Vamos imaginar que o homem acusado de estuprar a influencer Mariana Ferrer numa festa fosse negro. Negro e pobre. Negro, pobre e morador de favela. Teria a justiça brasileira entendido o caso como “culposo”, quando não há intenção do cometimento do crime? Ou estaríamos diante de uma sentença rigorosa com dosimetria de pena a servir de exemplo para a opinião pública?
Mas o homem acusado de estuprar a influencer Mariana Ferrer numa festa é branco. Branco e rico. Branco, rico e poderoso. A justiça brasileira entendeu, então, o episódio como “estupro culposo”, quando o estuprador não tem a intenção de estuprar, muito embora estupre. Deu um nó no juízo, né?
Vamos lá, então.
O que a justiça brasileira praticou foi nada além do que um flagrante racismo jurídico. Ou seja: criou um dispositivo legal para atenuar um crime em favor de um indivíduo socialmente visto como fora do perfil de estuprador. Não importa se ele cometeu ou não o crime. Ele não tem perfil de estuprador. Porque o perfil de estuprador é o do homem negro.
O violento.
O viril.
O sexualizado.
O reprodutor.
O bem dotado.
A história nos prova todos esses estigmas com muita facilidade, com escravizados usados de forma recorrente em práticas sexuais com as sinhás. O imaginário coletivo (de agora e de outros tempos) também é testemunha. As produções cinematográficas, inclusive as da indústria pornô, mais ainda.
Não é o homem branco quem figura no desejo da alta masculinidade e hipersexualização. É o homem negro. Quando mais retinto, inclusive, mais viril o censo comum o constrói – enquanto, noutra ponta, o homem branco, empresário, rico, influente e morador de condomínio de luxo é visto como inofensivo. E acobertado por instituições que historicamente reproduzem estereótipos e empurram a população negra para a marginalização e criminalidade.
São comuns os relatos de advogados e defensores públicos sobre o tratamento diferenciado que o Judiciário dá a indivíduos brancos e indivíduos negros. Ambos são pegos com drogas. Mesma quantidade. Mesmas circunstâncias. O branco é solto. O negro é detido. O branco é usuário. O negro é traficante.
Isso se reproduz nas empresas de comunicação, que também exploram o perfil do homem negro como propenso ao crime e colocam o homem branco no papel de especialista, formador de opinião, entrevistado modelo etc. Tudo isso compõe um imaginário coletivo difícil de desconstruir e que, num caso de grande visibilidade como esse de Mariana Ferrer, só expõe o tamanho da ferida social (e, em específico, do nosso sistema de justiça).
Para além de “estupro culposo” ser algo impossível de existir, já que o estupro é, antes de tudo, o extremo de uma relação hierarquizada, na qual o homem inviabiliza a mulher tal qual um ser inferior, a questão aqui, deste caso, e de tantos casos Brasil afora, é de o desfecho ter sido dado conforme o desejo do agressor. Na impossibilidade de alegar falta de provas ou mesmo de comprovar a inexistência do crime, fragiliza-se o argumento da acusação ao ponto de o crime praticamente não existir.
Transforma-se tudo em chacota. E tende, sabemos, a terminar por isso mesmo. A cair no esquecimento. Afinal, é só mais um branco com dinheiro influenciando em arrojos sociais, no funcionamento da máquina pública e deliberando sobre o próprio destino, a despeito de, neste caso em particular, isso ser atribuição de terceiros.
A certeza de magnitude do homem branco, o indivíduo do topo da cadeia social, é tamanha que ele se arvora do poder de criar um argumento legal inexistente, ilógico, desrespeitoso, sexista e racista para beneficiar-se da liberdade – algo que ele também não admite que lhe seja tirado. Porque ser livre é da natureza dele, homem branco. Prisão é lugar de preto. Ele cresceu ouvindo isso. Nós crescemos ouvindo isso. Reproduzindo esse ideário cruel.
Agora, pelo racismo constitucional praticado de forma tão intencional e vistosa, nosso sistema de justiça abre uma brecha perigosa. Um precedente para todo estuprador alegar que não teve a intenção de fazê-lo. No juridiquês, uma jurisprudência. Perigoso. No linguajar comum: deu carta branca pra estupradores serem estupradores sem peso algum na consciência.
Especialmente se forem brancos, ricos e influentes. E isso é grave. Muito grave.

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.