O Osso (ou Bastão) de Ishango, região do Lago do Eduardo, na fronteira entre a Uganda e a atual República Democrática do Congo, foi encontrado em 1960 pelo pesquisador belga Jean de Heinzelin de Bracourt e está no Instituto Real Belga de Ciências Naturais, em Bruxelas. Estima-se que ele date do período Paleolítico Superior, entre 20.000 e 18.000 anos a.C.
Há ainda o Osso de Lebombo, mais antigo, provavelmente de 35.000 anos a.C., descoberto numa caverna nos Montes Libombos, entre a África do Sul e Suazilândia. O osso, uma fíbula de babuíno, tem 7,7 centímetros com 29 entalhes e se assemelha aos bastões-calendário utilizados antigamente e ainda hoje por alguns clãs de bosquíamos da Namíbia. O Osso de Lebombo era usado pelos bosquíamos para calcular números e medir a passagem do tempo, os ciclos lunares e planejar do ciclo menstrual das mulheres, mas só o Osso de Ishango permitiu aos historiadores um estudo aprofundado da sua estrutura por ter nas suas marcações uma aritmética mais concreta.
A forma como os traços assimétricos, também talhados na fíbula de um babuíno, do Osso de Ishango são distribuídos no objeto estabelecem uma lógica matemática bastante parecida com as que conhecemos hoje como as operações de divisão e multiplicação. Por isso, o osso de Ishango pode ser comparado a uma calculadora.
A coluna central começa com 3 traços e depois duplica o seu número. O mesmo processo é repetido com o número 4, que se duplica a 8 traços, e depois o processo inverte-se com o número 10, que é dividido pela metade, resultando em 5 traços. O osso poderia ter sido usado, portanto, como uma ferramenta para resolver procedimentos matemáticos simples, já que esse sistema numérico sugere um indício de cálculos de multiplicação e divisão por 2, contrariando a hipótese de que a disposição dos números poderia ser puramente arbitrária.
Além disso, o número de traços de ambos os lados da coluna central poderia indicar uma maior capacidade de contagem. Tanto os números da coluna esquerda como os da direita são todos ímpares (9, 11, 13, 17, 19 e 21). Os números da coluna esquerda são todos os primos compreendidos entre 10 e 20 (que formam um primo quádruplo), enquanto os da coluna direita consistem em 10+1, 10-1, 20+1 e 20-1. Os números de cada uma destas colunas somam 60, e o somatório dos números da coluna central é 48. Ambos os resultados são múltiplos de 12, o que reforça a tese da compreensão da multiplicação e da divisão, ou de um calendário lunar, sendo 60 dois meses lunares e 48 um mês e meio.
O interessante de se pensar sobre esses objetos é imaginar que civilizações muito anteriores às que fazem parte do nosso conhecimento comum – visto que estão nos registros históricos mais convencionais – já vislumbravam essas possibilidades concretas de percepção e gerenciamento da vida cotidiana. O próprio Bastão de Ishango, por exemplo, surgiu 15 mil anos antes dos egípcios. Antes mesmo dos gregos e dos chineses.
Outra característica interessante dessa ferramenta é que para explicar os quatro traços grandes e os três traços pequenos do número 7 verifica-se que alguns povos utilizam gestos e palavras diferentes (dentro do mesmo povo) para expressar um mesmo número. Por exemplo: o número 7 poderia ser expresso por 5 e 2 ou 4 e 3, assim como o povo mbai (etnia nilo-saariana que vive na República Centro-Africana, no Chade e na Nigéria) dizem muta muta para o número 6 (ou seja, 3+3); o número 8 chama-se soso (4+4).
Em diversas línguas na África Oriental, o número 8 chama-se muname, correspondente a ne-na-ne (4+4). É possível que haja dois sistemas de numeração, simultaneamente, no Bastão de Ishango, pois no sistema baali (etnia do Alto Congo), 4 e 6 são os números de base. O papel do 10, base do sistema de numeração decimal, é desempenhado pelo 24 (4×6). Quando o 576 (24²) é obtido, uma nova palavra é inventada e a contagem recomeça do início. Os ndaaka (etnia do noroeste do Congo) misturam as bases 10 e 32: o 10 é conhecido como bokuboku; o 12 por bokuboku no bepi (10+2); o 32 é edi; o 64 é edibepi(32×2), entre outros.
O Osso de Ishango pode também nos ensinar que a matemática não só sempre esteve presente na experiência humana na Terra, mas se estabelece como um sistema de organização do conhecimento que interfere desde as atividades mais básicas de sobrevivência (como a caça e a pesca, por exemplo), até os processos altamente automatizados de produção que conhecemos hoje.
Essa pluralidade de codificações é interessante também pelo fato de corroborar com a diversidade cultural pertinente ao continente africano, que, por ser extremamente plural e abranger diversas etnias, traz outras possibilidades de comunicação e transmissão de conhecimento em função das diferentes práticas sociais. É sabido que alguns povos utilizam padrões geométricos presentes em determinadas vestimentas que comunicam ensinamentos filosóficos e espirituais ancestrais através da configuração das estampas, assim como as pinturas corporais indígenas têm significados específicos não só para cada ritual como também para cada tribo. Todo conhecimento é, portanto, etnorreferenciado na medida em que representa a vivência/experiência de cada povo dentro do seu território de aprendizado.
Por outro lado, pode-se refletir sobre como a colonização ainda apreende e submete parte dos saberes africanos a uma narrativa ambígua e enganosa, visto que um artefato dessa importância se encontre atualmente dentro um museu de Ciências Naturais, quando essa apropriação aconteceu dentro de um processo de dominação social e cultural absolutamente antinatural. Os povos originários brasileiros indígenas também passam por semelhante de desrespeito quando seus saberes ancestrais são questionados sob o critério capitalista de exploração dos recursos naturais, que os considera antiquados e ultrapassados.
Mas quem define o que é e o que não é natural?
Na Astrologia acadêmica, é Comunicação Social com ascendente em Publicidade em Propaganda. Lua em Design Gráfico (sol também). Trocadilhos à parte, busca refazer (desfazendo) os caminhos da diáspora negra através dos mares profundos dos afrossaberes.