A despeito da carnavalização dos fios crespos, que em tempos como estes viram peruca na cabeça dos foliões, andam dizendo por aí que cabelo crespo “está na moda”. Muitas atrizes, influenciadoras digitais e personalidades vêm assumindo as madeixas encrespadas, atuando como agentes empoderadoras e que inspiram milhares de brasileir@s. As linhas de produto capilar para fios crespos cresceram como nunca no mercado; tutoriais, tratamentos, técnicas capilares pros cachos não faltam hoje em dia. Mas o que isso diz sobre nossa relação com o cabelo crespo? Estaríamos de fato livres das amarras do preconceito e empoderando jovens a se cachearem?
Não é preciso ser nenhum expert em cabelo para entender que os fios crespos podem crescer em qualquer um, independente de identificação étnica/racial. O que acontece, entretanto, é que esses inocentes fios crespos que brotam no couro cabeludo apesar da nossa vontade revelam uma longa (e repulsante) trajetória da pejorização (ou seja, do “tornar pejorativo”) da identidade negra no Brasil. Por ser tratada como inferior, a identidade negra (e todos os atributos físicos-corporais que a acompanham, como textura do cabelo, largura do nariz e da boca, cor da pele etc) foi detratada em todos os seus sentidos. As religiões foram demonizadas; suas vestimentas, ridicularizadas. O cabelo é motivo de piada. A largura do nariz é um fator de baixa autoestima. A cor de pele é, muitas vezes, um impeditivo de boas oportunidades. Não pense que é à toa o fato de termos como ideal de beleza e de sucesso pessoas de tez clara, cabelos lisos e traços que remetam a uma raiz europeia. Nada disso é por acaso.
É preciso deixar claro que os resquícios do período colonial escravocrata no Brasil, o qual teve majoritariamente a mão de obra negra africana, ainda ressoam em várias áreas da sociedade e do povo preto, não apenas econômica ou politicamente. Culturalmente (neste sentido, os aspectos estéticos e de gostos pessoais entram também), tudo o que remetesse à origem negra era rebaixado em detrimento da cultura eurocêntrica. Inclusive o cabelo.
“Mas peraí, Jéssica, o meu cabelo é crespo, mas eu não sou negra. E aí? Onde eu entro nesta história?”. Precisamos entender que as consequências da inferiorização da identidade negra e do racismo não resvalam apenas em nós, pret@s. Também precisa ficar claro pra nós que o racismo acontece não só quando alguém xinga um preto de “fedido” ou o confunde com um “vagabundo” (em outra oportunidade, vou falar sobre a diferença entre racismo e injúria racial). Ele acontece desde o momento em que na sua cidade não existe nenhum salão ou profissional de beleza capacitado pra tratar ou manejar os fios crespos. Ele acontece alguém compra uma peruca de “nega maluca” pra zoar a amiga que alisa o cabelo. Quando seu cabelo afro não condiz com as normas da empresa ou não parece suficientemente profissional.
O racismo atinge diretamente @s pret@s, mas respinga em todos. Todos.
Uma pessoa de fio crespo e não-negra não sofre racismo diretamente. Mas se ela nascer no Brasil, vai precisar criar muitas habilidades emocionais e empoderamento para conviver bem com sua herança capilar – mesmo cedendo ao alisamento dos fios.
O cabelo crespo é um constante lembrete da presença dos corpos negros, estejam eles estampados na cor da pele ou apenas no DNA. Visto por muito tempo como “ruim”, ele reflete a expressão do racismo e da desigualdade racial que recai nos sujeitos negros. Sobre esse tensionamento vivido no corpo, a antropóloga Nilma Gomes diz que o tratamento dado ao cabelo pode ser considerado uma das maneiras de expressar essa tensão. A consciência ou o encobrimento desse conflito, vivido na estética do corpo negro marca a vida e a trajetória das pessoas pretas. Por isso, entendamos de vez que questão de cabelo está muito além de “gosto pessoal”.
“A intervenção no cabelo e no corpo [negro] é mais do que uma questão de vaidade ou de tratamento estético. É identitária.”
Nilma Lino Gomes
Não é por acaso que no Brasil, muitas pessoas descobrem-se negras através de um processo de descoberta e de lida com seu cabelo crespo. Seja negra ou não, pessoas com a cabeleira encrespada (ou quaisquer outros traços notadamente de herança negra) precisam cotidianamente ressignificar a história que foi escrita sobre o povo preto e seu legado. Uma história que foi escrita e recontada não pelos protagonistas dela, mas por aqueles que desrespeitaram e tentaram enterrá-la. A negação e a tentativa de esconder ou camuflar qualquer parte de nós (biológica ou socialmente falando) que abriga essa africanidade é uma perpetuação do projeto colonizador aniquilatório da identidade negra. Para remediar este mal, faço a mesma prece de Gilberto Gil:
Sara, sara, sara cura
Dessa doença de branco
Sara, sara, sara cura
Dessa doença de branco
De querer cabelo liso
Já tendo cabelo louro
Cabelo duro é preciso
Que é para ser você, crioulo.
Publicitária cearense. Canceriana. Doutora e mestre em Psicologia. Amante da docência. Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (Paralaxe-UFC). Defendeu em sua tese de doutorado um estudo sobre mulheres em transição capilar. Atualmente, dedicada aos estudos de gênero, raça, feminismos negros e decolonialidade.
Louca por fotografia, design, viajar e colecionar carimbos no passaporte. Uma pessoa extremamente curiosa.
1 comentário
Muito boa as dicas 🙂