Olhei pro menino ainda distante e a frase dita por meu pai num tempo mais distante ainda renasceu em meu ouvido. Forte e avassaladora, como em décadas atrás, numa cena idêntica. “Podia ser tu ali.” O estopim para um sentimento incômodo, ruim, mas importante àquela época, tornar a pular no meu peito. E ser também necessário agora.
“Ali” tinha endereço. Era um semáforo de três tempos. Um semáforo de três tempos em um cruzamento perigoso da cidade onde moro. O garoto estava num semáforo de três tempos em um cruzamento perigoso da cidade onde moro. Uma das mais desiguais do mundo. Também uma das mais violentas para meninos como ele. Para meninos como eu, quando na infância ouvi essa sentença de quatro palavras. “Podia ser tu ali.”
Agora, homem feito, revivi tudo com o mesmo frio na espinha. Tal qual com quem me deparei quando era pequeno, o garoto de hoje estava com a palma do pé no asfalto, camiseta gasta pelo tempo, calção branco no joelho e cabelo ensebado. Poeira herdada da pista e um sorriso pra dentro, cansado.
Carregava bombons. Uma caixa de papel miúda, colorida, com doces pouco vendidos numa mão mais miúda ainda e um pedaço de pano laranja na outra. Toda chance é tempo de limpar o espelho de um carro qualquer e levar pra casa algum trocado a mais. A certeza da rua é o futuro do outro na incerteza do seu.
“Podia ser tu ali”. Isso ressoou dentro de mim por dias da minha infância. Eu não queria ser “o menino do semáforo”. Me apavorava a ideia de não ter cama, escola, roupa. De não ter comida. De não ter um pai. Nada disso consta na vida da maioria desses garotos de semáforos.
O menino que vi hoje no sinal estava sozinho. Tristonho. Assim como estava sozinho e tristonho o garoto do sinal da minha infância, que também olhei de dentro do conforto do carro de meu pai. Um filete de vidro separando duas vidas tão opostas mas tão parecidas na cor. Eu, novo, enxergava o garoto como a representação de um vazio que eu temia conhecer. Um vazio de tudo. E acho que ele e a fala de meu pai podem ter sido responsáveis por eu, desde cedo, priorizar tudo o que pudesse me garantir algum conforto, alguma certeza, algum futuro. Eu me achava gêmeo daquele garoto. Não por uma consciência racial precoce. Era instinto mesmo.
Por isso, mergulhei nos estudos. Tentei uma vida inteira ser o melhor aluno da sala por medo de, não sendo, ir morar na rua. Pedi pra fazer inglês e não faltava aula porque, na minha cabeça, eu precisava de um diferencial pra “ser alguém” e não terminar invisível, vendendo bombom no sinal. Comecei a trabalhar aos 16, o mais cedo que pude, e já na minha área, o jornalismo, pra ter certeza de que era aquilo o que eu queria ser e, não sendo, ter tempo de mudar e não correr o risco de terminar a vida limpando vidro de carro.

Forjei pra mim um sem número de oportunidades que o garoto do sinal da minha infância não teve. Fiz isso para ter uma vida diferente da dele – que, na verdade, deveria ser igual à minha. Não era só eu que não merecia ter a vida dele, ruim, de exclusão, de mais nãos do que sins. Ele merecia ter a minha vida também. Com escola, cama, roupa, comida, pai. Mais sins do que nãos.
As palavras de meu pai ressoam novamente dentro de mim agora, eu, homem feito e vendo um outro garoto no mesmo sinal fazendo as mesmas coisas do garoto do sinal da minha infância, porque me dou conta do quão feliz fui conseguindo quase tudo o que sonhei pra mim. Não fui pra rua, afinal. Não precisei vender bombons pra sobreviver. Não fui submetido à rotina de vidros subindo, carros andando e nãos sendo dados toda vez que tentasse limpar um vidro ou um retrovisor. A vida foi boa pra mim. A vida é boa pra mim.
Tive um pai que enxergou na educação uma ferramenta fundamental pro meu destino ser diferente do destino do garoto do sinal da minha infância. E de vários outros garotos negros que povoaram minha meninice e desencontrei pelo caminho. Mas isso não me impede de imaginar o que o garoto que vi hoje no semáforo enfrenta. Como ele se chama? Bruno? Quais sonhos ele tem? Vai comer hoje? Vai ter o céu como teto de novo esta noite? Vai viver o privilégio do amor?
É outra a cidade que me abriga hoje. A mesma, mas outra. Ainda absurdamente desigual, mas outra. Ainda perigosa para garotos de sinal, mas outra. Ainda imensa, mas outra. Vinte e cinco anos depois de encontrar o primeiro menino do semáforo, aquele diante do qual meu pai me disse “Podia ser tu ali”, eu encontro outro, possivelmente da mesma idade, certamente da mesma cor que eu e volto a pensar, mesmo sendo eu inteiramente outro Bruno: “podia ter sido eu ali.”
Não fui. Não foi. E sei qual destino teve o primeiro garoto. Desconheço o nome, os sonhos, se teve o de comer, se dormiu debaixo de telha ou estrela, se viveu algum privilégio, quem dirá o do amor. Sei de nada disso, muito embora tenha passado naquele cruzamento inúmeras vezes, visto o menino inúmeras vezes e, em várias delas, meu pai tenha repetido o “podia ser tu ali” pra me lembrar de como minha vida era boa. É boa.
O destino do primeiro garoto foi morrer cedo. Um outro nos disse, meses após o primeiro encontro, quando demos pela falta dele, questionamos e aquela resposta seca, um simples “ah, tio, matáru”, me chocou profundamente. Ele não teve o direito de ter o direito de viver uma vida inteira, como eu estou tendo. Terminou como vários amigos meus, também negros, terminaram. Sem oportunidade.
Talvez por isso, por esse choque, eu não suba o vidro nem acelere o carro sempre que um garoto de sinal se aproxima de mim. Sempre penso que “podia ser tu ali”. Bastava meu destino não ter cruzado com o de meu pai e ele não ter tido o discernimento de o estudo ser importante pra eu (sobre)viver. Nascer na condição que nasci, negro e pobre, já determina muita coisa. Tal qual determinou para o Jonas, uma outra figura da minha vida, cujo esforço de papai para salvar foi imenso, mas que vou fisgar da memória um outro dia. É, acho que era Jonas o nome. Vou chamá-lo de Jonas. Sinto uma coisa boa, um tipo de paz, ao falar e ouvir essa palavra.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.