O mundo das imagens sempre me fascinou. Não sou fotógrafa profissional, mas estou sempre me arriscando a produzi-las e a pensá-las. Antes, enquanto uma possibilidade de experimentação estética; hoje, enquanto uma possibilidade de recontar histórias por meio de enquadres; mexidas aqui e outras acolá no obturador. E o fascínios funcionam assim: te intimidam a mergulhar e submergir por completo.
Quando comecei a tatear essas imagens, fui me dando conta do quanto as imagens que construímos e reproduzimos são enquadramentos muito específicos do nosso “ao redor”. Enquadramentos totalizantes e, por vezes, sufocantes. As histórias das imagens que hoje sobrevivem são um resultado histórico dos discursos hegemônicos que venceram e que soterraram as imagens hoje mortas. As imagens da diversidade, da ancestralidade, da reconexão com o passado e com uma herança para-além-mar são aniquiladas todos os dias. Ao corpos racializados, sobram-lhes a não-história, a não-identidade, as não-imagens.
As imagens derrotadas são como um templo incas, sepultadas pela solidão do tempo e pela crueldade dos colonizadores.
Um dia, Jonathan Crary me sussurrou, enquanto eu lia Técnicas do Observador, que não existe história das imagens sem que se conceba as condições materiais e simbólicas para se produzir uma imagem e, principalmente, o sujeito produtor da imagem. Não há história das imagens sem a história de quem as produziu, de quem as circulou e sob quais paradigmas a concebeu.
O esquecimento das imagens e da história negra que nos constitui sela o destino a que nossos colonizadores nos reservaram: a não-existência
Justamente por seu poder onírico, delirante, a narrativa que está em disputa nas imagens é contrabandeada todos os dias, seja através do negro único na fotografia, seja através da “cota da diversidade” da Publicidade, ou até mesmo através de uma política de extermínio do Estado. Ao corpo negro, a saída à tangente. Arriscar-se a enquadrar o corpo negro, fugindo da monossemia das imagens e apostando na potência do seu protagonismo, é arriscar-se à insubordinação da história já dada, já contada. É tatear novos territórios, desbravar matas fechadas. É não contentar-se com o não-lugar.
O ensaio que hoje compartilho com vocês fez parte da exposição “Poéticas e Resistência”, que junto ao trabalho de dez outras fotógrafas cearenses, compôs o Encontros de Agosto de 2017, em parceria com o coletivo Mulheres da Imagem CE. “Pontes ou Muros?” é o título que nomeia este trabalho, fruto de uma inquietação com o lugar na fotografia e na subjetividade ocupado pelos corpos negros. Na história que tento contar, trago protagonistas que estão longe (física e simbolicamente) dos que performam em peles tatuadas, com seus cabelos coloridos e atitude “descolada” nas praias à direita da ponte situada na Praia de Iracema, em Fortaleza. Ali, outros sorrisos e olhares entrelaçam a trama de quem vive e habita “pra lá” da ponte. Habitantes de cidade e de uma identidade invisibilizadas, que parece não atrair as lentes e os olhares. Mas que possui potência e cor.
Aos corpos negros, o primeiro plano. Aos corpos negros, a História. Aos corpos negros, as imagens sobreviventes.
Publicitária cearense. Canceriana. Doutora e mestre em Psicologia. Amante da docência. Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (Paralaxe-UFC). Defendeu em sua tese de doutorado um estudo sobre mulheres em transição capilar. Atualmente, dedicada aos estudos de gênero, raça, feminismos negros e decolonialidade.
Louca por fotografia, design, viajar e colecionar carimbos no passaporte. Uma pessoa extremamente curiosa.