Se você já teve estômago para acompanhar o trabalho da Câmara de Vereadores da sua cidade, da Assembleia Legislativa do seu estado ou da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, certamente já deve ter se deparado com um parlamentar dizendo a seguinte frase: “invocando a proteção de Deus, declaro aberta a presente sessão.”
Mas a qual Deus ele se refere? Faça o exercício de reparar no entorno. Sem muito esforço, você logo vai perceber que o tal Deus é o do cristianismo, ali personificado pelo filho, Jesus, branco, cabelos lisos e com traços europeus, crucificado quase sempre um pouco acima de onde fica a Mesa Diretora.
O Parlamento que criou nossa Constituição Federal, um documento que prega a igualdade e a laicidade, é o mesmo Parlamento que diariamente, sessão após sessão, ignora a premissa de o Estado brasileiro ser obrigado a adotar uma posição neutra no campo religioso.
Onde estão as divindades de outras crenças? Por qual motivo elas nunca são invocadas na abertura das sessões legislativas? Se há espaço para o Deus cristão, deve haver espaço para os demais. Para toda e qualquer fé.
Quando um Parlamento, seja ele nanico ou o mais importante do País, inicia o expediente citando publicamente um Deus que representa uma só religião, ele está dizendo ali que prefere o cristianismo. Que dita costumes conforme o cristianismo. Que é o cristianismo mais importante do que as demais crenças.
A fé de qualquer vereador, deputado ou senador não pode se sobrepor a nenhuma outra. Mesmo sendo o Brasil um país majoritariamente católico, há uma quantidade considerável de pessoas autodeclaradas crentes em coisas outras. Por isso, parlamento nenhum deve professar fé nenhuma.
O Jesus crucificado e a citação de Deus devem ficar da porta do gabinete do parlamentar pra dentro. Nunca em Plenário. Porque o que rege o país não é a Bíblia Sagrada. Nem livro religioso nenhum. O que nos ordena é a Constituição. Tão somente.
Ao contrário disso, já chegamos ao ponto de Câmara Municipal de cidade grande abrir sessão com vereadores de mãos dadas, rezando o Pai Nosso, e, logo em seguida, um trecho da Bíblia Sagrada ser lido. Porque não basta só o pedido inicial de invocar “a proteção de Deus.”
Nosso Parlamento está longe de ser laico.
Imagine todos esses símbolos cristãos trocados por orixás. A oração substituída por um culto de religião de matriz africana. A imagem de Xangô no lugar da imagem de Jesus crucificado. Seria um escândalo! Facilmente o Estado Laico seria invocado para acabar com tudo.
Como a fé em questão é a que culturalmente nos é empurrada goela abaixo desde a nossa concepção, então está tudo bem, né?
Não. Não está.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.