrigado a ter compromissos com a equidade étnica (que é de todos nós, de qualquer um), tampouco deveria se prestar ao papel de montar um palco com casebres coloridinhos numa tentativa “fofa” de transformar em circo uma mazela social histórica do nosso país.
Isso, claro, além de fetichizar a favela pra um bando de riquinhos brancos que adoram subir o morro na justificativa de comprar droga ou pra dançar o velho e famoso funk proibidão carioca. Ali, no meio de um dos maiores festivais de música do mundo, o mauricinho e a patricinha brancos têm respaldados seus discursos racistas de que lugar de preto é mesmo na favela. E que eles, brancos, apenas nos notam quando precisam ou são forçados a.
A gente não pode fingir que é normal um espaço levar nome de favela e ser dedicado a talentos locais pretos. Esses meninos e meninas pertencem ao mundo. E não a um palco cujo batismo é de péssimo gosto e serve tão somente para reforçar o imaginário coletivo de que lugar de preto é só na favela.
O lugar da gente é em qualquer canto que a gente conquiste. Passou da hora de a galerinha entender isso. Chega de se contentar com migalha. Antes não tivesse inventado um desaforo desses, Rock in Rio. É por (ENFIM!!!) enxergar esses e outros aspectos esdrúxulos da festa que tomei a decisão pessoal de não frequentar mais o festival, tão idealizado por mim durante tanto tempo graças aos relatos de meu pai.
Minha última experiência foi em 2015.
Pra nunca mais.
PS: que pena ver um cara como Xamã (negro, rapper (hoje de sucesso, gravando clipe em Paris) e ex-ambulante) sendo usado como exemplo disso tudo. Ele é um dos que vai se apresentar no “Espaço Favela.”

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.