O que aconteceu (e você vai ler a seguir) não foi uma entrevista. Parecia que aqueles quatro corpos negros, cada um com suas particularidades e histórias e dores e alegrias, todos eles já se conheciam – muito embora não. Ancestralidade. Adriana que encontrou Marliete que encontrou Louise que encontrou Bruno. E a gente sentou ao redor da mesa de madeira no pátio da sede do PSol em Fortaleza, sob um teto colorido e um dia escaldante, para um encontro. Foi isso. O que aconteceu foi uma conversa. Sobre a vida, sonhos, flores, amores e blá blá blá, tal qual diria Rita Lee. Faltou só a cerveja. Um acinte, a considerar a proximidade geográfica com os bares da vida boêmia do Benfica/Gentilândia.
Ah, e falamos sobre política também. Sobre um certo mandato coletivo eleito no Ceará no último domingo (15/11). Ou melhor: mandata. Porque se é pra demarcar território político, que seja logo pelas linguagens, onde primeiramente nascemos nos afetos alheios. A candidatura Nossa Cara arregimentou 9.824 votos já na primeira tentativa de eleger-se à Câmara Municipal. Venceu com três mulheres negras afirmando-se pretas numa cidade que se agarra ao racismo há séculos e nega em toda oportunidade a existência do povo negro. Do nosso povo. Da gente. Da nossa cara.
Elas bateram muita gente que está lá há muito tempo. Até candidato apadrinhado por ex-prefeita famosa em periferia, a área do trio-mandata, teve desempenho (bem) mais tímido. Adriana, Louise e Marliete (que, na verdade, é Lila) conseguiram o feito de estrearem na política como a 13ª candidatura mais votada. De 43 eleitos. Sim, isso é muita coisa. É muito simbólico.
E foi em meio a uma agenda corrida de compromissos e entrevistas a jornais e emissoras de televisão que as meninas receberam o Ceará Criolo. Foram 90 minutos de um resgate histórico da própria vida, de críticas diretas, sem melindres, ao cenário político atual, de muito chororô e muita gargalhada. Mas o mais importante: de sonhos traçados pra um futuro de prazo bem curto. Elas têm um bocado a caminhar pelos próximos quatro anos. E prometem fazer isso muito bem acompanhadas. Com as bênçãos de quem já descansa. Respaldadas pelas periferias de onde vieram e onde ainda são parte. “A gente vai chegar de bonde”, é o que dizem.
Premaremo-nos.
CEARÁ CRIOLO: Antes de qualquer coisa, eu queria saber como vocês estão se sentindo. Já caiu a ficha? Vocês já se deram conta de que são o primeiro mandato coletivo do Ceará? Qual sentimento atravessa vocês nesse momento?
ADRIANA GERÔNIMO: A gente ainda não conseguiu dimensionar. A ficha não caiu toda. Ela está caindo aos poucos, quando a gente tem momentos como esse: pra falar que deu certo. Mas a gente está muito grata. Porque a gente não chegou aqui sozinha. É coletivo porque é coletivo mesmo. E é pra além de nós três. São 9.824 pessoas. As pessoas veem essas três caras, mas foi uma multidão que construiu a gente. Nós não estivemos sozinhas em nenhum momento. Nos momentos mais difíceis até, a gente estava juntas. Isso amenizou muita coisa. Foi um negócio muito leve, muito tranquilo. A campanha em si e entre nós.
LOUISE SANTANA: A gente era um quilombo entre a gente.
ADRIANA: Até as nossas divergências a gente conseguiu superá-las com muita tranquilidade e elas se tornaram uma construção ainda mais potente. O que toma conta do nosso coração é a emoção, porque nós somos muito emotivas, e a gratidão. Porque a gente está saindo muito forte desse ciclo que foi encerrado pra começar esse novo.
CEARÁ CRIOLO: Muito embora tenha toda essa euforia e muitas pessoas tenham ficado surpresas com a eleição de vocês, esse projeto não começou para a eleição. Não foi um “vamo juntar aqui três mulheres diferentes e ver se dá certo”. Como tudo isso foi construído?
LOUISE: Eu acho que tudo começou nos nossos encontros. Eu acho que a gente inaugura um novo momento na política. E isso é muito bom. Mas também é muita responsabilidade. A gente precisa estar de olhos bem abertos. Atentas. No domingo, eu não consegui nem comemorar direito porque fiquei pensando: “meu Deus, e agora? Como a gente vai fazer tudo isso?”. Essa construção, que é coletiva, também é muito das ruas. A gente não se encontrou pra fazer isso. A gente já se encontrava antes. A gente já dividiu microfone saindo do terminal do Lagoa pra ir pra Casa da Mulher Brasileira; a gente se encontrou fazendo o 8 de março de 2019, que foi super complexo pras mulheres negras; a gente se encontrou fazendo marchas nas periferias… Então, essa unidade da gente não surgiu para a eleição. Eu acho que isso tornou o processo mais forte. Mas houve também um processo consciente de preparar esse terreno. As meninas foram pro “Ocupa Política”, uma rede que discute a ocupação da política por corpos como os nossos, e voltaram com essa ideia de fazermos esse processo coletivo pra 2022. Mas os movimentos pautaram. Disseram que era urgente porque o Bolsonaro tinha sido eleito há pouco tempo e o bolsonarismo ia se enraizar… Eu já tinha estado candidata outras duas vezes, sozinha, e não estava disposta a passar por outro processo. Eu estava bem maltratada, porque a estrutura institucional é muito enrijecida. É um trator. Aí eu disse pras meninas: “não sei se quero não”. Mas elas me convenceram. Fomos conversando e outras alianças também foram construídas…
CEARÁ CRIOLO: Dentro do partido isso foi ponto pacífico? A candidatura de vocês foi abraçada pelo partido já de imediato? Vocês receberam apoio, inclusive do ponto de vista financeiro, da mesma maneira que outras candidaturas já conhecidas, por exemplo?
LOUISE: Não.
ADRIANA: Não houve objeção à nossa candidatura em nenhum momento. A candidatura, desde o início, ela foi muito abraçada. E é bom situar qual é o nosso contexto no partido. Louise é filiada desde 2012 ao PSol. Eu me filiei em outubro do ano passado, de forma coletiva, com outras companheiras. A gente fez uma carta de filiação explicando que a gente estava ocupando o partido, que a gente queria construir um processo que fosse nosso e que a gente não ia participar de nenhuma construção que não fosse por nós. E Lila não é filiada ao PSol nem a nenhum outro partido político. Por opção dela. A gente foi muito abraçada, porque nós três temos um acúmulo de militância que é muito respeitado na cidade. Então, essa junção realmente é um respaldo imenso. E, pra além de nós três, a primeira construção era também de muito respaldo. Nós tínhamos uma construção inicial de cinco mulheres. Algo que acabou se tornando nós três porque pra vida bater na porta pras mulheres negras ocuparem um partido e colocarem seu nome à disposição, a gente tem que abrir mão de muita coisa, né? Então, a candidatura é acolhida, mas como o cenário político no Brasil não é para candidaturas negras, a gente enfrentou um reflexo que é de sociedade dentro do partido. Mas que o setorial de negritude, que encampa essa luta há muitos anos, já tinha conseguido garantias pra nós antes da decisão do STF.
CEARÁ CRIOLO: Só pra evidenciar, você fala da decisão sobre a paridade na distribuição de recursos entre candidaturas negras e brancas…
ADRIANA: Não era nem paridade. Era um valor adicional pra candidaturas negras. Era uma decisão interna que já dialogava com a decisão do STF. Então, o setorial de negritude consegue essa garantia. A gente parte primeiro com R$ 16 mil. Um valor que, se você colocar no papel, não dava nem pra fazer material na gráfica.
LOUISE: A gente saiu com esse valor pensando em pedir ajuda às pessoas que teriam candidaturas prioritárias, que eram pessoas brancas, pra botar os nossos adesivos na impressão deles. Pra gente ir na sobra e ter mais visibilidade. Mas o setorial conseguiu amarrar nacionalmente que sobre todo valor pra pessoa negra fosse acrescentado de 50%. Aí, internamente, nós temos uma cota pra mulheres de 30%. E tinha cota pra pessoas LGBTs também. Cada marcador era um adicional. Dentro do partido, já funciona assim porque os setoriais já entendem que a análise é feita a partir da viabilidade. E a viabilidade, historicamente, se você for perguntar a qualquer pessoa, vão dizer que a gente num era nem pra estar vivo, né? Nós, pessoas negras. Então, a gente já foi amarrando isso pra não ter tantas discrepâncias. A gente inicia com R$ 16 mil. Quando todos esses marcadores são botados em cima do que íamos receber, o valor salta pra R$ 32. E aí seria o que a gente ia ter pra fazer a campanha.
ADRIANA: Mas aí Anielle Franco chama o STF pra conversa e amarra eles, né? Porque todos os partidos de direita, de centrão e uns de esquerda foram contra cumprir a decisão do STF esse ano. Queriam cumprir daqui a dois anos, que era pra tentar forjar quadros negros. Porque eles não iam construir quadros negros, né?
CEARÁ CRIOLO: E, ainda assim, conseguiram forjar muita coisa, né? Pra esse ano, muita coisa foi amarrada de uma maneira que a gente não entendeu muito bem…
ADRIANA: Gente branca que virou parda da noite pro dia foi só o que a gente viu. E é importantíssimo que a gente faça esse marco histórico.
CEARÁ CRIOLO: A gente publicou uma reportagem no Ceará Criolo que denunciava candidatos à Prefeitura que mudaram de etnia repentinamente. Teve candidato branco que virou pardo, pardo que virou preto, preto que virou branco…
LOUISE: Como a gente sabe o nível de escolaridade que cada um alcançou, você sabe que [fazem isso] não é por falta de conhecimento…
LILA: Isso daí vem acontecendo desde a nossa conquista das cotas na universidade. Tem muita gente que faz isso; tenta forjar mesmo. E isso é doido porque a cota é muito colocada como se quem entra por cota fosse um pobre coitado. E não é. É muito importante que a gente reivindique isso enquanto uma reparação. Uma reparação histórica. Não é por acaso que a gente está disputando isso. A gente está disputando isso porque historicamente a gente não ocupa. E não ocupa porque não nos é dada a condição. Na política, dentro da coisa do sentir, a ficha ainda tá caindo pra mim [da eleição]. E é muito pensando nisso. Porque historicamente a gente é desacreditada por nós mesmas. E a coisa que mais tá me deixando flutuando é isso: mermão, cada pessoa que a gente conversou, mermão, confiou e votou, sabe? A gente provou que é possível fazer a mudança de nós por nós, tá ligado? De nós pra nós. A gente fazendo. E consciente. Porque muita gente já diz: “esses preto aí tá tudo querendo ser rico?”. Mermão, a gente nem quer isso tudo, tá ligado? A gente quer viver bem…
CEARÁ CRIOLO: Mas mesmo que quisesse, qual o problema? A riqueza não é uma exclusividade da branquitude. Você pode querer ser rica sim. Qual o problema?
LILA: Mas a riqueza pra mim está longe dessa coisa do capital. Isso pra mim explode dentro do racismo internalizado. Porque eu não consigo me aceitar quando, pra ser aceita, eu tenho que ser isso. Como a gente pode reconhecer as nossas riquezas dentro da periferia? Pra além do dinheiro. Tô falando de cultura, de trocar ideia…Mesmo sem nenhum centavo. É sobre mesmo a gente sendo liso como a gente consegue sobreviver a partir dessa comunhão, dessa harmonia. Tem uma história que pra mim é muito marcante. Logo quando comecei a morar sozinha e voltei a morar na Verdes Mares, eu passava o dia trabalhando. Teve uma noite que eu cheguei e minha água tava cortada. Eu nem percebi. Quando cheguei no banheiro, vi uma mangueira. Quando abri a torneira, não tinha água. Aí, de repente, eu só escuto a vizinha: “ei, Marliete! Cortaram a tua água aí, viu? Mas ó…se precisar, só avisa que eu ligo aqui. Já coloquei a mangueira praí”. São coisas que você não encontra num apartamento na Aldeota, por exemplo. Isso é uma riqueza. Eu cresci com meu pai dizendo que não tinha estudo. E hoje poder dizer pra ele que eu sou porque ele foi é uma coisa muito forte. Porque ele conversou comigo. Porque ele construiu comigo. O momento que eu achei que meus pais não estavam comigo, na verdade, foi o momento que eles mais estiveram. É o homem com quem eu converso sobre as violências policiais que eu sofro. Ele trabalhou muito. Ele é muito sábio, é muito rico. E a gente tem que resgatar isso porque isso mexe muito com a estima da população negra…
CEARÁ CRIOLO: Uma característica muito marcante de pessoas negras é isso da estima. Da autossabotagem, porque a gente não se acha muitas vezes capaz. A gente fica sempre sofrendo da síndrome do impostor. Em que momento da vida vocês imaginaram que estariam eleitas?
LILA: Em nenhum momento. Nem durante o processo da campanha. Porque é aquela coisa dos marcadores mesmo. A gente não é só pessoas negras. Somos pessoas gordas, somos pessoas sapatão… Eu achava muito bonito quando a Louise dizia “eu sou candidata”. Eu demorei pra conseguir me apresentar dessa forma por medo da rejeição das pessoas. É uma coisa que me paralisava, sabe? Como é conseguir fazer isso a partir também do olhar da pessoa, porque o que nos paralisa tem a ver com o olhar do outro. Mas o que nos movimenta também tem a ver com esse olhar. Uma pessoa que diz que uma mulher negra é macaca e não é capaz de fazer política, ela nos paralisa. Mas as pessoas que olham pra gente sorrindo, com o olho brilhando e dizendo que vai cobrar da gente, isso nos movimenta. Dentro dos desafios que tivemos nesse processo de rua, os ataques não foram nada. Nada. Nada se compara à positividade, a estar junto. Você olhar e se ver na pessoa com quem você está falando e a pessoa se ver em você independente do meu medo. Porque eu não sou só uma sapatão. Eu sou um corpo que se relaciona com outra mulher e eu sou socialmente cobrada por isso. Então, poder arregaçar meu corpo e ir com ele é muito bom. Quando eu não penso na possibilidade de ser eleita, isso tem muito a ver com esse racismo mesmo. Tanto interno quanto externo.
LOUISE: A gente tinha muitos sonhos. Eu estive candidata outras duas vezes, mas nunca acreditei. Tanto que não estava disposta a ser novamente. Porque é muito cansativo e sofrido também. Eu sempre dizia que eu queria muito a Lila cantando um jingle pra nossa campanha. Agora, nesse processo, eu disse pra ela: “nós tamo cantando juntas um jingle nossa, bicha”. Então, pra nós, foi um processo muito bom. Mas eu, que tenho mais tempo nesse meio institucional, estava muito ferida. Estraçalhada mesmo, sabe? Mas ter vivido isso com as meninas foi um processo de cura. Acabou que pra mim foi muito bom, porque em 2019 algumas pessoas companheiras, pessoas negras, chamaram minha atenção sobre eu apoiar a branquitude, sobre eu não sair de certas áreas… Isso me corrigiu, entendeu? Eu fui procurar a Rede de Mulheres Negras, pra tentar aprender, pra tentar me organizar, me desvincular internamente no partido de alguns espaços que eram agressivos e eram racistas pra poder processar isso. Porque eu sofri muita violência dentro de casa também. Então, viver esse processo junto com as meninas foi uma parada louca. Tanto que não quero mais nem pensar nas dores que já foram. Temos aí muitas possibilidades pra fazer. Eu ainda estou sem acreditar. No domingo, eu achava que estava sonhando.
CEARÁ CRIOLO: Qual cenário vocês acham que vão encontrar na Câmara? A gente tem já definida uma composição majoritariamente centro-direita, mas também temos uma quantidade considerável de extrema-direita. E vocês ficam num lugar de sufocamento, por se colocarem como esquerda…
ADRIANA: Nas incidências que a gente faz nos nossos movimentos, esse lugar já era um lugar que a gente circulava. Nas audiências públicas, nas incidências pro orçamento… Então, esse lugar nunca foi um lugar tranquilo pra nós. Desde a recepção. A Lila sempre fala que não dá pra sair de casa e deixar o corpo em casa. Então, a gente imagina que vai ser uma disputa muito dura. E vai, como na campanha, ser uma disputa muito desleal. Porque essas duas grandes bancadas espalham muitas mentiras. Principalmente essa da extrema direita é a bancada da fake news. Na cara, na lata. Mas a gente tem muita disposição, tem muita coragem e também é muito programática. A gente tá muito segura porque não somos só nós três. Nas incidências mais pesadas, a gente vai promover muita articulação pra ocupar aquela casa. Articulação popular. A gente quer nos momentos mais difíceis, mais arriscados, entrar lá de bonde mesmo. A gente quer ser como as nossas ancestrais: vamos estar lá infiltradas pra poder trazer as nossas pras disputas mais difíceis que a gente vai precisar travar. Mas a gente também não tem disposição pra fazer o jogo deles, que é o jogo da briga, o jogo de incitar a gente a brigar, incitando a gente a dar uma de barraqueira e louca, que é como eles nos veem. Eu tive um momento de dividir uma mesa com a Larissa Gaspar (vereadora reeleita pelo PT). E ela contava que a Priscila Costa (vereadora reeleita pelo PSC), que se diz negra e recebeu mais de R$ 200 mil de financiamento porque está como parda, ficava esperando na porta do gabinete dela esperando as TVs saírem pra dizer “agora venham entrevistar a morena”. Que fechava o elevador na cara dela. E olhe que a Larissa é uma mulher branca! Então, o que essa Priscila Costa vai querer fazer com a gente não tá nem na história ainda. Ela vai querer diminuir a gente de todo jeito. A gente não tem disposição pra comer o que eles querem que a gente coma. A gente não vai ceder a essa provocação deles, que, inclusive, já começou. Nas redes, só o que tem é print circulando por aí, eles acusam a gente de receber muito fundo eleitoral por conta da decisão do STF. E ainda debocham dizendo que somos do PSol. E a gente sabe que só vem sobre nós porque somos mulheres negras. Não viria pra nenhum outro corpo como o da Priscila, que recebeu mais de R$ 200 mil e não tem nenhum print circulando sobre a vida dela. A gente tem muita disposição. E muita programação pra incidência política. A gente está pra viver a revisão do Plano Diretor, que é uma luta histórica dos movimentos que a gente compõe. E que a gente vai poder fazer, inclusive, com o Gabriel Biologia, que é uma pessoa muito privilegiada e vai estar fazendo o que a gente não pode fazer, que é tocar esse barco de frente. Se ele tem disposição pra ser antirracista, ele vai tocar essa luta de peito aberto, pra que a gente receba só o que a gente consegue receber. A gente está numa expectativa imensa pra poder descentralizar o orçamento da cidade, que ficou mais de 16 anos localizado na Regional II, que é a mais rica da cidade. A gente quer trazer esse orçamento pra Regional V, pra Regional VI, que é onde o nosso povo morre mais, onde não se tem cultura, onde não se tem vaga na creche… A gente vai pautar isso com muita disposição.
CEARÁ CRIOLO: O Psol já anunciou apoio ao Sarto no segundo turno. E o Sarto representa uma gestão marcada pela prioridade às políticas públicas nas áreas de maior IDH de Fortaleza, que é o oposto do que vocês defendem. Vocês vão apoiar o Sarto?
ADRIANA: Nós estamos situadas num lote da cidade e nós temos uma cor que é alvo do genocídio. E quem representa esse genocídio atualmente no país é o bolsonarismo. Eles assumem isso. Eles não têm máscara. E aqui em Fortaleza a gente tem um ex-policial militar que liderou um motim e que apoiou os policiais da chacina do Curió, a maior do Ceará. Então, nesse momento, a gente decidiu lutar contra o bolsonarismo. A gente não vai fazer campanha pro Sarto. São duas coisas diferentes. A gente vai fazer campanha contra esse policial, que representa o que a gente mais teme na periferia. No início da campanha, eu e meu marido íamos sendo presos. Eu fui acusada, junto com o meu marido, de ser traficante e vagabunda. E policiais já ameaçaram um sobrinho do meu marido de morte numa ação na Cidade de Deus, que é uma favela dentro do Lagamar. O Capitão Wagner representa isso: a vontade da morte. Na cabeça deles, a periferia só tem bandido. E foi na minha comunidade que ele entrou de colete à prova de balas. É isso o que ele representa. E é a isso que a gente não pode ceder. Nesse momento, a gente vai ter que ter uma posição. A gente não pode ficar em cima do muro porque o que o Capitão representa é tão pior do que o Sarto representa. A gente vai ter que escolher pelo menos pior.
LOUISE: Mas é preciso que fique dito desde já que, caso o Sarto vença, dentro da Casa [Câmara Municipal] a situação será outra. Nós seremos oposição com certeza. Até porque nós sabemos que essa política do Capitão já é implementada através das torres de segurança, do esvaziamento da cultura popular, do não financiamento dos espaços de cultura nas quebradas, da Polícia que fecha as atividades das juventudes nas praças… Mas a gente precisa conseguir ter a possibilidade de discutir outras estratégias pra isso. E, com o Capitão, a gente não vai ter nem essa possibilidade. Afora o enraizamento das milícias dentro da política na maior cadeira de Fortaleza. Estamos vivendo um processo no qual a política do nosso país está toda miliciarizada.
CEARÁ CRIOLO: Tem muita gente curiosa sobre como vai funcionar a mandata de vocês. Como vai ser? Cada uma vai um dia da semana? Cada uma vai ter um salário de vereadora? Cada uma vai ter um gabinete? Como vai funcionar? A Câmara já sinalizou como deve ser? Porque é uma coisa nova pra todo mundo…
LILA: A Adriana dá o CPF dela, por uma questão de formalidade. Nós vamos respeitar o Regimento Interno da Casa, claro. Mas a gente quer mexer nisso também, pra possibilitar outras candidaturas coletivas. Do nosso funcionamento, algumas coisas mais burocráticas, que exigem essa coisa do CPF, a Adriana vai estar mais à frente. Mas a gente vai estar dividindo tudo todos os dias.
CEARÁ CRIOLO: Tá, mas do ponto de vista prático: as três vão estar no gabinete?
LILA: Sim. Porque uma das perspectivas nossas mais forte é retomar a participação popular. E a gente acredita que estando as três a gente pode se dividir melhor nos rolês. E o gabinete é um só. A gente ocupa uma cadeira. É um gabinete, é um salário de vereadora… A gente vai dividir tudo. A tribuna, só a Adriana pode ocupar. Mas a gente tem estratégias de como atuar. Estamos planejando a partir de vivências que já existem. Queremos sair desse formato de hierarquização. Estamos buscando circularizar cada vez mais. Um formato de atuação e de divisão de trabalho. Não só nós três, mas a equipe. Queremos horizontalizar ao máximo.
ADRIANA: E a gente tem muitas estratégias. Muita criatividade, inspirada em colegas que já foram eleitas. Na Bancada Ativista [mandata de São Paulo], elas não conseguiram alterar o Regimento da Casa e só a Mônica consegue subir na tribuna. Então, o que ela faz? Ela exibe um vídeo da co-deputada falando. Ela não está fisicamente, mas está falando na tribuna. Essa é uma estratégia pra Louise e Lila conseguirem subir lá [já que pelo Regimento só Adriana pode]. Já as Juntas, em Pernambuco, elas já conseguem dividir em alguns momentos a tribuna. Porque elas hackearam o sistema. Elas viraram amigas da galera, da segurança, do RH. Elas conseguiram ser tanto a cara do povo que os trabalhadores da Assembleia fazem tudo por elas. A gente quer também mostrar que é possível tanto alterando o Regimento em algumas possibilidades, ampliando horizontes, dando uma maquiagem em algumas coisas que podem fazer sentido pra futuras candidaturas coletivas… A parte burocrática é comigo. Mas Louise e Lila podem, por exemplo, presidir audiências públicas, podem participar de comissões… A gente vai se distribuir na Casa com muita tranquilidade. E, se eles botarem banca, eu vou ficar lá sentada sem dizer nada e elas duas que vão falar. Porque a gente tem as nossas formas também de violar o sistema, de desobediência civil. Mas o que o pessoal tem mais de dúvida é sobre o salário. Existe um salário maior, da vereadora registrada. Lila e Louise vão ser registradas como assessoras, porque elas não podem não ter vínculo. Nós vamos equiparar os nossos salários e com a sobra do salário da vereadora registrada nós vamos criar um fundo. Esse fundo vai pra um edital pra fortalecer as atividades socioculturais nas periferias.
CEARÁ CRIOLO: Estamos falando de quanto?
ADRIANA: Cada uma de nós vai receber R$ 8 mil. E toda a sobra vai pra esse fundo coletivo.
LOUISE: A gente já começa com edital no ano que vem. Vamos apoiar 21 projetos. Cada um vai receber R$ 3 mil. E o segundo edital vai ser de dois anos. Pode ser que aumente o valor ou o número de projetos. A gente quer fazer a discussão de como o nosso mandato pode ser uma porta pra outros mandatos coletivos. Porque a gente entende que nosso trabalho não pode se restringir àquele espaço. Nosso jogo é o de descer pras nossas comunidades. Porque a Câmara é muito longe das nossas comunidades. E isso não é à toa, né?
CEARÁ CRIOLO: Eu estou diante de uma professora, uma artista e uma assistente social. Vocês me disseram agora que cada uma vai receber R$ 8 mil todo mês pelos próximos quatro anos. Quando foi que vocês tiveram um salário desse?
LOUISE: Nunca. Eu não sei nem como vou gastar esse dinheiro. (risos)
ADRIANA: Eu tô é desempregada. (risos)
LILA: O máximo que eu já recebi na minha vida foi R$ 4 mil. (risos)
CEARÁ CRIOLO: A gente tá aqui, rindo, mas isso é muito sintomático. Vocês representam uma parcela da classe trabalhadora que ganha menos. E vocês, proporcionalmente, vão ganhar menos do que um vereador de mandato individual. Pra vocês, isso escancara o quê?
LOUISE: Que só nós estamos dispostas a fazer isso. Porque dá perfeitamente pra viver com o que a gente está disposta a receber. A gente falava pro pessoal isso e o pessoal dizia: “mas minha filha, vocês nunca ganharam isso na vida e, quando vão ganhar, vão abrir mão, é?”. A gente morria de rir. Aí é que diziam pra gente não entregar.
ADRIANA: Mas isso é uma postura política mesmo. Quando a gente pensava a Nossa Cara, e essa é uma inspiração das Muitas e das Juntas, que fazem isso em Minas e em Pernambuco. Porque isso é o que mais afasta os políticos do povo: eles são ricos e nós somos pobres ou extremamente pobres. E a gente quer mostrar que dá pra não ser assim. A gente sabe que isso não vai causar constrangimento neles. Porque eles nunca vão abrir mão dos salários nem vão se sentir envergonhados porque a gente está abrindo mão. Mas isso vai chocar pessoas comuns, como nós. A gente vai mostrar que a gente não está entrando lá pra enriquecer nem tem vontade de receber um salário milionário. A gente está entrando lá porque a gente tem disposição pra trabalhar. É óbvio que a gente quer ser pago honestamente. Mas mesmo assim a gente não vai obedecer à lógica deles, que é a dos acúmulos. A gente não quer acumular. A gente quer partilhar. A gente quer compartilhar. E com pessoas como nós, que nunca recebem nada e sempre estão perdendo. Mulheres como nós vivem de Bolsa Família. Como você sustenta uma casa com um Bolsa Família? Não pode trabalhar porque não arranja creche pro filho. Não pode sair de um relacionamento abusivo porque não tem como se sustentar e manter o filho. É muito cruel. A gente vai também fazer um programa de aceleração de mulheres negras pra política. A gente quer, daqui a dois anos, já ter bem mais candidaturas como a nossa…
CEARÁ CRIOLO: A gente teve aprovado esse ano aprovado na Câmara o Estatuto Municipal da Igualdade Racial, que chega com dez anos de atraso. E quem vai implementar esse Estatuto é o próximo prefeito. Como vocês imaginam que essa discussão vai acontecer se o Sarto for o eleito, por exemplo, quando na campanha ele apresentou um plano de governo no qual a população negra sequer é citada?
LOUISE: É batalha. E eu acho que a gente precisa fazer com que essa batalha não seja só nossa. Uma crítica muito grande que os movimentos negros da nossa cidade têm aos espaços institucionais é a falta de diálogo. Os espaços institucionais acabam chamando muito os movimentos de negritude quando há uma ação específica, como o Dia da Consciência Negra, agora tem também o dia da morte da Marielle, que também se tornou simbólico, e quando há as atrocidades, uma chacina, isso é o que faz os movimentos negros serem convidados a ocupar o espaço institucional. E o que a gente tem conversado é que a nossa maior arma, dada a nós pelas nossas ancestrais, é o diálogo. É a circularidade. É a relação de olhar no olho. Eu acho que essa é uma estratégia muito importante pra que o Estatuto realmente seja implementado, assim como a Lei nº 10.639, que é urgente. A gente vai ter agora uma revisão de todo o Plano Nacional do Livro pra 2021. Estamos em processo de transformação do processo educacional de Fortaleza. Eu estou na rede pública e a gente já está discutindo os documentos. E o documento tem previsão pra comportar a diversidade da nossa cidade. Só que é isso: como a gente faz com que se implemente? Porque o papel aceita tudo. Então, a gente precisa descer essas questões para os movimentos, escutar os movimentos, saber como eles podem nos ajudar. Se os espaços institucionais compreenderem isso, nós vamos conseguir transformar o que é só papel em prática cotidiana. Quatro anos não dá pra mudar o mundo todo. Mas as nossas ações, e a maneira como vamos conduzir, podem começar a construção de um alicerce pra que outras transformações possam acontecer. A gente tem que ter muito pé no chão. Não dá pra sair prometendo tudo a todo mundo. Porque a gente sabe que teremos embates lá também. A gente não está entrando naquele lugar pra virar mártir. A quer que nossa companheira esteja aqui, conosco, viva. Ela tem duas meninas pra cuidar, a Lila tem dois meninos na responsabilidade dela, eu tenho meus pais… A gente não quer que aconteça nada com ninguém. E não queremos começar travando os diálogos. A gente quer usar a bênção da nossa oralidade e a possibilidade da escuta pra conseguir fazer com que os processos circulem. Mas, de novo, a gente diz: não dá pra ser só nós. Se for só nós, a gente não consegue.
ADRIANA: E outra: é óbvio que pautas como essa vão ter um horizonte indicado pra nós. E a gente vai ter muita disposição de fazer a defesa. Mas tem coisas que antecedem as produções de leis, como a composição dessa mandata, por exemplo. A gente quer ocupar a Câmara com corpos que nunca estiveram lá. E que não vão ser só esses três corpos aqui. Nossa equipe vai ter uma pequena cota branca que se dispôs e nos ajudou. Nossa equipe vai ser de maioria negra e LGBT, inclusive de corpos trans. Porque foram corpos trans que construíram a nossa comunicação de uma maneira tão incrível. Não teve uma campanha tão linda como a nossa! A gente ocupar esse lugar assim já determina como a gente vai travar lutas que são históricas. Porque se a gente não travar, nenhum outro mandato vai travar. Quando eles forjarem a nossa derrota, a gente tem muita esperança e muita disposição pra trazer o povo pra ocupar a Câmara. E essa vai ser a nossa maior vantagem. Quando a gente pedia voto, a gente dizia que queria o voto mas queria também a disposição pra construir junto da gente. Então, quem nos elegeu, elegeu sabendo que a gente queria todo mundo com a gente. Se for preciso, a gente ocupa e faz até greve de fome. A gente vai fazer a luta das nossas ancestrais. Vamo ocupar! Esse sonho é um sonho coletivo.
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ELAS POR ELAS.
O Ceará Criolo pediu pras próprias meninas do Nossa Cara descreverem quem são. Todas as informações aqui, portanto, são ditas por elas mesmas. Todos os termos, inclusive os coloquiais e de autoidentificação sobre algum marcador social.
Mulher, preta, periférica, bissexual, cristã, evangélica, filha de pastor, professora e estudante de Direito da UFC. Minha família paterna foi uma das primeiras famílias circenses a entrar aqui no Ceará. Uma mulher que sonha, que quer uma cidade melhor pras crianças. É professora da periferia. Perdeu muitos amigos pra política genocida da cidade. Uma mulher de sonhos. Curiosa e atrevida. Ariana. Sempre quis estar em espaços institucionais. Tem 30 anos. É cria do Novo Mondubim, perto do Parque Jerusalém, ali antes da ponte de madeira.
Tem 30 anos. É nascida e criada no Lagamar, onde ainda mora e de onde não quer sair porque a construção da identidade se deu lá. É filha da dona Fátima e do seu Gerônimo. De um carpinteiro e de uma cozinheira. É a primeira pessoa da família que se formou na universidade. Cresceu vendo o pai madrugando pra conseguir vaga na escola e dizendo que era a educação que salvaria a todos. Cresceu com a casa alagando todo ano, recebendo roupa da Defesa Civil e doação de cesta básica. Teve uma infância de fome. Passou a comer depois que o Lula foi eleito. É assistente social. Trabalhou em ONGs e milita no direito à cidade, com o berço de militância sendo a moradia. É também catequista depois de ser uma criança nascida e criada na Igreja Católica. Casada. Mãe de duas filhas: a Lolita, de 11 anos, e Dandara, de quatro anos.
Tem 33 anos. É escorpiana, sapatão e periférica. Sempre foi uma menina muito inquieta. Era nerd e sempre quis ser da galera. Sempre gostou muito de estudar, ler e brincar sozinha. Jogou bola desde cedo. Foi uma criança cujos pais lutaram muito. Filha de um garçom/churrasqueiro e de uma trabalhadora doméstica. É nascida e criada no Beco da Galinha, na favela Verdes Mares. Sempre teve muita “coisa de ler” em casa e foi muito inquieta. Teve nos livros um dos primeiros brinquedos. Foi transformada pelo rap. É MC e compositora. Aos 14 anos, “eu já era eu”. Chegou a ser privada de liberdade. Atuou em ONGs e como educadora social na Funci, promovendo oficinas de rap. Aos poucos, descobriu como viver bem no próprio corpo.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.