POR LÍVIA NUNES
Oceanógrafa
Não foi só uma vez que tentei elaborar uma escrita que transparecesse todas as fortes emoções que apertavam as batidas do meu coração e provocavam um nó na garganta, uma taquicardia, a sensação de perigo, misturada com raiva, coragem, medo, ansiedade. Eu precisava escrever o que tinha acontecido comigo. Sim, fui vítima de injúria racial na academia Greenlife, em Fortaleza, no dia 16 de agosto.
Um clássico: preta vestindo branco indo à academia. Estando próxima de uma mãe branca e filhos brancos, não seria percebida como uma cliente de uma academia alto padrão. Óbvio que não! A preta é a subalterna, a que acompanha! E, como toda ação dirigida pelo racismo estrutural, a recepcionista me barrou, perguntando se eu estava acompanhando!
Tenho raiva de mim, às vezes, por ter ficado em choque. Inicialmente, não queria acreditar que estava acontecendo. Não consegui responder. A pessoa que estava ao lado da recepcionista, que não teve a reação mais apropriada para o momento, respondeu: “Ela é cliente”. E a recepcionista me deixou passar como se nada de grave tivesse acontecido. Quando aconteceu! Uma violência aconteceu! Isso se chama Racismo Institucional!
Não foi a primeira vez que fui violentada desta forma. Aliás, essa violência foi minha companheira a vida toda; sequer tinha o nome de injúria racial quando eu era mais jovem. Fui aprendendo ao longo da jornada dos meus 41 anos a “conviver” com xingamentos, comentários depreciativos e todo o combo que uma agressão dessa representa. A maneira que encontrei foi fingir que não me importava, que as pessoas que faziam isso eram ignorantes. Quanto à ignorância dessas pessoas, eu nunca estava errada. Em relação ao fingimento, sim, eu estava.
Depois desse episódio, veio junto a sensação de BASTA!!! O cômodo incômodo descrito na letra da música do Emicida, “Levanta e Anda”, não era mais cômodo. Era muito incômodo. Como disse, não era a primeira vez que havia sido vítima de racismo. Todavia, foi a primeira vez que me posicionei de uma forma mais madura e consciente em me ver não mais como vítima e sim como sobrevivente. Aliás, uma leitura de uma “nova identidade”, muito além de sobrevivente. Depois que escolhe se posicionar e saber o seu lugar na vida e acreditar que merecemos o melhor do melhor, um novo olhar se estabelece.
Como o querido jornalista Bruno de Castro, do Ceará Criolo, disse: um terceiro olho se abre! No yoga, aprendemos que o terceiro olho é a consciência, o olhar verdadeiro, o olhar além das ilusões. E a ilusão a qual me refiro é fingir que depois de ser agredida estaria tudo bem. Não. Não dessa vez! Fui buscar justiça. Mesmo essa oferecendo ainda pouco, eu estava decidida a ter dela o máximo do ainda mínimo que oferta para os pretos e pretas desse país.
Injúria racial pode resultar em pena de três anos de reclusão, que raramente é cumprida, e se paga uma multa ou serviço social, além de danos morais, que nunca de fato é pago em proporcionalidade equivalente à agressão. É revoltante! Sim, é!
Bom, queridos leitores, nunca disse que olhar com o terceiro olho seria uma tarefa fácil. Mas nos empodera, nos situa para termos uma presença na vida, uma noção real de onde estamos e para onde queremos ir. E o local para onde eu queria ir no presente, para onde eu quis ir logo após o episódio na academia era para uma delegacia racial. Mas pasmem! Se não tem delegacia racial na capital do Ceará, imagine em outros lugares do estado!
Como assim? A Terra da Luz, que levanta a bandeira de ser o primeiro estado abolicionista do país não tem uma delegacia racial? Como os crimes de racismo, cujas denúncias vêm aumentando drasticamente são resolvidos de forma eficiente? Segundo reportagem do jornal Diário do Nordeste, elas cresceram 77% no Ceará! Cadê essa luz da TERRA DA LUZ, que não permite fazer enxergar a falta de respeito para com seus cidadãos pretas e pretos? Cadê campanhas antirracistas no primeiro estado abolicionista, nas instituições públicas e privadas? Por que não existe uma delegacia racial para resolver crimes de racismo que acontecem diariamente, mas nem todos conseguem ser denunciados? E os que são reportados, conseguem ter um final justo?
Bom, como um ditado popular fala: “se não tem cão, caça com gato.” Eu, atualmente, estou usando de todos os recursos para que eu veja raio de luz de justiça na Terra da Luz. O meu BO foi registrado no dia 26/8/2022. Fui buscar a Defensoria Pública. A delegacia que na qual registrei o o boletim de ocorrência não era a correta, mas em nenhum momento me disseram qual seria a correta. Não me orientaram. Só depois da imprensa reportar o acontecido fiquei sabendo que meu caso estava em outra delegacia.
Já estamos em outubro e só agora tenho o número do inquérito instaurado para investigar o que aconteceu comigo. Continuo na jornada. Estou cansada. A minha vida não é mais a mesma. Parece que o tempo meio que fica em slow motion quando se busca o correto. Entretanto, agora, lendo o Pequeno Manual Antirracista, livro da filósofa negra Djamila Ribeiro, me deparo com a pergunta: “o que você esta fazendo ativamente para combater o racismo?”.
Ahhhhhh, agora eu tenho uma resposta!
E você, o que está fazendo ativamente para combater o racismo?
O Ceará Criolo é um coletivo de comunicação de promoção da igualdade racial. Um espaço que garante à população negra afirmação positiva, visibilidade, debate inclusivo e identitário.