Ter a pele escura nunca foi um problema existencial pra mim. Falar de cor e sexualidade em casa é sempre muito confortável. Essa rotina me ensinou duas coisas muito cedo: 1) não baixar a cabeça para quem tenta me humilhar por eu ser preto; 2) não dar satisfação da minha orientação sexual para ninguém.
Isso fez com que eu, há algum tempo, entendido de conceitos e do que eu sonho para mim, decidisse me afirmar publicamente como homem negro e gay. É assim que faço questão de ser visto na família, no trabalho, pelos amigos, nas redes sociais e nos locais que frequento. Porque são esses meus lugares de fala (e também de escuta).
E essa é minha tese: todo negro (que se reconheça negro, claro) tem o dever moral de se posicionar assim, especialmente se for privilegiado de alguma forma. Pra demarcar território. Pros brancos saberem que a gente não aceita piada racista (sempre tão insossas). Pra todo mundo nos dar o devido valor quando chegarmos a um cargo de chefia. Pra gente ocupar cada vez mais espaços. E, no caso dos privilegiados, pra compensar quem não pode/consegue fazer isso.
Se os tempos forem de racismo, então, aí é que levanto mesmo essa bandeira. Do contrário, a gente cai na esparrela da democracia racial e no discurso cretino de que lugar de negro é nos serviços gerais, na bandidagem e na periferia. Quanto mais calados ficamos, mais somos coniventes com esse status quo que nos empurram goela abaixo.
Por isso minha indignação ao esbarrar no seguinte comentário (que transcrevo aqui sem qualquer alteração): “folha para de querer dividir as pessoas!! Não é poeta negro. É POETA!”. No Twitter, um usuário (que me recuso a nomear para não dar ibope) respondia à postagem do jornal Folha de São Paulo sobre uma reportagem.
A notícia era a seguinte: “Conheça o poeta negro de 92 anos comparado a Drummond e João Cabral”. O tal poeta é Carlos Assumpção, um senhor cuja obra é TODA pautada na resistência do povo preto. Ele é paulista, nasceu em família pobre, tem uma vida inteira de combate ao racismo usando a literatura como arma e nunca teve o devido reconhecimento. Mais um apagado pelo racismo.
Assumpção se afirmou negro em toda a sua trajetória. Agora, no fim da vida, consegue o mínimo de destaque após um jornal de grande circulação dar fé da sua existência. E há quem se sinta no direito de embranquecê-lo e dizer que ele não é poeta negro.
Veja só como o discurso racista é cruel. “Não é poeta negro. É poeta”, como se todos fôssemos iguais. Como se Assumpção não tivesse sofrido quase 100 anos o peso de ser privado de experiências, pessoas e lugares pelo simples fato de ter a pele escura. Como se nenhuma letra por ele escrita fosse preta.
Não fosse Assumpção um homem negro, preto, tição, como se diz na minha terra, de tão escura que é a pele dele, sequer seria poeta, sabe-se lá. A melanina o fez artista. Colocá-lo na vala comum (perdoem-me Drummond, João Cabral e todos os demais homens dos sentimentos e palavreados bonitos) é o mesmo que apagá-lo da história. Porque nenhum verso dele seria sobre ser preto.
É fundamental que mais e mais pessoas públicas reconheçam-se e afirmem-se como pretas. Enquanto crianças negras forem assassinadas pelo Estado, enquanto mulheres negras forem tratadas como objetos, enquanto pais de família pretos e inocentes forem presos, enquanto qualquer coisa de ruim acontecer no tempo em que vivemos em decorrência de cor de pele, nós temos obrigação moral, sim, de nos afirmarmos pretos. Mais e mais gente tem que ir pra cima e não baixar a cabeça. Mais e mais gente tem que revidar aos absurdos. Mais e mais gente tem que reivindicar o lugar no mundo que a gente sonha pra gente.
Se o próprio Assumpção se coloca como homem preto, quem é você para tratá-lo apenas de poeta? Ele é poeta PRETO, sim. Tal qual eu sou jornalista preto. E Djamila Ribeiro é uma filósofa preta. E Conceição Evaristo é uma escritora preta. E Maju Coutinho é uma apresentadora preta. E Preto Zezé é um preto desde o nome.
Respeitem a nossa história! Porque quando o sistema de cotas não existia, os brancos eram os primeiros a “dividir as pessoas”. Quando um negro é achincalhado na rua, os brancos são os primeiros a “dividir as pessoas”. Quando um jovem é torturado a chicotadas em pleno 2019, os brancos são os primeiros a “dividir as pessoas”. Quando depois de muito esforço um preto ocupa uma posição de destaque, os brancos são os primeiros a “dividir as pessoas”. E essa divisão é sempre desigual. Nós, negros, somos sempre a escória.
Então, por favor, não me venha com essa balela de “não é poeta preto”, “basta querer”, “escolhemos pela meritocracia” ou qualquer outra lorota que inventaram por aí – e você acredita e dissemina – pra justificar a divisão social escrota deste país. Sou negro, sim. Com orgulho.
PS: não preciso dizer que o autor do comentário é branco, né?

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.