Quando defende o uso de pessoas privadas de liberdade como cobaias em testes de remédios e vacinas antiCovid no Brasil, Xuxa profere sim uma fala racista. “Pelo menos eles serviriam para alguma coisa”, o desfecho da declaração, só deixa a fala ainda mais cruel. E não utilizar o termo “negro” não ameniza o absurdo de tudo. O contexto do nosso sistema penitenciário já põe o assunto em perspectiva.
De cada três pessoas presas, duas são negras. Isso sendo o Brasil o país com a terceira maior população carcerária do mundo. São mais de 700 mil detentos e detentas espalhados em distritos policiais e presídios estatuais e federais. O número é menor apenas do que o dos Estados Unidos (2,1 milhões) e da China (1,7 milhão). Se o sistema é majoritariamente negro, qualquer fala dirigida a ele, portanto, pode ganhar conotação racista – mesmo que o termo “negro” não seja utilizado.
É racista porque: 1) centenas de milhares desses presos foram retirados de circulação por serem suspeitos e essa suspeição basear-se apenas na aparência. Ou seja: policiais detiveram-nos com base no estereótipo do “negro perigoso”. 2) centenas de milhares desses presos estão detidos provisoriamente. Ou seja: não há qualquer condenação contra eles; apenas uma investigação em curso; 3) centenas de milhares desses presos são inocentados ao fim do processo. Ou seja: foram acusados injustamente, sem provas. 4) centenas de milhares desses presos continuam presos mesmo tendo tido provada a inocência. 5) centenas de milhares desses presos têm direitos violados diuturnamente. Ou seja: são tratados da forma que não deveriam.
Dá pra listar mais razões do porquê da fala racista de Xuxa. Mas quero aqui destacar algo: tudo isso, todas essas informações, estão a uma distância de uma pesquisa no Google. Para ela, Xuxa, e para qualquer pessoa com acesso à Internet. Não é necessário ir a uma universidade, a uma biblioteca ou a um órgão de pesquisa. Você faz isso de casa. Deitado na cama. Não há justificativa, portanto, para o “eu não sabia.”
Todos nós, mas Xuxa ainda mais, por ser pessoa pública (e ter total consciência disso), temos o dever de, antes da emissão de uma opinião, quanto mais uma opinião sobre a vida de outras pessoas, de nos debruçarmos sobre uma pesquisa mínima. É irresponsável nos dias de hoje fazer qualquer afirmação sem conhecimento prévio do assunto. Repito: não há justificativa para o “eu não sabia”. Dissertações de mestrado, teses de doutorado, livros, reportagens, relatos de famílias de pessoas presas, tudo está à mão. Basta ter interesse de ler. Mas não. É mais cômodo ser famoso e adepto à moda da lacração.
Não acho que caiba o tal pedido de desculpas feito pela Xuxa em plena madrugada, diante da repercussão negativa da fala racista. É preciso sair do discurso, Maria da Graça. Não tenho obrigação de fazer isso, porque, repito, você tem recursos de sobra pra se informar sozinha, mas te sugiro ler “Mulheres, raça e classe”, da Angela Davis. É leitura obrigatória para você e qualquer um entender o que leva a alguém a defender o abolicionismo penal. Assim como é fundamental ler “Encarceramento em Massa”, da Juliana Borges, que desmonta falas como a da Xuxa, em favor do punitivismo penal.
Centenas de milhares de mulheres negras estão neste momento com os maridos, também negros, em presídios. Muitos deles eram o sustento da casa e deixaram a família completamente desamparada mesmo sendo, vale ressaltar, inocentes ou sequer terem sido julgados. Você não alcança essa dor, Xuxa, porque é uma mulher branca, rica, letrada. Não sabe o que é fome e favela. Pode ter lá seus projetos sociais, e eles devem ter lá sua importância, mas isso não aplica em você a dor de não ter o que comer ou de morar num barraco sustentado pelo companheiro que, da noite pro dia, desaparece.
É preciso desconstruir urgentemente a falácia em torno dos nossos presos. Eles têm cor. São majoritariamente negros. E tudo isso – a raça e a privação de liberdade – não faz deles pessoas sem direitos. Eles perderam o direito à liberdade, mas continuam tendo o direito a ter direitos. Como qualquer brasileiro. Falar em direitos humanos não é defender que “cidadãos de bem” tenham direitos e criminosos não os tenham e possam ser submetidos a violências e outros atos. Falar em direitos humanos é compreender que direitos humanos são direitos de todos. Todos MESMO, inclusive pessoas em situação de vulnerabilidade e de ressocialização, como é o caso de quem está no sistema penitenciário.
Assim sendo, da mesma forma que você, Xuxa, tem o direito de escolher se quer ser cobaia ou não em testes medicamentosos e vacinais, os presos também têm. O livre arbítrio deles tem o mesmíssimo valor que o seu e o de qualquer brasileiro. Defender que eles sejam sumariamente submetidos a esse tipo de procedimento é desumanizar seres humanos cujos inúmeros direitos já foram violados pelo Estado, inclusive direitos básicos que podem tê-lo levado a praticar algum ato indicado no ordenamento jurídico atual como ilícito.
Leia mais. Informe-se. Passada a onda de Covid, disponha-se a conhecer a realidade dessas pessoas dentro das penitenciárias e fora, com as famílias. Ninguém escolhe ter a liberdade restrita. Mas pode escolher morar na ignorância e perpetuar estereótipos horrorosos sobre realidades que não conhece. E, ao fazê-lo, só empurra centenas de milhares de pessoas para um buraco ainda maior do que elas já foram colocadas.
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
5 comentários
Meu Deus,
Abolicionismo penal? No Brasil se prende é pouco. São mais de 60 mil homicídios por ano e menos de 6% são solucionados. Se a polícia trabalhasse e a justiça cumprisse sua obrigação não estaríamos com esses índices de criminalidade. E ainda vem escrever esse monte de asneiras.
Asneira é comentar algo sem conhecer o tema. Procure ler a respeito antes de vir a um portal antirracista vomitar ódio.
O problema de vocês é esse. Ninguém pode ter opinião contrária que é ódio. Abraços e boa sorte na sua caminhada.
E o problema de vocês é achar que nós temos a obrigação de aceitar nossos pensamentos sendo chamados de asneiras. Aprenda a se colocar e a argumentar que terá o tratamento adequado. Boa sorte.