Falar de intolerância religiosa requer que nos reportemos ao fato de que ao longo da história brasileira tivemos sete Constituições. E, desde a primeira, conhecida como Constituição Imperial e datada de 1824, já previa a garantia da liberdade religiosa e a proibição de perseguição por quaisquer motivos de cunho religioso, mesmo impondo restrições a manifestações que não seguissem a religião oficial brasileira.
Naquela época, o Estado não era laico. E o que percebemos, toda vez que o Estado se associa com a religião, é o surgimento de uma teocracia autoritária, abusiva, invasiva e perigosa à religião, pois quem mais sofre com essa posição acaba sendo o pensamento religioso.
O Estado brasileiro não adota nenhuma religião “oficialmente” e esse fato é amparado em Lei, uma vez que, desde 1891, data da primeira Constituição republicana, a ideia de religião oficial deixou de ter previsão legal. Podemos, inclusive, afirmar que a laicidade é uma vitória, a partir do Iluminismo, o que fez as religiões passarem a ser consideradas como algo de foro íntimo!
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, indica no Artigo 18 a garantia desse direito fundamental. Isso se tornou um marco fundamental para o nosso país no que concerne à liberdade religiosa, uma vez que somos signatários do documento e uma das primeiras nações a ratificá-lo.
Nesse contexto, a nossa Constituição vigente, de 1988, especificamente o seu Artigo 5º, faz a referência de que todas as crenças e religiões são iguais perante a lei e todas devem ser tratadas com igual respeito e consideração. Ou seja: é evidenciado que nenhum tipo de aliança pode ser estabelecida entre o Estado e religião, bem como a não pode haver imposição de obstáculo a qualquer culto ou religião. Nossa legislação ainda garante a liberdade de crença e de culto, apresentando os devidos impeditivos sobre a discriminação baseada em credo religioso, sendo esta considerada um crime imprescritível.
A Lei nº 9.459/2007, que altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, define os crimes resultantes de preconceito e pune com reclusão de um a três anos e multa quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. O código Penal Brasileiro (Decreto-lei 2.848/40), em seu Artigo 208, indica que “escarnecer de alguém publicamente por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso” pode responder com uma de detenção, de um mês a um ano ou multa, sendo que, se há emprego de violência, a pena é aumentada em um terço sem prejuízo da correspondente à violência.
Percebamos que liberdade religiosa é um direto constitucional com uma gama de legislações infraconstitucionais que a amparam. Prova disso foi a definição do dia 21 de Janeiro como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, tendo esse sido instituído em 2007, através da Lei nº 11.635, de 27 de dezembro. Ressalta-se que a data foi definida como homenagem à Yalorixá Gildária dos Santos, também conhecida como Mãe Gilda de Ogum, do Axé Abassá de Ogum, que foi vítima de agressões provocadas pelo preconceito à sua religião, tendo sua imagem sido exposta de forma difamatória. O dia é referente ao seu falecimento, o que proporciona uma reflexão importante sobre a luta pelo respeito a todas as religiões e também sinaliza um alerta sobre as ações de intolerância religiosa no Brasil.
As denúncias de intolerância religiosa aumentaram 56% no Brasil em 2019, conforme informações balanço do Disque 100, mecanismo criado em 2011 pelo Governo Federal. Entre 2015 e o primeiro semestre de 2019, foram 2.722 casos de intolerância religiosa. Uma média de 50 por mês (BRASIL DE FATO, 21 de janeiro de 2020). Sem sombra de dúvida, as religiões que mais sofrem com a intolerância religiosa no Brasil são as de matriz africana. Os números comprovam isso.
No primeiro semestre de 2019, foram registradas 354 denúncias. Dessas, 61 foram relacionadas à religiões de matriz africana (Disque 100, 2020). De 2011 a 2018, 59% das vítimas foram mulheres negras. É fundamental que percebamos que as religiões de matriz africana trazem à tona contra elas não apenas expressões de intolerância religiosa, mas o preconceito, o racismo e a rejeição a uma expressão cultural! O que se pode, antes de tudo, é se informar. A falta de informação e a construção da estigmatização a partir do preconceito é o grande desafio.
As pessoas – muitas – têm como correto aquilo apenas o que elas acreditam. Comparo até ao negacionismo, dos terraplanistas, ou que vacina não tem eficácia, por exemplo. A influência midiática potencializa esse cenário. Declarações intolerantes regularmente sendo midiatizadas, inclusive por quem está no poder, fortalecem essa percepção extremamente equivocada sobre quaisquer religiões e escolhas.
Conforme o relatório Liberdade Religiosa no Mundo, de 2016, referente ao Brasil e produzido pela Fundação Pontifícia ACN, os dois tipos de ataques mais frequentes que expressam intolerância religiosa são: (i) agressões verbais ou físicas e (ii) depredação de espaços sagrados.
Poderia citar uma série de exemplos. Constranger um colega de matriz africana por na sexta-feira ele usar roupa branca; utilizar termos agressivos contra colegas que organizam culto no pátio; tachar equivocadamente quem acredita no espiritismo e expressar isso publicamente; vermos que da mesma forma que o espaço institucional acolhe reuniões evangélicas também pode acolher um evento de uma religião de matriz africana ou qualquer outro rito. Se informar e se permitir conhecer a história da fundamentação das religiões é o primeiro passado. Se permitir desconstruir.
Retomo que, constitucionalmente, há amparo legal para a liberdade religiosa, o que não impede de serem expressas as religiões de quem está nesses locais de poder. O problema é impor e dizer que somente o que um indivíduo ou um grupo crê deva ser o correto, o verdadeiro. O imaginário gera o preconceito. Ou seja: se dá também pelo desconhecimento. Entretanto, vemos que, infelizmente, como já coloquei, tem se dado força às informações equivocadas e que incentivam a discriminação. Que bom que, por outro lado, a disseminação de Fake News, de declarações inverídicas em sua grande parte, tem sido veemente combatida. É suficiente? Não. Não é suficiente, mas já contribui com uma possível transformação dos olhares sobre determinadas falas e informações.
Nesse contexto, ratifico que a base para o combate de todas as formas de intolerância é a educação e a comunicação. As instituições de ensino e os meios de comunicação. Temos a Lei 10.639/2003, que acabou de completar 18 anos, e a Lei 11.645/2008, cujas completudes ainda não foram instituídas nos espaços educacionais de forma regular. Essas leis são aliadas na pauta de combate à intolerância religiosa, que traz em seu cerne, como afirma Sidnei Nogueira, “a necessidade de estigmatizar para fazer oposição ao que é normal, regular, padrão, e o que anormal, irregular, não padrão”. A passo que passarmos a pautar este debate, será naturalizada a necessidade de serem estabelecidas discussões sobre as religiões. Visibilizar a pauta. Não se trata de executar ritos, mas falar sobre as religiões.
Infelizmente, a intolerância é a expressão cabal do ódio. E esse ódio vai poder ser redirecionado para diversos grupos, como às questões raciais ou ao que é considerado feminino na sociedade. Então, a gente pode perceber que existe um entrelaçamento entre ódio, intolerância, extremismo e racismo. Como romper com esse ciclo de ignorância? Com informação, formação e políticas públicas.
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Doutora em Geografia, mestra pelo Programa de Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema-UFC) e graduada em Licenciatura e Bacharelado em Geografia. É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia (IFCE), onde coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) de Fortaleza. É ativista e pesquisadora na área de Segurança e Soberania alimentar, Direito Humano à Alimentação Adequada, Cultura Alimentar e Justiça Alimentar.