De toda essa desgraça em Paraisópolis, mais irônico e crônico é a possibilidade de os policiais que mataram os jovens serem tão pobres e tão negros quanto as vítimas. Negro matando preto. Preto matando pobre. E o Estado de mãos lavadas. Com álcool em gel e sangue.
Muitos jovens negros e pobres enxergam na Polícia e nas Forças Armadas uma fonte de renda. O primeiro emprego. A independência financeira da família. A conquista de alguma autonomia na vida depois de anos sem acesso ao básico, com o Estado encontrando cada um – e a todos – basicamente só pela mão da repressão.
Bacolejo na rua.
Casa invadida de madrugada.
Tiro.
Bala perdida.
Tapa na cara.
Nome de vagabundo desde a infância…
Esses garotos têm uma infância violada de inúmeras maneiras pelo Estado, ingressam no aparato de segurança muitas vezes por total falta de opção e ganham status de uma “autoridade” que mais representa medo. Polícia no Brasil é temida, não respeitada. Temor e respeito estão em pontas bem opostas. E tudo resulta no que a gente viu no baile funk dessa comunidade de São Paulo.
Nove mortos.
Nove corpos pobres.
Nove corpos negros.
Mães perderam filhos e esses policiais correm o imenso risco de serem abandonados pelo Estado diante da grande repercussão do caso. PMs que agiram por ordem superior, validados pelo próprio governador, agora são julgados pela opinião pública, devem ser penalizados pelos órgãos de segurança e devem ficar no limbo.
Ou seja: os meninos esquecidos pelo poder público quando eram crianças tornaram-se agentes desse mesmo poder público, que os empurra para uma prática genocida (agora mais do que nunca) e se isenta de qualquer responsabilidade diante de uma atrocidade como a que aconteceu. Vide o episódio esdrúxulo da major questionando a veracidade das imagens de Paraisópolis em entrevista ao vivo para a jornalista Fátima Bernardes.
Ou ainda: é o próprio Estado colocando negro contra negro. Uma estratégia perversa – e corriqueira – para higienizar um país que luta, diariamente, para ser o mais branco possível.
Quem ganha com um episódio desse?
Quem morre ou quem alimenta o discurso de ódio e morte aos pretos e pobres?
Quem está nas favelas, sofrendo e morrendo com a truculência policial, ou quem está no poder, reforçando o estereótipo da vagabundagem do povo preto e ordenando o massacre?
Pense.
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AS VÍTIMAS.
Marcos Paulo Oliveira dos Santos, 16 anos.
Estudante, morava no Jaraguá, zona norte de São Paulo.
Denys Henrique Quirino da Silva, 16 anos.
Morava com a família em Pirituba, zona oeste de São Paulo. Estudava e trabalhava com limpeza de estofados e sofás.
Dennys Guilherme dos Santos Franca, 16 anos.
Estudante de Administração.
Gustavo Cruz Xavier, 14 anos.
Vivia com a família no Capão Redondo, na zona sul.
Gabriel Rogério de Moraes, 20 anos.
Morava em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo.
Mateus dos Santos Costa, 23 anos.
Baiano, morava há cinco anos em Carapicuíba, na Grande São Paulo.
Morava sozinho e trabalhava vendendo produtos de limpeza.
Luara Victoria de Oliveira, 18 anos.
Morava com uma amiga após a morte do pai e da mãe.
Estava desempregada.
Bruno Gabriel dos Santos, 22 anos.
Comemorava o aniversário no baile quando ocorreu a chacina.
Eduardo da Silva, 21 anos.
Morava em Carapicuíba, na região metropolitana de São Paulo, com a mãe, o pai, uma irmã e o filho.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.