Uma negra de um metro e oitenta e cinco centímetros. Luciana chegou ao cineteatro São Luiz, em Fortaleza, no último domingo, 16 de junho, enchendo nossos olhos com um porte ancestral, tranças coloridas e já pronta para subir no palco. Recebeu a gente no camarim de sorriso largo para uma conversa de peito aberto. De preta pra preta. Papo reto.
Aos 40 anos (pasmem!), ela comemora 35 de uma carreira consciente do caminho trilhado, cheia de projetos, se sentindo linda e cantando a plenos pulmões a força de ser mulher. A família está no olhar, na fala, na pele arrepiada. Ela não desvia o olho do meu. A voz doce é firme e não titubeia nas respostas.
Estreei nessa aventura de entrevistar com o pé direito. As imagens são da criola Jéssica Carneiro, minha parea nessa delícia de conversa. E a edição carinhosa é do criolo Bruno de Castro.
Confira o papo na íntegra.
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CEARÁ CRIOLO
O que é ser uma mulher, artista e preta no Brasil?
LUCIANA MELLO
Eu sou uma artista mulher e preta com muito orgulho, com muita alegria. Sei da minha responsabilidade e fico muito contente quando junto mulheres pretas pra gente falar do assunto. E pra gente lutar também.
É uma honra ser mulher. É uma honra poder dar vida. Ninguém existe no mundo sem a mulher, sem o poder feminino. Pra poder existir, você precisa passar pelo ventre feminino. Isso é uma honra, mas durante muito tempo isso foi tolhido. Porque eles têm medo desse poder da mulher, que não é só o de gerar a vida. Ela tem o poder de se juntar, de persuadir, de conversar. A gente tem que vir mesmo. Tem que vir essa mulherada poderosa em todas as áreas.
O meu sonho pra minha filha é que a gente nem precise mais pensar nisso: de que a gente tem que se impor. Que as mães precisem criar os filhos diferentes do jeito que a gente foi criado. Eu já crio meu filho assim: pra ele entender que ele tem os mesmos direitos que ela. Que ele vai ter que estudar pra chegar lá do mesmo jeito que ela. Meu sonho é que as mães comecem a criar os meninos decentemente.
A gente não é mulher maravilha. A gente precisa das pessoas também. Todo mundo precisa de todo mundo. A gente precisa um do outro. A gente vive em sociedade e precisa um do outro. Não interessa se é uma mulher ou um homem que vai arrumar meu carro. Se essa pessoa está ali é porque ela tem condições de estar ali.
Nem que a gente não esteja mais aqui, mas a gente deixa um legado. A gente planta. É isso o que a gente faz com a nossa criação. Eu fui criada num mundo machista, mas minha mãe sempre foi a leoa da casa e disse que eu nunca me deixasse intimidar porque eu sou menina. Como eu não tinha porte de menininha, então eu pensei: “sou mulher e vou com muito orgulho.”
CEARÁ CRIOLO
O cabelo pra mulher negra vai muito além da estética. Me conta um pouco tua relação com ele.
LUCIANA MELLO
Eu não tinha referências. Eu era a única menina negra da escola. Alisei o cabelo. Passei boa parte da adolescência sem me aceitar. Até os 20 anos, eu ainda alisava o cabelo. Eu tinha vergonha do meu cabelo e não conseguia me reconhecer de outra forma. A gente, eu e minha mãe, não sabia o que fazer. Minha mãe é branca, com cabelo cacheado. Então, eu não a culpo porque ela não sabia como cuidar. E também não tinha salão, não tinha produto específico pra cabelo de gente preta. Mas eu sempre fui criada muito livre. Então vi que precisava me aceitar. Parei de alisar e assumi o black. Aí notei que, quando tinha produto, era sempre aquela coisa de redução de volume. Pra você domar o cabelo. E eu não queria domar nada. Queria ele do jeito que ele era e é.
Um dia, minha filha chegou da escola reclamando que o cabelo dela tava muito “cheio” porque as amiguinhas tinham dito isso sobre ela. Eu coloquei ela no espelho do meu lado, com meu black armado, e pedi pra ela olhar pro espelho e dizer qual cabelo qual tava “cheio”. Ela disse que era o meu e eu disse que os dois – o dela e o meu – eram lindos. Depois desse dia, ela nunca mais achou feio. Mas ela tem a mim como referência. Eu não tive referência. Já fiz permanente, já alisei, já fiz permanente afro, tudo. Aí eu falei: “vou ser mais feliz.”
CEARÁ CRIOLO
Em casa, então, essa questão das diferenças era algo tranquilo…
LUCIANA MELLO
Minha mãe falava pra mim: “cara, você tá feliz com o que você tá vendo aí? Se não tá, então muda”. Era muito nessa linha: você se olhar no espelho e estar feliz. Se está? Vá. Por isso que eu digo que a gente foi criado no amor, pra gente gostar da gente mesmo. Pra gente se olhar e dizer: a gente é bonito. O meu cabelo é meu. O meu não ia ficar legal em você e o teu não ia ficar legal em mim. O meu é legal em mim. O seu é legal em você. O dela é legal nela.
A minha filha fala: “mãe, mas a Valentina [que é uma amiguinha dela] tem o cabelo liso e eu quero ter o cabelo assim. Você não gosta de cabelo liso?”. Eu falei: “gosto. Mas o cabelo liso da Valentina fica legal na Valentina. Pra você, não. Você veio assim pra mim”. A Valentina nasceu assim e ela é linda assim. E tudo bem.
Eu procuro sempre ensinar o respeito. O amor e o respeito. Não interessa se o outro é verde, é rosa, tem cabelo liso… Eu fui criada assim e procuro ensinar assim: a gente respeitar o próximo, independente da cor da pele, do cabelo, da roupa, do que o outro gosta.
CEARÁ CRIOLO
O que é ser filha do Jair Rodrigues? Dá pra definir?
LUCIANA MELLO
Quando eu era mais nova, eu falava: “ué, ele é meu pai igual o seu pai é o seu pai”. (risos) Eu confesso que demorei um pouco pra entender quem era o Jair Rodrigues. Porque pra mim ele era só meu pai. Era o cara que tava na minha casa, que me educava, que me dava bronca quando precisava… Depois de um tempo, eu já adolescente, aí que fui entender a importância, o trabalho, que ele era um cara que tava sempre sorrindo. Independente do que acontecesse na vida dele, ele tava sempre sorrindo e levando alegria pra vida das pessoas.
Quando ele faleceu, eu vi o tamanho do carinho das pessoas. Até hoje, as pessoas me param e sempre têm uma história engraçada ou alguma passagem muito feliz com o meu pai. Se eu cumprir um terço da missão que ele cumpriu, que é de levar essa alegria pras pessoas, todo esse amor pela arte, eu até me arrepio falando, eu já fico feliz da vida.
CEARÁ CRIOLO
A gente está num cenário no Brasil no qual a cultura tá sofrendo muito ataque. Nunca foi fácil, mas eu acredito que agora está mais difícil…
LUCIANA
É, tá bem complicado.
CEARÁ CRIOLO
Como é que você tá nesse momento? Como a tua cabeça tá pensando a cultura nesse cenário?
LUCIANA
Desistir eu não vou. Já pensei: “será que é isso?”. Mas aí eu recebo tanto carinho de fãs. Tantas pessoas me param e dizem: “tua voz muda meu dia”. Ou: “a tua música me fez desistir de um casamento abusivo. Consegui me livrar ouvindo a tua música”. Aí, eu paro e penso que essa é a missão mais linda que eu tenho na vida. Eu não posso, eu não sei nem o que fazer.
Mas claro que já pensei em outras coisas. Eu sempre quis palco. Eu fiz dança muitos anos, teatro. E música, sempre. E fui vendo onde eu me encaixava. É difícil. Eu costumo dizer que a gente tem que domar uns sete leões por dia pra trabalhar com cultura, de fazer coisas legais.
Eu sempre quis fazer um negócio que eu fosse me orgulhar pra vida inteira. Que eu pudesse trazer meus filhos, você pudesse trazer os seus filhos. Fico feliz da vida porque tem muita criança que vai aos meus shows. E tem muitos avós, muita gente mais velha que vai e leva os mais novos. Esse é o caminho que eu quis trilhar. É música pra todo mundo, onde todo mundo se sente à vontade de escutar minha música junto com filho, neto, com bebê ou no carro, sozinho, pulando e cantando. Esse sempre foi o meu objetivo.
A gente tem que se reinventar, buscar novos projetos. Eu tenho aí um novo projeto de samba, que chama Samba a Dois. Juntei com um grande artista chamado Valmir Glória. Fizemos uma temporada em São Paulo, semana que vem estamos indo pra Salvador. Se Deus quiser, viremos pra cá também. Mas a gente tem que correr. Tem que lugar. Porque não tem incentivo, mas tem custo, tem a banda e tem muita gente pra trazer. Se não dá agora, a gente tenta de outra forma.
Tem também meu DVD em comemoração aos 35 anos de carreira. Tem o “Na luz do samba”, que foi meu primeiro disco de samba que foi indicado ao Grammy. A gente não para. É uma fase muito bacana. Eu tô sempre inventando alguma coisa pra gente trabalhar.
CEARÁ CRIOLO
E tu ainda tá com o show junto com o Jairzinho…
LUCIANA MELLO
E ainda tem esse tributo. O tributo ao Jair Rodrigues. Esse nunca para. Nunca vai parar na vida. Isso é um negócio pra vida inteira, porque é levar o nome do meu pai. E fora isso, eu ainda tô produzindo o documentário do Jairzão.
CEARÁ CRIOLO
Quero te perguntar sobre o “Na luz do samba”, que foi é teu mais recente trabalho. É um projeto de samba que você tinha pensado com o seu pai há muito tempo, né?
LUCIANA MELLO
É. É um projeto que meu pai queria fazer. Ele falava que queria um disco de samba e tal, pra gente fazer. E eu a cada hora tava num lugar diferente. Quando ele faleceu, eu falei que tava na hora de fazer esse disco pra ele. Dedicar esse disco pra ele.
CEARÁ CRIOLO
E tem Alcione…
LUCIANA MELLO
A Alcione foi a primeira pessoa que pensei pra participar desse disco. Porque ela foi lançada pelo meu pai, né? Meu pai foi o cara que apresentou ela pra primeira gravadora dela. Ela sempre teve o maior carinho pela gente e a gente por ela… Quando eu fui fazer esse disco dedicado a ele, por essa alegria que ele sempre teve, eu pensei em dar mais essa alegria a ele em ir pro samba.
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PERFIL
Luciana Mello Rodrigues de Oliveira é filha de Claudine Mello e Jair Rodrigues. “O Filho do Seu Menino” foi a primeira música gravada, ainda aos seis anos com o pai.
Participou do grupo Balão Mágico ao lado do irmão Jair Oliveira, o Jairzinho, com quem a parceria em projetos é frequente.
É mãe da Nina e do Tony, tem sete discos solos gravados, dois álbuns de projetos especiais, já foi indicada ao Grammy, na versão latina da maior premiação no mundo da música, e acumula quatro musicais e participações em discos de outros cantores.
Além dos projetos musicais, mantém com o marido Ike Levy o canal Fotografilhos no YouTube.
Publicitária. Movida por decibéis, apegada ao escurinho do cinema e trilha o aprendizado de ser uma mulher preta. Trabalhou em agências de Fortaleza e Salvador ao longo de 10 anos. Hoje responde pela Mídia na Set Comunicação, house da Educadora 7 de Setembro.