Existe uma máxima nas redações sobre casos policiais: eles sempre são propícios à manchete. Um mínimo detalhe pode colocar o assunto como a principal notícia da edição [aquela da capa, em letras garrafais, pra chamar a atenção do leitor e fazê-lo comprar o jornal (ou, nos tempos atuais, clicar no link)]. Fui repórter de impresso durante quase dez anos. Acompanhei o desenrolar de muita operação da PM e, consequentemente, o modo como essas operações impactaram a rotina da minha editoria.
Talvez por isso, pelo afã do clique e da “venda” de uma manchete de peso, o G1 Rio, uma das filiais do portal de notícias do Grupo Globo sob orientação da Central Globo de Jornalismo, tenha considerado interessante tachar uma comunidade pobre inteira de “bunker de bandidos”. Foi essa a classificação que o Complexo da Maré recebeu da empresa de comunicação.
Dezessete comunidades formam o Complexo da Maré. Milhares de famílias. Gente que está todo dia num corre diferente e suado pra tirar o sustento mirrado dos pivetes. Homens e mulheres que ralam de antes do sol nascer até a noitinha na esperança de ter um a mais pra comprar algo melhor pra casa. Um povo que, apesar da omissão do poder público, sobrevive. Resiste. Mas tudo isso, toda a perseverança, foi reduzida a um “bunker de bandidos.”
Mas e o “bunker de bandidos” do Leblon, Ipanema, Lagoa, Gávea, Jardim Botânico, Leme, Humaitá, Copacabana e Botafogo? Não há foragidos da Justiça nos bairros mais caros do Rio de Janeiro? Quando eles vão figurar num mapa bem ilustrado em um dos portais de notícias mais acessados do Brasil? Eles não estão nos jornais por um motivo: são brancos. Todos esses bairros são brancos. De moradores, visitantes e turistas brancos. E, ideologicamente, bandidos somos nós, negros. Um referencial compartilhado pelo G1, como bem evidencia essa “reportagem especial.”
Nós, comunicadores, temos parcela considerável na formação e perpetuação de estereótipos. É preciso sim pensar na venda do jornal e na quantidade de cliques que cada post recebe. Mas, antes disso, é preciso ter responsabilidade com o uso das palavras. O direito à informação é, como bem nos mostra a pandemia, essencial. A prática jornalística também. E ela, invariavelmente, precisa estar atrelada a uma postura mais honesta e responsável do ponto de vista étnico-racial.
Sim, racial. Porque, especificamente neste caso do “bunker de bandidos” da Maré, a reportagem refere-se a uma região do Rio de Janeiro (e de todo grande centro urbano brasileiro) na qual NEGROS são maioria. Pobre neste país tem cor e endereço. É preto e mora na favela. Na periferia. Isso não implica, no entanto, que todos os moradores sejam bandidos ou coniventes com práticas criminosas de quaisquer natureza. E a notícia do G1 reforça exatamente esse estereótipo equivocado já a partir do título.
A distribuição geográfica das etnias nas metrópoles brasileiras é de conhecimento empírico de qualquer sujeito com o mínimo de discernimento. Basta observar como as cidades se movimentam. Negros e pobres saem de zonas periféricas para áreas centrais e brancas. Algo também comprovado cientificamente por órgãos e pesquisadores de renome internacional. Não há justificativa, portanto, para o argumento do “eu não sabia”, especialmente em se tratando de um produtor de conteúdo/jornalista. Constatar isso é o básico. E deveria nortear o trabalho de qualquer repórter.
O que vivenciamos, no entanto, é uma dificuldade, para não dizer resistência proposital, das empresas de comunicação de admitirem o quanto sustentam-se em práticas racistas e, a partir disso, repensarem seus modos de produção. Parte-se do pressuposto esnobe de que não há problema numa manchete como essa do G1. Mas há. Muitos problemas. Graves problemas.
As redações brasileiras são esmagadoramente compostas por comunicadores brancos. Em cargos de chefia, então, a diferença de cor é abissal. Uma pesquisa recente mostrou que apenas 5% dos editores dos jornais do nosso país são negros. Isso significa dizer, por óbvio, que 95% das pessoas que definem o teor das notícias são não-negros. Ou, no caso, brancos mesmo, visto que outras etnias figuram menos ainda no imaginário dessas empresas. E isso revela uma doença grave e crônica da nossa jovem democracia: NÓS PRATICAMOS UM JORNALISMO RACISTA!
Passou da hora de as empresas de comunicação criarem comitês internos para a discussão dos próprios conteúdos a partir da perspectiva racial. Não falo de conselhos editoriais. Esses já existem. Defendo comitês étnico-raciais mesmo, com a participação de especialistas e pensadores negros. Porque é impossível praticar uma comunicação inclusiva ignorando a composição do nosso povo.
Chega de normalizar notícias como essa do “bunker da Maré”! Não há o que justifique esse tipo de linha editorial, burra inclusive da ótica comercial, visto que a maioria da população brasileira é autodeclarada negra e, hoje, finalmente, tem meios próprios de desfazer esses discursos brancos que criminalizam negros e regiões habitadas por negros como forma de higienizar as cidades.
A realidade é que as redações, em sua maioria, sequer têm mais a figura do ombudsman, um profissional do jornalismo fundamental para apontar equívocos cometidos pela própria empresa. Não que o fato de tê-lo vá impedir a publicação de um material bizarro como esse do G1. Mas não ter alguém para atestar inconsistências (e, no caso do “bunker”, irresponsabilidades) é muito sintomático. Revela o compromisso com o erro. E isso, o erro e a irresponsabilidade, jamais deve ser tratado como parte da prática jornalística. Porque não é.
É preciso que se diga: não há disposição das redações para olhar pra dentro delas mesmas. Falta iniciativa para discutir o fazer jornalístico pelo prisma da diversidade e do respeito, começando pelo componente racial – que é o que nos diferencia primariamente. Questões étnicas não são colocadas na pauta interna dos jornais e há experiências irrisórias na contramão disso, especialmente nos grandes grupos (em geral, pertencentes a homens brancos milionários). Ou seja: uma discussão necessária quase sempre cai na conta da desimportância.
O debate sobre política de segurança pública precisa ir além do discurso “bandido está na favela”. Reduzir a pauta a isso é emburrecê-la. É estar a serviço de um modelo de sociedade que exclui e mata. Física e moralmente. Todo dia. O dia inteiro. Porque esse discurso é o do G1 e de quase todos os (tele)jornais brasileiros. Um discurso que mostra o povo negro sempre como violento, incapaz, burro e revoltado, enquanto o homem branco, rico, heterossexual e católico é retratado como o ideal que devemos, todos nós, perseguir.
O modo como nossa sociedade está organizada também não se reflete nesse conceito de “bandido está na favela”. Eu sei disso. A Polícia sabe disso. E as redações, não? Se há algo de criminoso nessa situação, olha, definitivamente, não são as famílias das comunidades do Complexo da Maré – que a reportagem induz o leitor a interpretar (inclusive por mecanismos cartográficos) que “favela só tem bandido.”
Antes que se levante a questão, não defendo a omissão do jornalismo diante de quem desrespeita a lei. Não se trata de ser conivente com o crime. Nós, jornalistas, temos a obrigação de denunciar ilegalidades. A questão aqui é outra. É o modo como a coisa é publicada. É o tratamento que se dá à informação. Negro é traficante, branco é usuário. Negro é bandido, branco é “jovem que vendia cobras”. Negro é assassino, branco é “acusado”. A questão aqui é o atenuante e o agravante utilizados.
A gente aprende ainda na faculdade que existem formas e formas de noticiar um fato. Existem, portanto, formas e formas de denunciar que 244 pessoas perigosas estão foragidas da Justiça no Rio de Janeiro. Há inúmeras abordagens possíveis. Reduzir uma região inteira, na qual moram milhares de famílias honestas e sem qualquer relação com o crime, quase todas negras, a um “bunker de bandidos” definitivamente não é uma delas. Muito menos a melhor. Isso, na verdade, tem nome. Chama racismo geográfico. Uma escolha editorial do G1, portanto, equivocada. Para dizer o mínimo.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.