A abolição da escravatura negra no Brasil não trouxe a liberdade plena, posto que a massa de ex-escravizados não saiu como classe trabalhadora, mas como classe perigosa. Esse fato se constituiu ponto fundamental para estruturação da racialização de forma subalterna sob forma de “criminalidade mestiça”. A população negra permaneceu marginalizada, diluída na condição de pobres e criminosos, tornando-se objeto da ação de cunho assistencialista ou da ação violenta e repressiva da polícia.
O/as negro/as ainda enfrentam enormes assimetrias, em particular no campo da justiça criminal. São alvo de um processo de despersonalização que os transforma em meros corpos-objetos, desprovidos de qualquer humanidade. Muitos são os estereótipos que grudaram ao corpo negro numa associação perversa entre prática de delitos e as características físicas e culturais dos supostos delinquentes. Por meios dos discursos cientifico, médico legal e jurídico, esse grupo étnico é tido como destituído de ética e de moral para a vida social, desajustado, desviante e não cidadão, servindo de ferramenta de legitimação do racismo.
Dessa forma, torna-se inadiável afirmar a existência do racismo e propor intervenções de superação das desigualdades socioraciais, de modo a desnaturalizar as hierarquias raciais e garantir a equidade racial. Nessa direção, tem-se a importante iniciativa do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), criado em 1992, em São Paulo, após o Massacre de Carandiru, para produzir e divulgar conhecimentos nas áreas de direito penal, processo penal, criminologia e promover diálogos entre academia, poder público e sociedade civil.
A instituição alterou em março do corrente ano seu estatuto e passou a adotar políticas de ação afirmativa, modalidade cotas raciais mínimas de 20% para pessoas autodeclaradas negras na composição da Diretoria e do Conselho Consultivo.
Acresce que foi eleita Ester Rufino, uma mulher negra como membro dessa nova Diretoria (gestão 2021 a 2022), conformando mais uma ação de inclusão e a ampliação da igualdade no poder decisório do IBCCRIM. A mais nova integrante é ativista antirracista, com militância na Educafro, possui competência e habilidade para exercer o cargo e muito contribuirá para o deslocamento da visão acerca do corpo negro, não mais como objeto de estudo das ciências criminais, mas como sujeito com capacidade de produzir conhecimentos, de decidir no âmbito de questões que atingem diretamente a população negra, tais como: encarceramento em massa, violência contra a mulher negra, abordagem policial violenta, feminicídio e outros.
Certamente, essa medida representa um marco histórico dessa instituição em direção à igualdade racial. A escolha foi acertada porque a mulher negra, atuante na periferia desse país, é a que mais se aproxima da realidade das persistentes desigualdades raciais, da falta de reconhecimento étnico e das injustiças, com ativos para melhor interpretar os modos de vida, com acúmulo de experiência para superar situações difíceis, podendo melhor instrumentalizar as manifestações em defesa da continuidade da vida de homens, mulheres, jovens e crianças historicamente discriminados.
Ester Rufino explicita que desde 2015 o IBCCRIM já vinha manifestando o anseio por mudanças ao abrir em eventos espaços para participação das entidades dos movimentos sociais, ao ouvir a voz da sociedade civil, dos coletivos sociais como a organização das Mães de Maio, os movimentos sociais negros, o movimento LGBTQIA+, dentre outros, entendendo que importa a contribuição de cada um no cumprimento de sua missão institucional.
A Diretora apresenta preocupação alargada com a necessária defesa do/as advogados/as negro/as como uma possibilidade de mudar o sistema de justiça, posto que sofrem o peso do racismo estrutural e institucional no seu cotidiano profissional.
São elucidativas suas palavras:
Essa gestão implementou as mudanças já solicitadas no período de campanha. Pois passados 29 anos de IBCCRIM este não tinha diretor nem conselheiro negros, mulher negra também não (…) minha presença na Diretoria como mulher negra é importante poque ao tratar da ciência criminal, direito penal, direitos humanos, encarceramento, tem tudo a ver conosco – negro/as, tratam de pessoas mais vulneráveis e excluídas da sociedade (…) Para mim, a oportunidade vence a meritocracia quando se coloca uma mulher negra da sociedade civil na mesa para tomada de decisões, espaço de poder, ora que isso é ganho. Abre a oportunidade para o Instituto qualificar sua prática, sair de um discurso teórico abstrato para a concretude da prática, sabendo que tem voz da sociedade, que também decidirá o que fazer. Vou decidir por nós, me sinto honrada nesse espaço. Esse momento foi uma surpresa para mim, fiquei feliz, só tem a agregar na luta antirracista. Todos do IBEDECRIM vão estar juntos na luta antirracista (…)
Foram acertadas essas iniciativas do Instituto, nesse contexto particular de recuo da democracia, crescimento do autoritarismo, e acirramento das tensões raciais ao garantir a inclusão, reconhecimento étnico e diversidade. As ações afirmativas são frutos de lutas históricas do povo preto para existir. São a reafirmação de sua humanidade.
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Professora da graduação e do Mestrado em Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (Uece). Assessora Especial de Acolhimento aos Movimentos Socias do Ceará – ASEMOV/Casa Civil.