A cor do Francisco José Pereira de Lima chega antes dele em qualquer canto. Está na identidade. Não na de papel. Na alma. Deixou de ser cor, na verdade. Virou nome próprio. Vem quase junto com o sorriso. Ou dentro de uma camisa com motivos africanos e boné com a estampa de um negão black Power irado.
Aos 42 anos, a pisada mansa prepara o terreno para um discurso incisivo. Chocante, muitas vezes. Até mesmo pra quem é negro. “A gente estabeleceu na Cufa [Central Única das Favelas] uma cota pra branco de 10%. Porque toda instituição o branco toma, o branco domina”. O papo é assim. Reto. Sem rodeios.
Nascido numa comunidade pobre que resiste à especulação imobiliária e ao poder econômico do miolo de um bairro nobre (e branco) de Fortaleza, o entrevistado da semana do Ceará Criolo é uma figura de fala macia e sorriso debochado. Um colecionador de histórias cuja protagonista é a pele.
O estigma da pele, contra o qual ele pratica o que chama de “constrangimento pedagógico”. Tática essa usada quando decidiu ser um Francisco José Pereira de Lima diferente e ir pra linha de frente da luta por um Brasil menos esquizofrênico no que diz respeito às questões étnico raciais.
Ele acabou de perder uma eleição para deputado estadual, preside a Cufa e está prestes a lançar um livro e a colocar em prática um projeto esportivo para integrar 22 bairros de Fortaleza. “Tem muita coisa boa pra ser feita”, antecipa.
Senhoras e senhores, Preto. Zezé. Das Quadras. Do mundo.
Pro mundo.
CEARÁ CRIOLO] O teu nome público é uma junção de parte do teu nome de batismo com a cor da tua pele e com o lugar que tu representa. Como surgiu essa composição?
PRETO ZEZÉ DAS QUADRAS] No Ceará, a questão do racismo perpassa uma estratégia de negação total da existência dos negros. E eu ficava muito doido com isso. Porque você mata uma pessoa quando nega a existência dela. O racismo é um processo de desumanização tanto de quem pratica quanto de quem é vítima. Daí vem vários elementos de onde surge o Preto Zezé das Quadras.
O “Das Quadras” vem muito com o rap. Porque o rap é muito a identidade do lugar. A coisa do Preto veio muito com a história do hip hop.
Porque no Brasil você não nasce negro. Você se descobre negro. E muita gente vai morrer sem se descobrir negro.
Isso foi um choque muito grande pra mim. Porque eu só fui descobrir que era negro com 19, 20 anos. E quando você descobre como funciona o racismo você vê coisas que não via. É impressionante. Você volta a fita do que aconteceu na sua vida, as escolhas, os processos que sofreu, quando se sentia mal e não sabia o que era… Porque ser negro no Brasil já é uma atividade política militante. De sobrevivência. A gente sobreviveu a tudo, cara. E dependendo dos recortes que a gente tem nas nossas vidas, aí é mais porrada.

Eu decidi ir, então, pro constrangimento. O constrangimento pedagógico. Eu morei uma época com um cara chamado Luiz. O Preto Lu. A gente morava na [rua] Pinho Pessoa [em Fortaleza]. Éramos os únicos pretos do condomínio. E a gente tinha uns amigos policiais. Quando os caras chegavam, todo mundo do prédio pensava que eles iam prender a gente. Tinha uma mulher que dizia: “até que enfim a Polícia pegou eles”. Nós dois negão. E eu sou tipo seis horas e o Preto Lu é tipo meia-noite. Um dia, nós fomos fazer compras no supermercado, naquele Pão de Açúcar ali da Antônio Sales com Virgílio Távora. E ele [Preto Lu] é da linha estourado. Tá nem vendo. Desce o pau, esculhamba, foda-se e o cacete. A gente lá como um belo casal, com os dois carros cheios, aí vem uma senhora no automático. Nem olha pra nós. Já pegou na gente e perguntou: “ei, onde é a seção de limpeza?”. Ele [Preto Lu] já ia detonar. Mas eu chamei a mulher, puxei no corredor e disse: “eu e o meu sócio, a gente acabou de comprar essa loja pra nossa rede de supermercados. Então a gente não sabe decorado onde ficam as seções. Nós estamos vindo aqui agora justamente pra ver como é o funcionamento. Mas eu vou chamar o meu funcionário pra atender a senhora”. Bruno, cara, essa mulher ficou uma hora rodando, rodando, rodando e pedindo desculpas pra gente.
Foi quando eu vi que o constrangimento pedagógico funciona. É você colocar a pessoa numa situação em que você faça ela refletir o quão escrota ela tá sendo. Por isso que quando tem um caso de racismo numa empresa eu não quero que prenda só o racista. Porque o punitivismo vai prender um cara, mas o fenômeno continua solto. Você prende o racista, mas o racismo continua solto.
Eu não quero que tenha um mundo lotado de racista dentro de uma prisão. Eu quero que a gente viva numa sociedade que ninguém discrimine o outro porque o outro é negro, cara. É ridículo isso. Não tem sentido isso. Não tem por que isso.
Então eu pensei que seria construtivo isso. Quando eu coloco Preto Zezé é isso. É um constrangimento pedagógico. E é uma desconstrução também. Você fala preto, preto, preto e daqui a pouco o preto deixa de ser uma cor e passa a ser nome próprio.
CC] Você disse que se descobriu negro muito tarde. Como era o relacionamento com a família e amigos quanto às questões étnico-raciais?
PRETO] Tem sempre um stress, né? Vem as piadas da galera falando do seu cabelo, do seu lábio, da sua cor… E você começa a puxar um filme. E as relações se refazem.
Eu brigava muito com o Movimento Negro pra gente ir devagar. Como a vida do preto é uma militância mesmo que ele não se declare militante de organização nenhuma, quando você descobre o que é o racismo você vê um mundo dos horrores, cara. Você imagina finalmente você entender que numa festa junina você nunca pode ser o noivo. Você ficar pensando porque você nunca pegava os papéis principais das coisas boas da escola. A escola é um ambiente trucidante. Acho que é o berço principal de detonação. Então, eu defendia que a gente fosse devagar porque nem todo mundo podia reagir bem.
Porque ao saber o que é o racismo a pessoa precisa de uma rede de acolhimento do caralho. Porque é tipo você jogar uma pedra numa vidraça e depois juntar esses cacos, cara. Alguém tem que juntar esses cacos. É muito traumático.
Eu conheci meninas que tomaram banho de quiboa, cara. Pra ficarem com a pele mais clara. Pra ficarem brancas. Mulheres do cabelo belíssimo que ficaram carecas usando produtos super pesados. Eu comecei a ver que havia outros caminhos e comecei a construir essas referências.
Quando eu faço a migração do hip hop pra Cufa, a Cufa já tem outra estratégia, mais forte: esquecer o discurso e radicalizar na prática. O povo olhava pra Cufa do Ceará e só via preto. Chegava a duvidar que a gente era cearense. Porque inclusive as pessoas estão programadas pra achar que a gente não é daqui. Aí eu fui ver que os pretos não estão nem numa periferia organizadinha. Eles estão na beira do trilho mesmo. Na área mais fudida.
CC] Como a Cufa atua num estado como o Ceará onde há o mito de que, mesmo o estado tendo 85 quilombos reconhecidos, não existem negros?
PRETO] Nos piores lugares, os pretos querem ser da Cufa. Se você cria um pólo atrativo de positividade, as pessoas querem vir. Se eu vejo um preto só protestando, eu acho legal porque ele vai brigar pela minha causa. Mas eu não me engajo. Porque já tem alguém brigando por mim. Mas se você faz um evento sobre trança de cabelo, por exemplo, é uma multidão que vai, cara. Porque a galera se sente representada. Quando a coisa é coletiva, as pessoas se agarram de um jeito afetivo.
Por exemplo: em novembro, eu não vou pra nada que fale de sofrimento de negro, de morte de negro, de chicote… Não me chame. Chega! Não vou mais. Toda hora a gente tem que servir pra essa agenda? É só isso que a gente faz! Isso aqui [Ceará Criolo] é que é massa. Vocês é quem deveriam estar dando palestra em evento de Consciência Negra!
Mas eu acho que a Cufa deu certo aqui porque a gente construiu uma agenda positiva. Só tem preto produzindo as coisas da gente e você começa a criar referências positivas de base.
No começo, eu sofria. Eu tinha a ideia de que nós éramos um povo unido. Só que eu dava o sangue e ainda tinha gente xingando. Mas aí eu liguei o foda-se! Vamo fazer o nosso. No pragmatismo, de realizar as coisas mesmo. Nós ‘tamo’ no jogo também, mano. Defendendo nossos interesses. Tem muita gente que faz embate pra fazer palanque do embate. Mas nós temos que ir pra cima é em busca da visibilidade.
Eu defendo uma agenda positiva porque tenho sempre dificuldade com tudo o que diminui a gente. Porque a gente já foi muito diminuído, cara. Partem sempre do princípio de que a gente é sempre frágil, sempre iludido, enganado por alguém, como se a gente não tivesse interesse, como se a gente também não tivesse capacidade de jogar, de fazer o xadrez, de somar aqui pra diminuir ali… O que é isso, cara!? Se a gente sobreviveu no quilombo fazendo isso, não vai fazer agora?
CC] Nesse sentido, você se sente privilegiado de alguma forma?
PRETO] Lógico. Porque qual foi o azar dos caras: o Zezé nasceu no coração da Aldeota [A Comunidade das Quadras fica no miolo de um dos bairros mais brancos e ricos de Fortaleza]. Isso ao mesmo tempo é um privilégio e um choque de realidade. Se eu tô no Bom Jardim, eu não tô sofrendo o constrangimento de entrar num lugar chique e o segurança me seguir. Já tive caso de sair com amigas e elas chorarem. E olhe que eu estou falando de mim, que tenho mais ou menos uma visibilidade na cidade. Você imagine um cara comum. Ele nem vai nesses cantos chiques, cara. Porque ele não é visto nem como suspeito de nada. Ele já é culpado. E a sociedade legitima isso. Ele tem que provar que é inocente sem ter feito nada. Mesmo uma pessoa que não sabe o que é o racismo no sentido literal sabe que ali não é lugar pra ela.
Esse é um trauma que as pessoas que não são negras não conseguem entender. Não conseguem entender como esse fantasma fica cercando a gente toda hora. Isso gera insegurança, gera problema nas relações afetivas, gera insegurança na questão profissional, gera dúvidas sobre você mesmo. É traumático, cara.
É tão traumático que onde está a maioria dos pretos hoje? Nas igrejas evangélicas.
Os pretos não estão nas religiões afro. Os pretos não estão no Movimento Negro. Se eu falar de Movimento Negro vão pensar que é um novo imposto.
Você construir uma identidade é um desafio na sociedade em que a gente vive. Porque ela nega tudo isso. Porque o brasileiro não quis se resolver com seus problemas. A vitória do Bolsonaro tem um efeito constrangedor pedagógico de mostrar realmente que uma parte da sociedade brasileira é, pensa, acredita e quer o que ele diz. E a gente não ia saber disso se o Haddad ganhasse.
É um problema seríssimo? É. Tô dizendo que a vitória do Bolsonaro é boa? Jamais. Mas eu acho que a gente tem que passar por isso. Porque não é possível uma sociedade que cresceu em cima da escravidão, assassinato de índios e roubo de recursos naturais não se passar a limpo como todo mundo passou. A gente tem um país esquizofrênico.
CC] A gente teve hoje nos Estados Unidos o caso de um rapaz negro que impediu um assalto e foi morto pela polícia porque os policiais, quando chegaram no local do crime, acharam que ele era quem tava roubando. E o cara branco, que tava de fato roubando, saiu ileso.
PRETO] É horrível isso. É que nem no Rio de Janeiro, que já teve gente morta porque tava com um guarda-chuva e o policial pensou que era um fuzil.
CC] Um dos comentários mais curtidos dessa matéria era o de um rapaz, que dizia: “eu acredito que o cara morreu muito mais por despreparo do policial do que por uma questão racial”. Em geral, é esse tipo de argumentação que a gente ouve quando se tem uma pessoa negra sofrendo racismo…
PRETO] Vamos pensar. Tudo bem, foi despreparo. Mas baseado em quê? Ele confundiu o cara com um ladrão, ok. Mas baseado em quê? Aí você mergulha, vai indo e descobre que não foi nada disso. O que foi era que ele [o policial] tinha na cabeça o estereótipo de que o cara perigoso era o negro.
Quando a gente traz essa análise pra realidade do Brasil tem dois problemas sérios. Porque dos 62 mil homicídios registrados no ano a maioria é com arma de fogo e a maioria das vítimas é negra. Então: 1) ou a Polícia é racista e atende para exterminar esse “negro perigoso” ou 2) as balas coincidentemente gostam muito de nós. Como que acontece isso? Alguém me explique!
Como é que você tem 60% da população excluída de tudo? [54% dos brasileiros autodeclaram-se pretos ou pardos, e são justamente eles os mais excluídos das políticas públicas] O país não vai pra frente do ponto de vista do desenvolvimento. Não tô falando mais nem de racismo. Tô falando de um projeto de país, que a esquerda tanto fala. Sem os pretos, não existe projeto de país, cara. Ou então nós vamos gerar dois países. Uma anomalia. E as pessoas não querem discutir isso.
Se a gente olhar no nosso campo progressista, a maioria das lideranças negras que se constituíram foram por méritos próprios. Se você for olhar quem são os grandes líderes da esquerda hoje no país eles não são negros. Inclusive não vêm do campo que dizem defender. O líder do MST quem é? O líder do MTST quem é? Homens brancos da classe média formados em universidade.
CC] Na eleição desse ano, dos 46 deputados estaduais eleitos no Ceará, só um se autodeclara preto. E o que teve a pior votação.
PRETO] Soldado Noélio, né? E ele nem se porta quanto preto. Aí é onde gera esquizofrenia no nosso campo. Como a gente não construiu uma identidade, a gente ficou a reboque, sempre alguém tutelou a nossa agenda. Como eles tutelaram, eles quem têm que dizer se o preto é bom militante ou não.
Um preto que nem o Noélio, com todo o histórico de vida de preto, eu não estou falando de vida de esquerda, tô falando de vida num país racista, o cara vira policial e depois vira deputado estadual. É pra gente comemorar também. Ou a gente só vai comemorar o preto que pensar igual a nós?
CC] Quero colocar que a questão da falta de representatividade pro povo preto se impõe no campo mais básico que é o da pessoa ter voz… O povo preto tem um lugar pra levar suas demandas e não tem a quem apresentar isso…
PRETO] E o Noélio com certeza não tem um histórico de luta pelo povo preto. Porque é desconstruído disso. O que ele vai ter: ele é um policial, vai ter um discurso de segurança pública, deve ter passado um monte de porra que talvez nem tenha visto ou se viu não fez questão…
Porque aí tem outro problema. Tá vindo aí uma geração nova. Tem a dele [Noélio], que não é militante mas a gente pode ganhá-lo para algumas questões nossas, e tem uma outra, que não passou por nada porque os pais protegeram e tem outra perspectiva, outras reivindicações, se comporta de outro jeito… Já é um tipo mais agressivo. Enquanto o Zezé com 18 anos não sabia o que era ser preto, essa moçada de agora com 18 já vai chegar dizendo “eu sou preto e pronto, caralho”.
A geração nova do rap não tem dúvida se é preta ou não. Já nasceu sabendo que é.
CC] E isso é bom ou é ruim?
PRETO] É bom pra caralho! É um avanço. Eu fui prum evento uma vez com o Tarso Genro, quando a cota tava entrando só a cabecinha. Época do Lula e tal. No Ibirapuera. Quando eu olhei pro plenário, era só menino e menina de classe média. Quando eu tô aqui hoje no plenário do Dragão do Mar e vejo uma porrada de negona com o cabelo black e um monte de negão, gente, me desculpa, mas a gente avançou pra caralho! Se eu não reconhecer isso eu vou contar o que, porra? Tô desde 90 na caralhada dessa luta e vou dizer o quê? O ambiente hoje eu acho que é mais de equilíbrio.
CC] Pelo o que já se desenhou, o que você acha que deve ser adotado como estratégia pra população negra enfrentar o governo Bolsonaro? Ou você não tem essa visão de que os próximos anos não vão ser fáceis?
PRETO] Não vão ser fáceis não. Mas sabe qual é o problema? É que pro preto nunca foi fácil. Tava falando isso pro Mano Brown esses dias aí. Pra nós, agora, vai ser um pouco mais difícil. Pra grande maioria que tá iludida com ele [Bolsonaro] talvez seja frustrante. Mas nós, pretos, não carregamos expectativas boas. Não é desejando o mal. De modo algum. Eu só não acredito que pelos caminhos dele a gente se dê bem. Se eu acreditasse, teria votado nele.
No dia depois da eleição, eu encontrei alguns amigos policiais e eles tiraram onda comigo porque o Haddad perdeu. E eu disse: “pois é. Perdi. Mas eu tava preocupado com vocês”. Eles não entenderam. E eu expliquei: “na periferia, tudo bem, a galera tem medo. É o Cotam mesmo e tal, quatro negão gigante e a galera sai do meio… Mas e os cara que não gostam de preto lá da Aldeota tudo armado num bar, como é que vocês vão fazer abordagem? Estando sem arma, esses caras já odeiam ter que obedecer vocês, imagine com arma”. E eles ficaram tudo calado, pensando. A gente tem que gerar reflexões práticas pras pessoas.
É o Brasil como ele é. Os caras num queriam armas? Como é que vai ser mesmo quando todo mundo tiver uma? É que nem a discussão da redução da idade penal. Eu já encontrei moleque com 14 anos e sete crimes. Você acha mesmo que descer pra 16 vai resolver o problema? Vamo logo descer pra 12, não? Daqui a pouco vão querer descer pro feto. Ah, se a mulher é preta e tá buchuda, então o menino vai ser marginal. Igual como o vice do Bolsonaro disse. É preciso arreganhar tudo mesmo. O debate tem que ser assim. Arreganhar tudo.
Eu quero entender qual é a lógica dessa galera. É isso mesmo que querem? Pois é esse mundo que vem, cara. O que me preocupa, na verdade, não é se o Bolsonaro vai dar certo ou não. É a expectativa que ele criou e a realidade que vai ser enfrentada. De crise econômica. No mundo inteiro, nos próximos anos, eu não vejo perspectiva. Violência, então…
O grave do Bolsonaro não são as coisas que ele defende. É a autoridade que ele emite. Tipo: o cara descer a porrada no outro e gritar: “agora é Bolsonaro, caralho”. Ou o policial chegar na rua e descer a mão na galera gritando “Bolsonaro, porra”. Isso é grave. Porque ele é a autoridade maior. É tipo o “agora pode; foda-se tudo”. É preocupante.
CC] Tu se lançou esse ano candidato a deputado estadual e fez uma campanha na contramão disso. Escolheu um partido que tava no miolo dos debates [PCdoB] e acabou não se elegendo. Qual avaliação faz de tudo?
PRETO] A gente poderia ter feito uma coisa mais recuada do discurso e tentar coisas práticas, mais radicalizadas. O problema é que campanha é discurso, né? Você tem que dizer a que veio. Mas o resultado da eleição nem sempre é a coisa mais importante dela. Muitas vezes, a campanha em si é bem mais importante. Porque ensina, viu?
A gente ia construir um partido, o Frente Favela Brasil. Quando a gente foi registrar no TSE, fomos informados que não ia conseguir concorrer nas eleições deste ano. Foi um balde d’água.
Numa votação interna, a gente decidiu que partidos poderiam acolher candidaturas nossas. Aí veio PDT, Rede, PCdoB, PT… Aí me chamaram pra ser vice da Manuela D’Ávila. Ela ia ser candidata a presidente [depois acabou sendo a vice de Haddad]. Não tava nada público ainda. E eu pensei que seria melhor não participar da porra dessa política. Até que prenderam o Lula. E eu tava em São Bernardo, bicho. Foi uma sensação muito ruim. A pior sensação da minha vida. Por tudo o que o Lula fez pela nossa geração. Ver aquilo foi muito ruim. Aí a gente decide rever tudo. Começamos a negociar as possibilidades. Acabou que nesse caldo todo o PCdoB foi o que conseguiu incluir nas suas estruturas e possibilidades mais negros e negras.
Eu falei pra todo mundo que vinha por aí um tempo ruim por causa da prisão do Lula. Fizemos uma discussão interna e topei ir, mas com uma série de condições. Mas eleição na base é dinheiro, é estrutura. E a gente tinha feito um acordo de ter uma estrutura mínima, o que não se concretizou. Não veio um tostão. Ainda apareceram alguns militantes que balançavam bandeira pra gente, mas não teve a expectativa que tinha sido construída. Mas foi um aprendizado do caralho.
Além disso, muita gente me queria militante social e não me queria político.
CC] E dá pra dissociar uma coisa da outra?
PRETO] Aí é que tá. Na cabeça dos caras, ser político é uma coisa muito distante. É muito doido isso, como é doida a psicologia do eleitor que votou em mim e no Bolsonaro. Cheguei uma vez no comércio do seu Josias e tinha uma foto do Bolsonaro com a faixa presidencial e uma minha do lado. Terminou a reunião e eu fui saber dele como é que uma coisa daquela era possível. Ele me cortou logo. Disse que tinha votado no Lula em todas as eleições. Que votou na Dilma porque o Lula mandou. Mas que agora não dava por que tavam roubando demais e só queriam falar de direitos humanos.
Por tanto tempo o pessoal dos direitos humanos falou sobre violência da polícia que essa gramática ficou gasta. Tanto é que agora estão falando de policiais que morrem também. E tudo isso é uma loucura. Porque na guerra interna só morre pobre, sejam eles fardados ou não. É óbvio isso.
Toda essa agenda que parte da esquerda pegou sobre droga, sexualidade, valores, isso na periferia não é bem digerido. Porque também não é prioridade. As pessoas se afirmam de outros caminhos. Tem várias estratégias na periferia de como se afirmar. Na periferia, essa coisa gay e LGBT chegou agora. Lá, todo mundo era viado. Não tinha essa coisa da diversidade. E negro era macaco. Agora mudou. Você tem dimensões e complexidades na luta que se apresentaram agora e ninguém quis discutir, cara.
Agora o que é que bombou? Votar em mulher. No Rio, a galera elegeu uma porrada de mulher.
CC] O Psol conseguiu nas eleições deste ano equiparar a quantidade de homens e mulheres eleitos…
PRETO] Pois é. Essa é uma parada muito parecida com um lance da Cufa. Na Cufa, o lance é meio a meio. E onde a gente puder a mulher tá na frente. Mas em eleição tem muitos fatores. A eleição desse ano foi muito curta. Teve lugar que o pessoal nem soube que eu era candidato. E a gente correndo por rede social. Veio essa proposta do Whatsapp também, igual o Bolsonaro usou. Mas eu fiquei meio cabreiro e não quis.
CC] Tu fala de pacotes de mensagens?
PRETO] Sim. Tavam vendendo pra todo mundo isso. Sempre teve, inclusive, eu acho. A gente é que não prestou atenção que a galera criou um modos operandi. Mas não quis porque nossa campanha era por outro lado e tinha muita gente de olho em nós.
CC] Quando você tem consciência de que uma parte do seu eleitorado em potencial está nas periferias e que parte da classe média pode votar em você, se você é mais agressivo, isso pode assustar?
PRETO] Na minha campanha, como eu sempre exercitei mais um papel de mediação, eu nunca tive esse negócio de extremos não. Agora, tem algumas coisas que são inegociáveis. E aí a gente vai pra cima.
CC] Tipo?
PRETO] Tipo: violência contra a mulher é inegociável. Racismo é inegociável. Morte de jovens é inegociável.
CC] Mas o que você chama de inegociável?
PRETO] Que não tem como fazer média. Tem que dizer que é contra e pronto. E ir pra cima. Não tem negócio de relativizar. Algumas coisas tiram vidas. E, se tira a vida do cara, o que é que nós vamo fazer, cara, se a pessoa morreu?
A política de segurança pública no Brasil é assim, ó: “onde é que tá morrendo mais gente?”. Ah…, é lá no Pirambu. Então manda toda a Polícia pra lá. Aí parou a morte. Aí agora onde é que ta morrendo mais gente? É no Bom Jardim. Então vamo pra lá também. E a gente não para em momento algum pra pensar o seguinte: o que aconteceu no Pirambu que parou de morrer gente pra gente poder fazer na cidade inteira pra não morrer mais tanta gente? Mas não. A gente fica correndo que nem política funerária. Onde é que tá os corpos? Então vamo lá.
CC] Você disse que chegou a ser sondado pra ser vice da Manuela. Foi sondado pra assumir algum cargo em prefeitura ou no Governo no Ceará?
PRETO] Várias vezes. No governo do Cid [Gomes, ex-governador e hoje senador eleito], da Lôra [Luizianne Lins, ex-prefeita de Fortaleza pelo PT]…
CC] E nunca foi por qual motivo?
PRETO] Porque eu sempre defendi a sociedade intervindo nas coisas.
CC] E o que mudou de lá pra cá pra agora se lançar candidato? Porque a gente tá falando de política do mesmo jeito…
PRETO] O meu mandato iria ser colaborativo, pra galera se apropriar da política também, só que dessa vez a política partidária. Seria a galera mandando no mandato mesmo.
CC] Como é que isso funcionaria?
PRETO] Um mandato colaborativo seria o quê? Você tem todo um grupo que se aproxima da campanha. De gente de todo jeito. Esse grupo definiria o posicionamento do mandato.
CC] Você seria só o representante, é isso?
PRETO] Que é o óbvio, né? A gente elege o cara pra isso. Teve gente que veio dizer que era uma coisa muito ousada… E eu disse que não era ousada. É o que a população está pedindo.
CC] O fato de você aceitar um cargo na gestão do Cid, que foi uma administração que teve a segurança como ponto nevrálgico do começo ao fim, não seria uma forma também de a população intervir no governo?
PRETO] É diferente.
CC] Sim, mas você não poderia funcionar como uma ferramenta de mudança?
PRETO] Você muda o quê?
CC] Isso você só vai saber quando estiver lá dentro…
PRETO] Eu trabalhei como assessor de secretário durante muito tempo. Vi como funcionava a engrenagem do Estado. Vou te dizer uma coisa.
Nas principais agendas nossas, que são mulheres, negros e jovens, que são emocionantes no discurso, essas áreas, desde o Lula até hoje, não tiveram orçamento do tamanho que era a emoção do discurso político. E isso ninguém quer discutir.
CC] Mas do ponto de vista simbólico não era importante você ocupar um cargo desse?
PRETO] Só isso. Do ponto de vista simbólico. É isso o que estou dizendo. Seria massa pro Governo.
CC] Não, estou falando de ser massa pra você e pro Movimento Negro…
PRETO] Não. Porque não iria ter resultado prático, cara. O cara que me bota na Secretaria do Esporte, cara, ele quer saber se chega a bola, o dinheiro do projeto, o salário do professor, a areninha, a quadra feita. Ele quer é isso. Essa é a expectativa que ele cria. “Porra, o Preto Zezé foi e agora vai vir”. Não vai, pô. É o que o Bolsonaro vai passar agora. Ele criou uma expectativa de quê? De que vai arrumar todo mundo, vai ser pau no gato, vamo matar os bandidos, vai ser cadeia neles… E não vai ser assim, cara. Não vai. Não tem como ser. Ele não vai resolver o problema da segurança pública como prometeu.
Se não for numa estrutura de secretaria que tenha dinheiro liberado, e dinheiro liberado é uma disputa interna em cada governo, porque depende do seu partido, depende do seu peso e pá pá pá, você vai ficar fazendo o quê? Pose? Seria legal pra mim. Eu teria um salário bacana, não teria que dar satisfação a ninguém. E a expectativa que as pessoas criaram por eu ter ido pra um governo não ia ser atendida nunca.
CC] Foi por essa lógica que tu não topou ser vice da Manuela?
PRETO] O lance do vice era mais pra gente adentrar o ambiente político. Pra negociar espaço mesmo. Eu ia, mas quantos deputados federais seriam nossos? Quantas emendas parlamentares? Coisas práticas. Pragmatismo mesmo.
CC] Uma simbologia com resultados objetivos?
PRETO] Exatamente. Porque senão a gente fica só na simbologia. Como fica toda vez. Eu vejo os conselhos. Conselho do negro, conselho do jovem, conselho da mulher, conselho disso e daquilo. É só briga interna. Mas esses conselhos colocaram quantos milhões pra reduzir a violência? Esses conselhos evitaram as mortes de quantos jovens? Do ponto de vista prático, servem pra que mesmo?
CC] Mas tu pretende disputar outras eleições? Ou já se frustrou o suficiente com essa?
PRETO] Eu tô tipo o Ciro [Gomes, recém-derrotado na disputa presidencial]. Vou esperar o mundo rodar. Mas já tem muita gente me convidando. Durante a eleição mesmo muita gente já convidou.
CC] Tu ficou satisfeito com o que recebeu de voto?
PRETO] Eu achava que a gente ia tirar mais. Porque era uma rede muito grande de movimentação, né? Mas aí entre você ter uma rede muito grande e o cara votar em você é difícil. E o povo também ta viciado no dinheirim. Infelizmente.
CC] Até a próxima eleição, teu papel social vai ser qual?
PRETO] Eu continuo na Cufa. Vou lançar um livro agora, umas músicas de rap que tavam guardadas. Vamo criar uma rede de esporte em 20 bairros de Fortaleza. Tem muita coisa legal pra fazer.
CC] Como foi a entrada da Cufa na tua vida? Como ela chegou pra ti depois de tantas mudanças dela e sociais?
PRETO] Na minha época do hip hop, eu era inimigo da Cufa, cara. Eu tinha muita coisa como dogma. Na mídia, no mercado… Isso eu com 22 anos. Um menino véi. Nessa época, ser da Cufa dava era cadeia. Mas a Cufa me ‘cooptou’ (risos). E a gente se questionou sobre o nosso próprio discurso. Um discurso radical. A Cufa me permitiu ver um monte de coisa que o hip hop não me deixava ver. Uma perspectiva maior. A Cufa abriu outras portas. E a gente viu que tinha que parar de conversa fiada e radicalizar na prática, com preto mandando, dirigindo, elaborando, produzindo, melhorando de vida. Essa é a radicalidade que eu defendo.
CC] Nesses 20 anos de Cufa, a Cufa melhorou ou piorou?
PRETO] Tem as facilidades e as dificuldades. Mas é, antes de tudo, um movimento que a gente tem que fazer com que não morra. Estratégias pra sobreviver. O tempo todo.
Na nossa construção tradicional de movimento social, a gente elege um inimigo e eu fico batendo naquele inimigo pra eu existir, pra agregar aliados e bater nele também. A Cufa de repente decidiu que queria realizar coisas. E pensou: “o que precisa pra eu realizar tal coisa aqui?”. Precisa de quê? De aliados que não estão na favela. Quem são? Ah, é a Nike, é a Globo… Parceiros que a gente vai ter coisas em comum e vamos impactar vidas. E a gente foi xingado pra caralho por fazer isso. Mas teve gente que se descobriu preto no basquete de rua da Cufa. E é aí que você vê o resultado prático da coisa.
Na Cufa, eu aprendi que nunca vou xingar um preto em público. Pode ser o pior cara. Esperar de mim que eu vá fazer o papel de ocupar um espaço público pra xingar outro preto? Jamais! Os brancos não dão um espaço pra xingar brancos. Vão dar pra gente xingar outros pretos. Já me ofereceram vários.
É como a mãe da gente diz pra gente quando a gente é pequeno: “tem que tirar 11”. Não adianta tirar dez. Ela já sabia que era desigual o jogo. É pesado, cara. Pesado, pesado, pesado…

Comunicólogo e mestre em Antropologia, é especialista em Jornalismo Político e Escrita Literária e tem MBA em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais. Foi repórter e editor dos jornais O Estado e O POVO, correspondente do portal Terra e colaborador do El País Brasil. Atua hoje como assessor de comunicação. Venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação, o Prêmio MPCE de Jornalismo e o Prêmio Maria Neusa de Jornalismo, todos com reportagens sobre a população negra. No Ceará Criolo, é repórter e editor-geral de conteúdo. Escritor, foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura 2020.
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