Muito embora seja uma pageant girl* e tenha como marca pessoal “a essência da beleza”, não é só pela estética espetacular que Jaida Essence Hall merece vencer a 12ª temporada de Rupaul’s Drag Race. Tampouco por ser a única negra na final, o que por si já faria dela candidata do Ceará Criolo.
Jaida deve ganhar o programa mais importante da comunidade LGBTI+ por ser a participante politicamente mais consistente do top 3 desta que foi a edição mais engajada dos 11 anos de programa. Pertencem a Jaida os pronunciamentos mais fortes sobre a necessidade de nos posicionarmos a favor da inclusão e contra a perda de direitos.
“Em tempos difíceis, é mais importante do que nunca ser patriota. Porque a gente precisa mudar. E agora a gente precisa muito de uma mudança”, disse ela em conversa com as demais drags.
O papo era sobre um certo homem branco e rico que despreza e persegue minorias, e aconteceu justo no episódio no qual elas participaram de um debate político como candidatas a presidente. E onde Jaida cunhou um dos melhores memes de todas as temporadas em meio a um enredo sobre confundir o eleitor para ser eleito. Quem não caiu na gargalhada com aquela sequência de “LOOK OVER THERE” para se livrar de uma pergunta tendenciosa? O jargão virou até merchandising de camiseta!
Também foi dela a reflexão da importância do voto e de acompanharmos o desempenho de quem elegemos. “Muitas vezes, nos dizem que política não é importante. Mas quem se beneficia disso? Dizem que não é importante justamente para não sabermos o que acontece.”
Além disso, das três finalistas, Jaida é a única que usa a imensa visibilidade que conquistou (ela tem mais de 300 mil seguidores no Instagram e outros 88,5 mil no Twitter) para conscientizar os fãs sobre política. São recorrentes as postagens para o povo americano votar. Nos Estados Unidos, diferente do Brasil, o voto é opcional. Para participar da eleição, é preciso efetuar um cadastro – mensagem essa reforçada em todos os episódios da temporada.
Seria incoerente justo a edição mais politizada do programa ter, por exemplo, Gigi Goode como vencedora. Ela é linda e talentosíssima. Mas admitidamente despolitizada, tendo um dos piores desempenhos no desafio do debate entre presidenciáveis. Crystal Methyd, a terceira finalista, até flertou com algum discurso político. Mas nada além de uma confissão sobre os pais serem eleitores convictos de Trump e como isso dificulta a relação familiar. E dificulta porque a própria drag prefere não discutir política em casa. Ou seja: um perfil semelhante ao de Gigi.
A vitória de Jaida seria a coroação de um perfil de preta que precisa ser replicado NO MUNDO: consciente da própria negritude, sóbria na leitura política do país onde vive, segura nos posicionamentos públicos, solidária à dor dos diferentes e inteligente nos argumentos. Porque a gente PRECISA sair desse estereótipo de o povo negro ser visto somente como preguiçoso, malandro, bandido, bunda de carnaval, de libido aguçada e bem dotado sexualmente. Podemos ser – e somos – perspicazes, talentosos, sensatos e geniais. Jaida Essence Hall, uma drag queen negra, orgulhosa da origem black e nascida fora do circuito das metrópoles turísticas norte-americanas, é a prova inconteste disso.
Caso ganhe, ela será (apenas) a quinta participante negra a vencer uma edição regular do programa. Sim, em 12 temporadas, Rupaul’s Drag Race só elegeu quatro queens negras: Beze Zahara Benet (Season 1), Tyra Sanchez (Season 2), Bob The Drag Queen (Season 8) and Yvie Oddly (Season 11).
Considerando-se as quatro edições de All Stars (que reúne ex-participantes), Jaida seria a sexta drag negra a vencer o programa – já que Monét X Change ganhou (controversamente, diga-se, preciso ser franco) a Season 4 junto com Trinity The Tuck (essa sim, merecedora).
Há quem diga que Raja, top 1 da Season 3, também é uma winner negra. Como nunca a vi autodeclarando-se assim (dentro ou fora do programa) nem levantando qualquer bandeira do movimento (idem), prefiro não a incluir na lista para não correr o risco de ser injusto. Pertencimento a etnia é coisa, antes de tudo, pessoal.
Temos, portanto, até hoje, apenas 30% de vencedoras negras em um programa cujo apresentador é negro e do qual inúmeras participantes negras extremamente talentosas já participaram sem ter a visibilidade que mereciam. Com o risco de esse indicador diminuir ainda mais, se confirmadas as expectativas de que Gigi deve ser a cotada (digo, ganhadora) desta edição.
Jaida Essence Hall é, de fato, a essência da beleza. Provou isso todas as vezes nas quais pisou na passarela do palco principal de Rupaul’s Drag Race e enalteceu o poder da mulher preta. É incontestavelmente linda. Mas torna-se ainda mais bonita quando abre a boca e fala do que todo negro está cheio: de sede de justiça e igualdade.
A DRAG E O PROGRAMA
Jaida Essence Hall é a drag criada por Jared Jhonson, um jovem negro da cidade de Milwaukee, no estado norte-americano de Wisconsin. Venceu três desafios principais do programa (um de moda, um de improvisação em atuação e um de cunho político). Ficou apenas uma vez entre as piores e foi para dublagem.
O PROGRAMA
Rupaul’s Drag Race foi ao ar pela primeira vez em 2 de fevereiro de 2009. Leva o nome de ninguém menos que a drag queen mais famosa do planeta e já ganhou inúmeros prêmios de televisão. É produzido pela World of Wonder e dá à vencedora o prêmio de CEM MIL DÓLARES.
* Garota de concursos de beleza
Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.