Eu imaginava que acontecia só comigo. Eu, um anônimo. Um jornalista negro e nordestino falando sobre negros e racismo num estado nordestino cuja disposição histórica é a de negar a existência desse mesmo povo nesse mesmo lugar.
Mudei de ideia quando esbarrei em dois relatos. Um de uma conterrânea também antirracista, mas antropóloga. E outro de um advogado paulista igualmente praticante do antirracismo, só que dentro da sua própria expertise. Foram eles que me mostraram o quanto é recorrente pessoas brancas tentando lucrar com a nossa luta.
Mas é lucrar mesmo, no sentido literal do verbo.
Nos convidam para ministrar palestras. Nos chamam para promover capacitações com funcionários. Nos tentam a assinar campanhas publicitárias de igualdade racial. Nos procuram para dar cursos sobre relações raciais. Nos buscam para explicar aos empregados o quão urgente é ser antirracista (se não por questões humanitárias, mas econômicas). E não querem arcar com um centavo disso.
Não importa se você é um jornalista poliglota, pós-graduado e premiado. Não interessa se você é uma professora com mestrado. Não se dá a mínima se você assina coluna semanal no maior e mais influente jornal do país e participa de eventos inclusive internacionais. Querem que você trabalhe de graça. A justificativa é sempre “não dispomos de recursos” ou “custo zero” ou “não temos verba”. E querem que sejamos compreensivos.
É grave. É muito grave a disposição de empresas e gestores (sempre brancos, diga-se) de quererem agregar valor à própria imagem a partir do conhecimento, tempo e disposição do outro (sempre negros, diga-se) tendo a certeza de que nós vamos agradecer a deus (ou algo que o valha) pelo convite e não vamos nos importar de o trabalho ser voluntário.
Sim, nós nos importamos!
Tal qual o gestor branco que nos convida, nós estudamos, nos capacitamos, dedicamos tempo e dinheiro ao aperfeiçoamento de nossas ideias e atuações. Somos profissionais. É como devemos ser tratados. E isso passa necessariamente pela remuneração adequada. E colocar essa questão na mesa não significa ser mercenário ou querer lucrar com o antirracismo.
Não se faz antirracismo por amor. Se faz por uma urgência da existência de todos nós. Porque o racismo é uma determinante na vida de todos nós. E alguns de nós, negros, alia essa luta à área de atuação profissional. Se você, branco, quer entrar para a trincheira antirracista ou mesmo “apenas” agregar valor à sua marca valendo-se do trabalho e da imagem de um negro, entenda: você tem que pagar por isso. Da mesma forma que paga quando contrata uma modelo branca do olho azul para estrelar sua campanha publicitária.
Nós, negros, precisamos acabar com o melindre da precificação do nosso trabalho. Profissional nenhum trabalha de graça. Sendo assim, por qual motivo nós, negros, devemos trabalhar? Pelo fato de a branquitude nos enxergar como militantes? E militantes, por acaso, não pagam contas? Se você, gestor, recebe todo fim de mês pelo trabalho que presta à empresa, se o seu funcionário recebe todo fim de mês pelo trabalho que presta a você e se a empresa lucra com o esforço de vocês dois, qual a justificativa para você querer que um profissional negro trabalhe de graça para você ter a sua imagem (ou a imagem da empresa) melhorada diante dos funcionários ou da opinião pública?
Chega desse pensamento colonizado de que, ao promoverem atos antirracistas, brancos fazem quase um favor à sociedade – e nós, negros, devemos ser gratos por isso! Não é favor nenhum. E não, não devemos ser gratos! Se somos convidados a participar do ato como profissionais, nós devemos ser é remunerados. Se não somos convidados, as pessoas brancas envolvidas nele fizeram nada além do necessário. Basta de enxergar o antirracismo como uma virtude. É o mínimo!
Além de senso de justiça, essa é uma questão de coerência. Que espécie de antirracista é você que em vez de pagar pelo trabalho de um negro quer, na verdade, que esse negro faça tudo de graça pra você? Ele, que sofre com o racismo cotidiano, tem que trabalhar por amor à causa antirracista, sem ganhar por isso, enquanto você, que se beneficia do racismo diariamente, vai lucrar com isso? Qual a lógica há aí senão a do próprio racismo? Sim, branco, você está cometendo mais um ato racista.
“Mas por que, Bruno, se eu estou convidando a pessoa pra estar ao meu lado?”. Se você não se deu conta de que a luta antirracista é por igualdade racial, igualdade de oportunidades, igualdade de futuros, igualdade de vida, igualdade de direitos, você entendeu tudo, tudo, tudo errado. Não é sobre ter uma peça publicitária bonita pra postar no Instagram acompanhada de tags do momento. É sobre quem foi protagonista no processo e qual tipo de reconhecimento teve nele. Por reconhecimento, entenda também o quanto essa pessoa recebeu para executar a tarefa. Nós estamos falando de PRATICAR o antirracismo. Tirar do discurso cheio de palavreado bonito e transformar em mudanças sociais efetivas. E você definitivamente não faz isso com uma postura que indica a sua mão de obra como mais importante e mais merecedora de remuneração do que a da pessoa negra que você convida para lucrar em cima do trabalho dela.
Uma semana atrás, participei de uma formação oferecida pela Izabel Accioly. Uma mulher negra, pesquisadora e intelectual incrível com falas impactantes sobre a vida do povo preto. E uma delas me laçou. Ela disse: “eu só fecho com branco que topa sangrar comigo.”
Se você, branco, não está disposto a sangrar no básico, no reconhecimento de que eu, a pessoa que você procura para respaldar o seu trabalho ou para colaborar com uma mudança no seu ambiente corporativo, se você não vai me enxergar na mais elementar das relações de trabalho e não vai me remunerar por isso, olha, eu lamento, mas a resposta para o seu convite será o meu mais sincero “não.”
Aprendi desde cedo que só faço compras se tenho dinheiro. Se você pretende fazer campanhas antirracistas, cursos antirracistas, palestras antirracistas ou qualquer coisa antirracista com profissionais negros, tenha a decência de reservar para eles o mesmo recurso que reservaria para outras mobilizações. Priorize o que precisa ser priorizado. Se não há verba agora, arregimente esforços internos e consiga-a antes de procurar esses profissionais. Lembre: eles são PROFISSIONAIS!
Contar com a benevolência do nosso voluntariado para algo que vai gerar lucro para você ou para a sua empresa é deselegante e desrespeitoso. Se você tem vontade de viver num mundo melhor, como tanto prega, comece você, então, construindo essa realidade. Nós somos profissionais e merecemos ser pagos por isso.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.