Olhe para essa foto. Os homens mais importantes do Brasil estão nela. Agora me diga quantos negros você enxerga. Isso mesmo. São homens brancos e ricos decidindo como e com quanto a maioria pobre e preta deve viver (e, neste caso específico, morrer).
É muito sintomático a cúpula políticoeconômica de um país de dimensões continentais como o nosso ser toda, integralmente, não-negra. Mais sintomático ainda é o Brasil com mais de 200 milhões de pessoas, 65% dessa população se autodeclara negra e nenhum representante dessa etnia participa do debate mais importante da década.
Nós, o povo que mais será impactado pela reforma da previdência, não fomos ouvidos no processo de elaboração da mensagem enviada pelo Governo Federal ao Congresso Nacional. Uma matéria que aumenta o tempo de contribuição, reduz benefícios e impacta diretamente na qualidade de vida de todo ser humano comum.
A gente, povo preto, já é a mão-de-obra mais precarizada. Já é o perfil de cidadão que mais trabalha para sobreviver. Já é a parcela social que menos tem acesso a algum tipo de serviço público. E agora está próximo de se tornar a maior parte dos que vão, num futuro próximo, literalmente, morrer de trabalhar.
E nenhum de nós foi consultado sobre isso.
Para além da falta de representatividade, o pior de tudo é saber que esse modelo de reforma é caduco e representou prejuízos sociais incalculáveis e avassaladores para as camadas mais pobres de outros países. Da América Latina, inclusive. No Chile, os casos de suicídio entre idosos aposentados aumentou em progressão geométrica depois das mudanças implementadas por lá.
Os velhos se matam por não terem como se sustentar. Se matam porque acreditam que morrer é melhor do que continuar numa vida sofrível, sem muitas vezes ter o que comer. E olhe que estamos falando de um país onde a maioria não é negra e a qualidade de vida é invejável.
Por aqui, boa parte dos velhos em situação de miséria vai passar a receber a fortuna (contém ironia) de R$ 400, caso a reforma de Bolsonaro seja aprovada. E quem são os miseráveis brasileiros? Sim, os pretos. Coincidência ou não (contém ironia), os pretos. Que estão nas favelas e outras comunidades pobres.
Quatrocentos reais. O que você, leitor do Ceará Criolo, consegue fazer com quatrocentos reais num país onde o gás de cozinha custa R$ 85? E onde a cesta básica – mesmo com uma queda de 1,54% – passa dos R$ 367? E onde muitas vezes uma caixa de remédio não fornecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou rotineiramente em falta nos postos vale R$ 130?
Ou o idoso, já miserável, come ou morre de um pico de pressão. Ou paga o aluguel ou morre de um infarto. Ou compra a cesta básica ou morre vítima de um acidente vascular cerebral hemorrágico. Ou troca o botijão ou morre insuficiência renal. Pagar por tudo e continuar vivo não dá. Não com a reforma da previdência do Bolsonaro. A conta não fecha.
Não que a atual situação, com esses mesmos idosos recebendo menos de um salário mínimo, seja maravilhosa. Estamos longe disso. Mas o que não dá é pra aceitar uma proposta que abocanha boa parte de uma renda já insuficiente. Os velhos miseráveis precisam de mais, não de menos. Por isso que são miseráveis.
Me incomoda não ter visto em momento algum dessa polêmica da previdência alguém denunciar a ausência de negros nesse debate. E olhe que essa foto ganhou proporções estratosféricas! A gente já banalizou tanto a invisibilização do povo negro que algo do tipo passa completamente batido. Mesmo sendo o nosso futuro na mão desses…senhores.
A participação de pretos não pode se restringir ao Congresso. Até porque a quantidade de parlamentares negros é pífia. Aumentou consideravelmente na última década e meia, é bem verdade. Mas nós ainda estamos longe de uma equiparação. Estamos a séculos de distância.
Enquanto isso, vamos continuar deixando o nosso futuro nas mãos justamente de quem o precariza? Sim, porque você tem alguma dúvida de que os bons homens da foto são justamente os empresários, fazendeiros, grandes latifundiários, grandes comerciantes e tudo o mais de exploradores que existe no Brasil?
Não seja ingênuo.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.