Pleno século XXI, 130 anos após a última abolição da escravatura no mundo, somos obrigadas(os) a ver publicidade de cerveja completamente parada no tempo, e não é qualquer tempo. Parada no período colonial. No dia 25 de janeiro de 2019, a Cerveja Quinas, marca portuguesa, veiculou uma campanha que deixou a todos de queixo caído não pela genialidade, mas por tamanha estupidez e clara falta de noção histórica.
Acompanhada do título “Os portugueses são conquistadores, gostam de deixar marca por onde passam”, a peça traz a gestalt do continente africano em forma de espuma de cerveja. A legenda que segue a publicação no Facebook da marca, não menos vergonhosa, segue:
Chegaremos à África do Sul para espalhar felicidade lusa. Encontra-nos em breve em vários pontos de venda, principalmente em restaurantes portugueses.
Embora a campanha tenha sido dirigida ao público-alvo sul africano, é praticamente impossível não se deixar afetar quando se tem o mínimo de conhecimento histórico e de compreensão do que a ocupação europeia representou para todas as suas (ex) colônias. Também não é de se estranhar que o público brasileiro tenha sido a grande “culpa” do backlash (em outras palavras, o tiro pela culatra) da campanha #fail que está viralizando nas redes sociais, acusando a marca de racismo.
A empresa respondeu, em nota enviado à imprensa, que
“Em momento algum, a Quinas, quem desenvolveu a criatividade e quem a aprovou, quis ofender ou despertar sentimentos como os que temos visto nos comentários que têm sido postadas na página de Facebook da marca. Em momento algum, se quis fazer analogias com o passado histórico ou ligações ao colonialismo. Procurar e forçar essas ligações parece-nos demasiado forçado e comentários como os que temos recebido desproporcionados pelos conteúdos e agressividade dos mesmos”.
A começar pela peça em si, é muito absurda a ideia de trazer um dos mais vergonhosos episódios da história recente da humanidade, que foi a colonização (invasão) europeia e o apagamento de dezenas de etnias na África, como diferencial do produto.
Diferente do que muitos possam achar, o paradigma colonizante/colonizador não habita apenas o pensamento do indivíduo europeu, branco, hétero, cisgênero (acrescente aqui os adjetivos que desejar). Como se trata de uma racionalidade enraizada no pensamento moderno (que é, adivinhem? tã-dãm… europeu!), é muito provável e comum que pessoas não-europeias, não-brancas, não-hétero, não-cis acabem partilhando da mesma matriz de pensamento que, em teoria, serve para oprimi-las e colocá-las em posição de subalternidade.
Como é o caso dos internautas que defenderam avidamente a marca:
“Eu amo cerveja e esta em particular. Todos os comentários a respeito da escravidão parecem desproporcionais e cínicos para mim”, escreveu D.F na publicação da campanha, em rede social.
“Parabéns pela ideia. Apenas analfabetos funcionais que não conhecem nem valorizam o próprio passado reclamam de tamanha criatividade”, disse B.W, complementando.
“Carolina não entendo este ódio… sou brasileiro e me parece uma tamanha ignorância discutir coisas de um passado distante de uma outra época, te pergunto quem da sua família foi assassinado por Portugueses? Coisa de quem não tem o que fazer”, finaliza S.G.
Não sabemos se por motivo de ingenuidade ou por pura ignorância, indivíduos que corroboram com este tipo de discurso como o da marca (completamente anacrônico) contribuem para a manutenção desta racionalidade subalternizante que é o colonialismo.
E não se deixe enganar: o colonialismo não diz respeito apenas ao período em que os europeus invadiram vários países.
O pensamento colonial persiste na mente e nos afetos toda vez que invisibilizamos a história de nossos ancestrais, toda vez que negamos o racismo que nos habita (“eu? preconceituoso? claro que não!”), toda vez que trocamos uma globeleza negra por uma “menos escurinha” pra não chocar a sociedade brasileira, toda vez que esquecemos (ou fingimos que esquecemos) que as gerações de hoje, pretas, pobres e periféricas ainda sofrem os efeitos da escravidão que, ao contrário do que se prega, “terminou” há pouco mais de um século.
Eu não sei o que me assusta mais: o profissional que idealizou a peça ou a diretoria que a aprovou. Não me admiraria em nada descobrir que na equipe criativa só tem homem branco com pensamento colonizador. Reivindico o que um dia escutei Caetano falar, em uma de suas entrevistas: “Precisamos de uma segunda abolição!”. Que ela comece já e passe pelas agências de Publicidade. Nós agradecemos.
Publicitária cearense. Canceriana. Doutora e mestre em Psicologia. Amante da docência. Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (Paralaxe-UFC). Defendeu em sua tese de doutorado um estudo sobre mulheres em transição capilar. Atualmente, dedicada aos estudos de gênero, raça, feminismos negros e decolonialidade.
Louca por fotografia, design, viajar e colecionar carimbos no passaporte. Uma pessoa extremamente curiosa.