Enchi os olhos d’água quando vi Ra’Jah cair de joelhos, aos prantos, diante da notícia de ser ela a vencedora da primeira temporada do reality Canada VS The World. É sempre emocionante testemunhar o sucesso de pessoas negras. Mas, nesse caso, a reação de Silky Ganache, concorrente dela, deu à cena contornos ainda mais comoventes.
A reação imediata de Silky pegar a coroa para colocá-la em Ra’Jah sintetizou o que tem sido a trajetória das duas desde que ambas tornaram-se conhecidas, em 2019. Ao correr para coroar a amiga, Silky praticou a solidariedade de quem conhece a dor do outro e sabe da importância de uma vitória como essa.
Parte do elenco da 11ª temporada de RuPaul’s Drag Race, Ra’Jah e Silky tiveram desfechos parecidos no programa: vilãs da edição, protagonizando brigas homéricas, terminaram detestadas pelo público. Ambas negras, receberam todo tipo de ataque racista, ao ponto de cogitarem desistir da carreira de drag queens. Dois anos depois, em 2021, voltaram ao reality, agora na franquia All Stars (que reúne ex-participantes), e fizeram as pazes com os telespectadores. Mostraram-se mais centradas emocionalmente e apresentaram um trabalho mais maduro, com Ra’Jah chegando à final e sendo tida até como favorita pelos fãs do programa. Não ganhou e, agora, em 2022, teve mais uma chance. E, novamente, ao lado de Silky.
Foi bonito ver as duas, já no primeiro episódio, apertando as mãos, olhando no olho uma da outra e prometendo que chegariam juntas à final de Canada VS The World. Mas foi mais bonito ainda assisti-las cumprindo essa promessa e, ao fim do último desafio, aquele que definiria a vencedora, Ra’Jah repetir a cena, olhar no olho de Silky e dizer: “conseguimos! Estou muito orgulhosa de nós duas!”. Isso porque, minutos antes, quando Ra’Jah batalhava contra outra drag, a franca favorita ao título, Silky praguejava, baixinho: “Ra’Jah, Ra’Jah, Ra’Jah”, torcendo para a companheira ir adiante. Foi. Foram. Disputaram as duas a final do programa.
Duas pessoas negras. Duas grandes artistas negras. Duas revoluções. De odiadas a idolatradas pelo público, que ovacionou a campeã na boate na qual ela e a vice assistiram à divulgação do resultado (desconhecido até então, pois as duas vitórias são gravadas e as participantes só conhecem a vencedora junto com os telespectadores).
Ra’Jah talvez seja a redenção mais impressionante de toda a história da franquia de RuPaul’s Drag Race (e olha que hoje em dia não são poucas as versões do programa espalhadas pelo mundo). Por isso mesmo é que a vitória de Ra’Jah agora é tão merecida e tem um gosto de revanche tão forte. E ela atravessou tudo isso, do inferno ao céu, ao lado de Silky e de outras drag queens negras, participantes do programa ou não, que acompanharam de perto todo o sofrimento dela com o ódio destilado pelos fãs por conta de todos os equívocos da 11ª temporada.
Só três anos separam a Ra’Jah que o público detesta da vencedora de agora. Ela admitiu como um erro o comportamento ácido que teve na edição de 2019 do reality. Fortaleceu-se a partir disso. Ouviu conselhos, fez detox das redes, aperfeiçoou a própria arte, moldou o caráter de uma nova forma e deu a volta por cima da melhor forma: com 100 mil dólares no bolso.
O choro de Ra’Jah, no entanto, não é só pelo dinheiro. Ele é importante, mas não tudo. Acaba daqui a pouco. E ela sabe disso. Levar as mãos ao rosto, ajoelhar-se e cair em lágrimas é uma forma de cair em si. De se dar conta de que, enfim, após tanto esforço, tanta negação, tantos ataques e tantos xingamentos pode ter o trabalho reconhecido de agora em diante. Coisa que muitas drag queens brancas igualmente vilãs do programa tiveram (com facilidade, até).
A despeito de todas as críticas que Canada VS The World tem recebido desde que anunciou Ra’Jah como vencedora, ela é sim a campeã moral do programa. A artista cuja trajetória tinha de ser coroada numa final disputada com (jamais contra) uma irmã e dentro de um programa sem precedentes na história da televisão mundial. Tinha que ser dela. Precisava ser dela. Por mérito, reconhecimento e justiça, como tanto especulou-se antes de o programa começar e, no decorrer das exibições, arrefeceu.
Encerro evocando o conceito de dororidade, tão genialmente cunhado pela professora Vilma Piedade em 2017 e que se define como “a dor provocada em todas as Mulheres pelo Machismo” (página 17) – , no caso das mulheres negras, também pelo racismo. Ra’Jah e Silky conhecem bem esses dois sistemas de opressão. Tornaram-se companheiras de vida drag por compartilharem a dor de serem drags e pessoas negras e LGBTQIAP+. Unem-se principalmente por isso. Resistem principalmente por isso. E, agora, celebram.
Que tal nos contagiarmos por essa irmandade entre Ra’Jah e Silky? Celebremos. Assim, o mundo de realities de drag queens no Brasil sofrerá menos com ataques conservadores, direitistas e, quase sempre, sem fundamento algum. A dor que as uniu não precisa doer na gente pra gente se aproximar. Mas, tendo doído, temos a obrigação de acolher a/o irmã(o) em vez de jogá-lo(a) no fogo, como se costuma fazer.
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Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.