O seleto grupo de vencedoras do reality show RuPaul’s Drag Race ganhou mais uma integrante de alto gabarito. Nessa sexta-feira (25/8), Keiona Revlon arrebatou a segunda temporada da versão francesa do programa e nós precisamos falar da grandiosidade desta vitória. Porque ela vai muito além do marco de Keiona ser a única drag queen nesses 14 anos de exibição da série – em todas as franquias do mundo e em todos os formatos já experimentados – a ter apenas desempenho ótimo ou excelente.
Nos oito episódios de Drag Race França, ela recebeu dos jurados seis ótimos e dois excelentes antes de ser coroada na final exibida ontem. Nenhuma concorrente da temporada chega sequer perto disso. Nem mesmo a que terminou a disputa em segundo lugar. Muito menos a eleita Miss Simpatia da temporada.

Keiona e Mami Watta foram as únicas integrantes negras dessa edição francesa. E é aí onde mora o simbolismo de tudo: uma pessoa preta e de origem africana venceu um reality show num país branco, localizado no epicentro de onde surgiu o racismo e que só é o que é hoje graças à exploração sanguinolenta de pelo menos 20 países da África – dentre os quais, ironicamente ou não, a Costa do Marfim, de onde Keiona se origina.
É sempre potente testemunhar essas revoluções. Sim, revoluções. No início do programa, com todas as drags ainda na competição, a possibilidade de Keiona vencer era inferior a 10%. Como as demais, ela tinha – matematicamente – uma chance em 11 de levar a coroa. E gabaritou os episódios com uma excelência que não dava margem a contestações.
Nas redes sociais, Keiona era quase unanimidade – muito embora a racialização dessa popularidade nunca tenha acontecido. E assim era justo pela dificuldade dos fãs brancos do programa em admitirem o fosso existente entre as drags brancas para as quais eles torciam e a drag preta que se mostrou favorita desde o primeiro episódio. Além de se proteger no pacto que já conhecemos, a branquitude tem sérias dificuldades de reconhecer excelência em alguém não-branco. Porque fazer isso é afirmar a humanidade dessas pessoas. E humanidade, desde a criação do racismo, ali pelo século XIV, tem sido uma exclusividade branca.

Ao colonizar a Costa do Marfim, e fez isso por mais de 100 anos, a França impôs às populações de lá o que todo colonizador faz: a percepção de ser o europeu um povo superior por sua brancura e de ser o negroafricano inferior por ter cor na pele. Essa destituição é a principal estratégia de dominação, aliada à falácia desenvolvimentista que sempre se coloca como cortina de fumaça para saques e explorações de riquezas naturais. Agora, em um 2023 no qual o governo francês tenta novamente ocupar territórios africanos, uma drag queen preta demonstra em rede nacional de televisão o quão é excelente a negritude.
Isso é de se celebrar porque ajuda a construir um outro imaginário que não o habitualmente perpetuado pela colonialidade do racismo sobre pessoas negras não terem aptidões artísticas e sim somente braçais e/ou sexuais. Keiona é uma artista. Ocupa este lugar das transformações, das performances, da beleza, das imaginações, do palco. E o faz a partir do próprio corpo. É ele, o corpo, uma pedagogia para quem a assiste. Ele ensina não só por estar ali, presente, o que já seria grande feito num programa de televisão de um país branco. Mas vai além. Prova que é potência.
De todas as atuais vencedoras de RuPaul’s Drag Race em temporadas regulares (ou seja, excluindo-se aquelas nas quais o programa traz de volta competidoras já conhecidas para uma disputa entre si), Keiona é a única negra. Isso alça a relevância do reinado e da representatividade dela a patamares ainda maiores. Porque se o mundo é plural em etnias e raças, como de fato o é, o universo das representações, no qual estão os programas de televisão e a arte drag, também tem que ser. É urgente e necessário.

Ter Keiona no panteão das vencedoras contribui para o público do programa, especialmente o francês, cujo ideal de beleza é o próprio branco europeu, assimilar a negritude numa perspectiva mais positiva e mais distante do estereótipo da feiura, da burrice, da pobreza e das incapacidades. Pessoas negras em diáspora, como é o caso de Keiona, carregam consigo, por onde quer que andem ou apresentem-se, uma ancestralidade africana que é acionada quando confrontada com a hegemonia branca. Sempre. Invariavelmente. Diante disso, o que Keiona fez foi dizer: “franceses, nos respeitem!”.
Nós somos excelência sim.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.